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A família foi e continuará sendo o núcleo básico de qualquer sociedade. Sem família não é possível nenhum tipo de organização social ou jurídica. É na família que tudo principia. É a família que estrutura o ser humano como sujeito, e é nela que se encontra algum amparo para o desamparo estrutural173.

O papel da família na modernidade se apresenta na qualidade de formador, ou seja, no sentido de preparar as crianças e adolescentes para suas responsabilidades futuras no tocante às normas de convívio social. Ou ainda como aponta POSTER174, referindo-se à teoria de Talcott Parsons, a família é o agente da

socialização, o mecanismo principal para incutir na nova geração os valores da geração mais antiga e, portanto, assegurar a ordem social.

Diante da importância dessa atribuição como formadora é que a convivência familiar assume uma nova dimensão e passa a ser apontada como a relação afetiva diuturna e duradoura que vincula as pessoas que compõem o grupo familiar, em razão dos laços de sangue ou não. Pressupõe a existência de um local físico, a casa, o lar, não se mostrando, entretanto, obrigatório o seu compartilhamento, tendo em vista que as próprias condições da vida moderna podem provocar separações dos membros da família, nesse espaço físico, mas sem que ocorra a perda da referência ao ambiente comum, visto como pertença de todos.

Nessa perspectiva, LOBO175 consigna que a casa da família é o espaço

privado revestido de intocabilidade, a qual se mostra imprescindível para que a

173 PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Família, Direitos Humanos, psicanálise e inclusão social. In:

GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Direito de Família e

Psicanálise: Rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 157.

174

POSTER, Mark. Teoria crítica da família. Trad. de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p.

98.

175

convivência familiar se construa de modo estável e, acima de tudo, com identidade coletiva própria, impossibilitando a confusão entre as entidades familiares, já que cada uma carrega consigo características que lhes são essenciais.

Em termos legislativos, é importante retomar a Declaração dos Direitos da Criança, que no 6º Princípio dispõe que a criança, para o desenvolvimento harmonioso de sua personalidade, necessita de amor e compreensão e deve, tanto quanto possível, crescer sob a salvaguarda e responsabilidade dos pais, numa atmosfera de afeição e segurança moral e material. Observa-se no texto, datado de 1959, que a Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas já se preocupava com o direito da criança à convivência familiar, ainda que não o tenha disposto expressamente. Mais tarde, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança reconhece em seu Preâmbulo que a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão.

Cabe ainda mencionar as Diretrizes de Riad que expressa a obrigação dos governos na adoção de medidas no sentido de fomentar a união e a harmonia na família e desencorajar a separação dos filhos de seus pais, a não ser quando circunstâncias que afetem o bem-estar e o futuro dos filhos não deixem outra opção176.

No Brasil, a Constituição da República de 1988 declara no seu artigo 227177,

entre os direitos fundamentais da criança e do adolescente, o direito à convivência familiar e comunitária. Também o Estatuto da Criança e do Adolescente178 registra

esse direito fundamental, procurando ressaltar a importância da vida em família como ambiente natural para o desenvolvimento daqueles que ainda não atingiram a

176

Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil. Diretrizes de Riad. Princípio 16, datada de 14 de dezembro de 1990. Disponível em: <http://www.dhnet. org.br/direitos/sip/onu/c_a/ lex45.htm> Acesso em: 15 jan. 2009.

177 CRFB/1988. Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao

adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

178 Estatuto da Criança e do Adolescente. Art. 19. Toda criança ou adolescente tem direito a ser

criado e educado no seio da sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes.

idade adulta, já que são seres em formação e dependem do auxílio dos membros da família para atingir um crescimento físico e emocional pleno.

Já se comentou de uma nova cultura de garantia efetiva da convivência familiar, mas isso só será possível a partir de uma nova concepção da proteção jurídica destinada à criança e ao adolescente, pelo princípio da proteção integral, de forma que realmente estes seres em desenvolvimento, não raramente indefesos, sejam tratados como os principais sujeitos de direitos das relações familiares e sociais. É necessária uma atuação para além do discurso eloqüente e das soluções paliativas, de forma que efetivamente se promova a transição da criança-objeto para a criança-sujeito, credora de direitos e atuações ministeriais e judiciais corajosas e céleres179.

Em vista disso, cabe apontar que é no interior da família que o sentimento de ser parte importante da organização familiar vai sendo gerado, bem como o fortalecimento dos laços entre seus membros, e desses com a sociedade, levando a criança e o adolescente a perceber a dimensão da sua parcela de responsabilidade e necessária contribuição para o benefício comum, ampliando-se esse sentido para sua conexão com a sociedade como um todo.

É no seio do grupo familiar que crianças e adolescentes podem desenvolver e completar o ciclo de socialização; isto é, é no recesso da família que irão assimilar novos valores sociais. Sem dúvida, o espaço familiar é, por excelência, local privilegiado para um aprendizado permanente, orientando-se para resolver seus próprios problemas e enfrentar as dificuldades do dia-a-dia180.

Relevante se mostra destacar a existência no Brasil de um Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária181, resultado de um trabalho coletivo que

envolveu representantes de todos os poderes e esferas de governo, da sociedade

179 BITTENCOURT, Sávio Renato. O cuidado e a paternidade responsável. In: PEREIRA, Tânia da

Silva; OLIVEIRA, Guilherme de. O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 54.

180 PEREIRA, Tânia da Silva. Abrigo e alternativas ativas de acolhimento familiar. In: PEREIRA, Tânia

da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (Coord.). O cuidado como valor jurídico. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 311.

181Disponível em<http://www.mp.ba.gov.br/atuacao/infancia/convivencia/plano_nacional_

civil organizada e de organismos internacionais, os quais compuseram a Comissão Intersetorial que elaborou os subsídios apresentados ao Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente (CONANDA) e ao Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS).

O referido Plano é composto por ações de curto, médio e longo prazos e, de acordo com sua Apresentação, constitui um marco nas políticas públicas no Brasil, ao romper com a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes e ao fortalecer o paradigma da proteção integral e da preservação dos vínculos familiares e comunitários preconizados pelo ECA. A manutenção dos vínculos familiares e comunitários é fundamental para o desenvolvimento das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e encontra-se diretamente relacionada ao investimento nas políticas públicas de atenção à família.

As diretrizes traçadas no Plano em comento fundam-se em uma mudança do olhar e do fazer, não apenas das políticas públicas focalizadas na infância, na adolescência e na juventude, mas extensivos aos demais atores sociais do denominado Sistema de Garantia de Direitos, implicando a capacidade de ver crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e de maneira indissociável do seu contexto sócio-familiar e comunitário. É mais do que certo que as crianças e os adolescentes têm o direito a uma família, cujos vínculos devem ser protegidos pela sociedade e pelo Estado. E nas situações de risco e enfraquecimento desses vínculos familiares, as estratégias de atendimento deverão exaurir as possibilidades de preservação dos mesmos182. Além disso, no caso de ruptura desses vínculos

cabe ao Estado a proteção das crianças e adolescentes, incluindo o desenvolvimento de programas, projetos e estratégias que possam levar à constituição de novos vínculos familiares e comunitários, mas sempre dando prioridade ao resgate dos vínculos originais ou, no caso de sua impossibilidade, proporcionando as políticas públicas necessárias para a formação de novos vínculos que garantam o direito fundamental à convivência familiar e comunitária.

182Cfe. Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à

Vale também mencionar que o acolhimento familiar conduz à essência do cuidado; e de acordo com PEREIRA183, cuidar é criar laços, é cativar; é assumir

compromissos e responsabilidades; é saber conviver com situações limites; é ver nas diferenças uma conquista, não uma ameaça; é trazer um olhar novo para a realidade de crianças e adolescentes que se espalham pelo Brasil.

E dessa forma, o que se busca apresentar é a existência de uma família democrática, pautada na igualdade e na solidariedade, na qual todos, pais e filhos, maiores e menores de idade, têm espaço para expressar sua opinião e, dessa forma, encontrar nela sua principal função: a de ser local para o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas que a compõe184.

Diante de todo o exposto é possível afirmar que no universo dos seres humanos não se pode pensar a vida sem refletir a respeito da família. Uma implica a outra, necessariamente, a partir do nascimento e ao longo do desenvolvimento do ser humano. Daí que, também essencialmente, o direito à vida implica o direito à família, mostrando-se este como um direito fundamental, disposto no texto constitucional e também em norma infraconstitucional.

Assim, o direito à liberdade e à igualdade, à fraternidade e à solidariedade humanas, à segurança social e à felicidade pessoal, bem como outros direitos fundamentais já proclamados, dão fundamento ao direito à família e remetem ao recinto familiar – o lar – onde eles se realizam mais efetivamente, desde que envolvidos e amparados pelo afeto185. E é do afeto que se tratará a seguir, tendo em

vista que é considerado como elemento constituinte da entidade familiar contemporânea.

183PEREIRA, 2008, p. 334. 184 TEIXEIRA, 2008, p. 351.

185BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos da família: Dos fundamentais aos operacionais.

In: GROENINGA, Giselle Câmara; PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Direito de Família e Psicanálise: Rumo a uma nova epistemologia. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 148.