1.5. Definição de conceitos
1.5.3. Definição de conceitos na doutrina e na lei
Grande confusão há em pensarmos nas definições de conceitos jurídicos postos pela legislação (positivados), como que coincidentes com o conceito “real” dos objetos do mundo. Bem dizia Ludwig Wittgenstein, ao afirmar que os problemas não são filosóficos, mas sim linguísticos.59
A definição dos conceitos é o principal problema de interpretação de normas nos Tribunais Superiores. Temos como índice para esta assertiva as ementas dispostas no sítio do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal: a maior quantidade de discussões no Código Tributário Nacional torna sempre sobre definição de conceitos – de tributo, de renda ou de lançamento.
Parte da doutrina diz não ser de bom tom a lei trazer definição de conceitos. Para Luciano Amaro, “definir e classificar os institutos do direito é tarefa da doutrina. Contudo, em 1966, recém-editada a Reforma Tributária traduzida na Emenda n. 18/65, o Código Tributário Nacional adotou uma linha didática na disciplina do sistema tributário, insistindo, ao longo do seu texto, na fixação de certos conceitos básicos”.60 E para Geraldo Ataliba, falando sobre o conceito de tributo: “Evidentemente, não é função de lei nenhuma formular conceitos teóricos. O art. 3º do CTN é mero precepto didactico, como o qualificaria o eminente mestre espanhol Sains de Bujanda.”61
59
Ressaltando o problema do contexto, e da ligação da palavra com o objeto, brinca Wittgenstein: “os problemas filosóficos surgem quando a linguagem sai de férias”. Ludwig Wittgenstein, Philosophical Investigations, p. 19. Tradução livre.
60
Luciano Amaro, Curso de direito tributário, p. 19.
61
A explicação, talvez baseada na falsa ideia da doutrina como fonte do direito, prestigia o doutrinador como se legislador fosse, como se, elegido pelo povo, pudesse prescrever condutas. Ou, por outro lado, como se a lei, ao definir conceitos, pudesse alterar a realidade social (não-jurídica) pelo simples dizer, como se nossos deputados e senadores fossem deuses. Vejamos a forma declarativa da linguagem,62 utilizada por um dicionário, por uma lei e por uma doutrina: qual dessas acepções de tributo é a correta? Seria a do dicionário, posto que a língua oficial do Brasil é a portuguesa? Dever-se-ia interpretar a partir do texto de lei, inserto pelo ordenamento? Ou da doutrina, que pretende dizer o que a lei diz?
Emissor e canal físico Tributo: definição do conceito
Antônio Houaiss
Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa
s.m. 1 contribuição monetária imposta pelo Estado ao povo 2 fig. aquilo que se sofre por razões morais, necessidade etc. (pagar um alto t. por uma ousadia) 3 homenagem prestada (t. aos mortos).63
Poder Legislativo
Art. 3o da Lei 5.172/66 – Código Tributário Nacional
Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. Geraldo Ataliba Livro “Hipótese de Incidência Tributária”
Como conceito básico, definimos tributo, instituto nuclear do direito tributário (entendido como sub-ramo do direito administrativo), como
obrigação (relação jurídica).
Juridicamente, define-se tributo como obrigação jurídica pecuniária, ex
lege, que se não constitui em sanção de ato ilícito, cujo sujeito ativo é
uma pessoa pública (ou delegado por lei desta), e cujo sujeito passivo é alguém nessa situação posto pela vontade da lei, obedecidos os desígnios constitucionais (explícitos ou implícitos).64
A interpretação da norma envolve todas essas acepções. O dicionário faz parte de nossa bagagem cultural anterior, que nos ajuda a compreender o desconhecido. É com dificuldade que fugimos de nossos conceitos sociais-coletivos. Sua linguagem, que pode ser natural, técnica ou científica, tem função de descrever o texto para uma ampla parcela da
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Paulo de Barros Carvalho traz três pontos de vista diferentes sobre as espécies de linguagem: sua função, sua forma e seu tipo. Sobre a função que a linguagem desempenha no fato concreto da comunicação, pode ser descritiva, expressiva de situações objetivas, prescritiva de condutas, interrogativa, operativa, fáctica, persuasiva, afásica, fabuladora e metalinguística. Sobre a forma gramatical que preside o surgimento da frase, pode ser declarativa, interrogativa, exclamativa e imperativa. E sobre o tipo, pode ser natural, técnica, científica, filosófica, formalizada e artística. Paulo de Barros Carvalho, Direito tributário, linguagem e método, p. 30 a 67.
63
Antonio Houaiss, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 1879.
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sociedade. A lei é ato de partida da interpretação, é parte da construção da norma, e em sua linguagem técnica tem função prescritiva de condutas. A doutrina, como se vê no caso de Ataliba, possui grande rigor científico: olha para a Lei e exclui palavras inúteis e troca outras por termos menos ambíguos, e sua função é de descrever o direito.
Certamente os sentidos (do dicionário, da lei, da doutrina e de outros) dialogam entre si. Como lembra Tácio Lacerda Gama,65 lastreado em lições de Niklas Luhmann, “sentenças criam doutrina e a doutrina toma como referência, mediata ou imediata, os textos de direito positivo. Não há como imaginar o sentido da doutrina sem o sentido do direito positivo. Em grau menor, mas igualmente importante, é o sentido da doutrina para o direito positivo, especialmente para a fundamentação das decisões judiciais”. Mas esta interinfluência de sistemas não faz com que se confundam.
Não existe, portanto, a acepção “correta”, posto que incabível tal pergunta: enquanto a do dicionário e da doutrina são “verdadeiras”, a da lei é “válida”. O enciclopedista deverá abarcar todas as acepções que conseguir; a doutrina, todas que entender postas no sistema do direito. A lei é parte do próprio direito e a definição do conceito de seus institutos servirá para prescrever condutas.
Lembramos, por derradeiro, a célebre solução de Lourival Vilanova,66 ao dizer que o direito não existe para coincidir com a realidade, mas sim para incidir nela.