• Nenhum resultado encontrado

Definição do que seja direito individual homogêneo: a doutrina

4. O DIREITO INDIVIDUAL HOMOGÊNEO COMO CATEGORIA

4.2. Definição do que seja direito individual homogêneo: a doutrina

No Brasil, a ideia de defesa coletiva da sociedade se inaugura, conforme afirmado no item 3.1.2. do Capítulo 3 deste trabalho, com a instituição da Ação Popular, cujas origens remontam à Constituição de 1934. Mas, foi apenas com a edição da Lei da Ação Civil Pública que o processo coletivo adquiriu coerência

sistemática.500 Entretanto, na ocasião, esta lei houve por bem acolher uma divisão

bipartida dos direitos metaindividuais, estabelecendo apenas regras específicas para direitos difusos e coletivos em sentido estrito.

498 GRINOVER, Ada Pellegrini. Da “class action for damages” à ação de classe brasileira: os

requisitos de admissibilidade. Revista de Processo. Volume 101. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2001, p. 27.

499 Sobre o individualismo do cidadão norte-americano, ver Robert L. Heilbroner, op. cit., p. 359, ao tratar da ausência de uma herança democrática social: “A primeira resposta que sugiro pode parecer surpreendente. É a tradição americana de individualismo democrático – tradição nascida e nutrida dentro das fronteiras do país, e perpetuada na imagem do grupamento citadino como o ideal do modo democrático de governo”. No mesmo sentido, Alexis Tocqueville, citado pelo mesmo Robert Heilbroner: “A aristocracia liga a todos, do camponês ao rei, numa longa corrente. A democracia rompe a corrente e liberta cada elo. À medida que a igualdade social se dissemina, há cada vez mais pessoas que, embora nem ricas ou poderosas o suficiente para ter mais que outros, ganharam ou guardaram suficiente riqueza e suficiente compreensão para satisfazer suas próprias necessidades. Essas pessoas nada devem a ninguém e dificilmente esperam alguma coisa de alguém. Constituem o hábito de pensar sobre si mesmos em isolamento e imaginando que todo o seu destino está em suas mãos. Assim, não apenas a democracia faz com que as pessoas esqueçam seus antepassados, mas oblitera suas vistas para seus descendentes, e os isola de seus contemporâneos. Cada homem volta-se perpetuamente para apenas si mesmo, e há perigo de que possa fechar-se na solidão do seu coração”. 500 BESSA, Leonardo Roscoe; e outros. Manual de direito do consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 381.

183 A noção de direito individual homogêneo é inaugurada no ordenamento jurídico brasileiro com a edição da Lei Protetiva dos Investidores do Mercado de Valores Mobiliários (Lei nº 7.913, de 7 de dezembro de 1989), a

primeira class action do Brasil.501

A definição de direito individual homogêneo, contudo, foi apenas estabelecida com o advento do Código de Defesa do Consumidor que em seu artigo 81, parágrafo único, estabeleceu as três espécies hoje conhecidas de direitos transindividuais.

Como já registrado, para cada espécie estabeleceu uma definição. Porém, em relação ao direito individual homogêneo, o legislador foi parcimonioso e apenas afirmou tratar-se daquele decorrente de origem comum (artigo 81, parágrafo único, III).

Ao interpretar esse dispositivo, a doutrina majoritária, a partir de clássica lição de José Carlos Barbosa Moreira, afirma que os direitos difusos e coletivos em sentido estrito são essencialmente coletivos e os individuais

homogêneos são acidentalmente coletivos.502

Teori Albino Zavascki, por exemplo, afirma que não se trata “de um novo direito material, mas simplesmente de uma nova expressão para classificar

certos direitos subjetivos individuais [...]”.503

501 GRINOVER, Ada Pellegrini; e outros. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado

pelos autores do anteprojeto. 8ª edição revista, ampliada e atualizada conforme o novo Código Civil.

Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 862.

502 BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Ações coletivas na Constituição Federal de 1988. Revista de Processo. Volume 61. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 187/189.

184 Marcelo Abelha Rodrigues, por seu turno, fala em certa ficção jurídica:

[...] tais direitos são acidentalmente coletivos, porque ontologicamente, na sua raiz, não guardam uma natureza coletiva. Com isso se quer dizer que apenas por ficção jurídica o legislador permitiu que em casos específicos de interesse social [...] fossem tais direitos

tratados de modo coletivo [...].504

Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery também afirmam:

Direitos individuais homogêneos. São os direitos individuais cujo titular é perfeitamente identificável e cujo objeto é divisível e cindível. [...]. A grande novidade trazida pelo CDC no particular foi permitir que esses direitos individuais pudessem ser defendidos

coletivamente em juízo.505

Ricardo de Barros Leonel parece também sustentar posição semelhante:

O tratamento processual coletivo conferido a estes interesses decorre da conveniência da aplicação a eles das técnicas de tutela coletiva. Sua implementação configura opção de política legislativa. Na essência, são interesses individuais e nada impede a demanda atomizada de cada qual dos titulares, com v.g.,

504 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Ação civil pública. Ações Constitucionais. Organizador: Fredie Didier Jr. 3ª edição revista, ampliada e atualizada. Salvador: Editora Jus Podium, 2008, p. 353. 505 NERY JUNIOR; Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Novo código civil e legislação

extravagante anotados: atualizado até 15.03.2002. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.

185 obtenção de indenização a título pessoal pelos danos sofridos.506

Rodolfo de Camargo Mancuso, por sua vez, leciona:

Já no tocante aos individuais homogêneos, o próprio nomem juris, denuncia que se trata de um novum genus [...], cuidando-se de interesses que na substância remanescem individuais, mas que comportam trato processual coletivo, por concernirem a um número importante de sujeitos, com isso se prevenindo a indesejável atomização do conflito coletivo em

múltiplas e repetitivas demandas individuais.507

José Geraldo de Brito Filomeno, um dos autores do anteprojeto do Código de Defesa do Consumidor, expõe:

No que diz respeito aos “interesses individuais homogêneos de origem comum” [...], não passam, na verdade, de interesses ou direitos individuais, mas

tratados de forma coletiva.508

Gregório Assagra de Almeida não difere do quanto até aqui exposto:

São considerados direitos ou interesses acidentalmente

coletivos e recebem o tratamento processual coletivo –

daí serem designados como sendo apenas

acidentalmente coletivos –, pois se constituem de

vários interesses ou direitos individuais

506 LEONEL, Ricardo de Barros. Op. cit., p. 108. 507 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 103.

508 FILOMENO, José Geraldo Brito. Código brasileiro de defesa do consumidor: comentado pelos

186 homogeneamente considerados, que estão ligados pela

origem comum.509

Parecendo destoar desse coro, encontra-se a posição de Alcides A. Munhoz da Cunha para quem os direitos individuais homogêneos não seriam “um tertium genus de interesses metaindividuais, a par dos interesses difusos e coletivos. Parecem se situar isto sim como uma peculiar modalidade de interesses difusos ou

coletivos”.510 Ao final registra:

Tem-se dito que nestes casos os interesses são individuais e não metaindividuais, porque a própria lei os qualifica como individuais, porém homogêneos, por ter origem comum. Todavia, a despeito do nome iuris, pode-se afirmar que são interesses metaindividuais, enquanto pressupõe interesses coordenados e justapostos que visam à obtenção de um mesmo bem,

de uma mesma utilidade indivisível.511

Luiz Antonio Rizzatto Nunes, por sua vez, afirma que nos direitos individuais homogêneos os “sujeitos são sempre mais de um e determinados. Mais de um porque se for um só o direito é individual simples, e determinado porque neste

caso, como o próprio nome diz, apesar de homogêneo, o direito é individual”.512 Ao

final conclui que o direito individual homogêneo é também uma espécie de “Direito

Coletivo”.513

509 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Op. Cit., p. 492.

510 CUNHA, Alcides A. Munhoz. Evolução das ações coletivas no Brasil. Revista de Processo, volume 77. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1995, p. 233.

511 CUNHA, Alcides A. Munhoz. Op. cit., p. 233.

512 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. As ações coletivas e as definições de direito difuso, coletivo e

individual homogêneo. Processo Civil Coletivo. (Coordenação: Rodrigo Reis Mazzei e Rita Dias

Nolasco). São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 91. 513 RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Op. cit., p. 92.

187 Em uma posição intermediária, tem-se o posicionamento de Humberto Dalla Bernardina de Pinho, para quem o direito individual homogêneo é um direito subjetivo individual complexo:

[...] é um direito individual porque diz respeito às necessidades, aos anseios de uma única pessoa; ao mesmo tempo é complexo, porque suas necessidades são as mesmas de todo um grupo de pessoas, fazendo

nascer, destarte, a relevância social da questão.514

Observa-se, pois, que a doutrina majoritária, ao pensar o direito individual homogêneo, explica-o, invariavelmente, a partir do direito individual puro, a sua gênese remota.

Talvez, a razão para esses posicionamentos se justifique em virtude dos objetivos que se perseguem com tutela coletiva: economia processual, acesso à

justiça, eliminação de decisões contraditórias, efetivação do direito material etc.515

Ocorre, porém, que a jurisdição coletiva, na qual se insere a dinâmica do direito individual homogêneo, tem objeto mais amplo consistente na resolução de um conflito transindividual, conforme observado por José Carlos Barbosa Moreira:

Cumpre, antes de mais nada, precisar o sentido que

está sendo dado aqui à expressão “Ações coletivas”. A

primeira idéia que pode ocorrer ao nosso espírito é a de um processo em que se verificasse uma acumulação objetiva de ações, referentes a pessoas distintas, e que

daria lugar, naturalmente, a uma estrutura

litisconsorcial. Com a expressão “Ações coletivas” não

quero designar aqui esse fenômeno. Estou aludindo à

514 PINHO, Humberto Dalla Bernardina de. A natureza jurídica do direito individual homogêneo e sua

tutela pelo Ministério Público como forma de acesso à justiça. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 33.

188 matéria litigiosa, não à estrutura subjetiva do processo, mas ao próprio litígio que vai ser objeto da apreciação pelo Juiz; e até diria que um dos traços característicos

dessas chamadas ações coletivas consiste,

precisamente, na possibilidade, que em geral se assegura, de que a lide seja posta sob a cognição judicial por iniciativa de uma única pessoa, física ou

jurídica, pouco importa.516

Nesses termos, parece ser possível, pois, avaliar a natureza do direito individual homogêneo não como um direito gravitante em torno de direitos individuais, mas de forma transcendental. Para tanto, deve-se investigar o que efetivamente se protege e qual a lesão que se pretende eliminar.

Esse enfrentamento é necessário, inclusive, para se evitar, conforme o observado por José Carlos Barbosa Moreira, eventual confusão entre os direitos individuais homogêneos e a figura do litisconsórcio.