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1. DIREITO E (EM) TRANSFORMAÇÃO

1.5. Direito e mudança de paradigma

Muda-se a sociedade; muda-se o direito; muda-se a ciência. Tudo muda, mas não necessariamente nessa ordem. Não raro a sociedade transforma a ciência. Mas, a ciência também transforma a sociedade ao trazer luzes à realidade. Fato é que a mudança é algo inerente ao processo científico.

É notório que antes de Copérnico o sistema cosmológico concebido por Aristóteles e Ptolomeu afirmava estar a Terra parada no centro do universo e os demais corpos celestes orbitando à sua volta. Nicolau Copérnico ousou discordar desse pensamento, inclusive contrariando a Igreja, poderosíssima à época, para afirmar que a Terra não era o centro do universo, mas que ela girava em torno do Sol,

62 Nesse sentido, a observação de Nelson Nery Junior: “Na decisão sobre a possibilidade de caracterização das relações homoafetivas como união estável, o STF julgou contra texto expresso da Constituição, a pretexto de dar implemento a outros dispositivos constitucionais principiológicos o que, em última ratio, faria com que qualquer texto normativo constitucional pudesse ser ignorado pelo Pretório Excelso. O julgamento mereceu elogios por ser politicamente correto, mas foi exarado em ofensa ao estado democrático do direito, pois o STF se substituiu ao constituinte, fazendo „emenda constitucional‟ sem mandato popular para tanto”. Conforme prefácio à obra de Georges Abboud,

Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p.

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como qualquer outro planeta.63 No ponto, foi oferecido à sociedade de então um

novo paradigma científico: do geocentrismo para o heliocentrismo. Para Thomas S. Kuhn, paradigmas “são as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para comunidade de

praticantes de uma ciência”.64

Por algum tempo, pois fenômenos novos são descobertos periodicamente pela comunidade científica. Estas descobertas, contudo, nem sempre se explicam pelos paradigmas anteriores.

Explica Thomas S. Kuhn que a ciência possui ou passa por fases de desenvolvimento: a fase pré-paradigmática; e a fase paradigmática. Aquela se caracteriza pela ausência de domínio de um paradigma específico, pois os fenômenos

são descritos e interpretados de formas diversas.65 Há um profundo e frequente

debate sobre métodos, padrões e soluções, mas sem nenhum consenso ou acordo.66

A fase paradigmática tem como característica o consenso, isto é, o paradigma que conquistou a concórdia dos demais cientistas e que possui melhor capacidade para resolução de alguns problemas em detrimento das demais teorias em

disputa.67

Todavia, “fenômenos novos e insuspeitados são periodicamente

descobertos pela pesquisa científica”68 e, em razão disso, o paradigma existente nem

sempre será capaz de ofertar uma explicação adequada para o fenômeno. Nesse caso,

tem-se uma “anomalia”:

63 Cf. <http://fisicafacip.wordpress.com/biografias/nicolau-copernico/>, acesso em: 12/03/2012. 64 KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. Tradução: Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2009, p. 13.

65 KUHN, Thomas S. Op. cit., p. 37. 66 KUHN, Thomas S. Op. cit., p. 72/73. 67 KUHN, Thomas S. Op. cit., p. 44. 68 KUHN, Thomas S. Op. cit., p. 77.

41 A descoberta começa com a consciência da anomalia, isto é, com o reconhecimento de que, de alguma

maneira, a natureza violou as expectativas

paradigmáticas que governam a ciência normal. Segue- se então uma exploração mais ou menos ampla da área onde ocorreu a anomalia. Esse trabalho somente se encerra quando a teoria do paradigma for ajustada, de tal forma que o anômalo se tenha convertido no esperado. A assimilação de um novo tipo de fato exige mais do que um ajustamento aditivo da teoria. Até que

tal ajustamento tenha sido completado – até que o

cientista tenha aprendido a ver a natureza de um modo diferente o novo fato não será completamente científico.69

Não havendo êxito do paradigma existente para solver a “anomalia”,

volta-se à fase pré-paradigmátca e instala-se uma crise do paradigma.70

Referida crise poderá ser solucionada de três maneiras: o paradigma existente soluciona o problema, apesar do “desespero” de alguns; não há solução para o problema no atual estado da ciência; ou então surge um novo paradigma,

“com uma subseqüente batalha por sua aceitação”.71

Relativamente à última opção, ou seja, a transição para um novo paradigma científico, Thomas S. Kuhn a denomina como sendo uma revolução científica:

[...] consideramos revoluções científicas aqueles episódios de desenvolvimento não-cumulativo, nos quais um paradigma mais antigo é total ou parcialmente

69 KUHN, Thomas S. Op. cit., p. 78. 70 KUHN, Thomas S. Op. cit., p. 113. 71 KUHN, Thomas S. Op. cit., p. 115/116.

42 substituído por um novo, incompatível com o anterior.72

Não obstante a obra de Thomas S. Kuhn ter como foco as ciências naturais, o seu pensamento não é de todo incompatível com as ciências culturais, em especial o direito.

A definição de paradigma proposta por Kuhn pode ser aplicada ao direito. Tome-se como exemplo o direito processual. Tradicionalmente, ele se subdividia em dois grandes ramos: direito processual civil e direito processual penal, sem prejuízo do direito do trabalho ou tributário, por exemplo.

Com o surgimento, porém, da sociedade de massa, instalou-se uma crise no processo civil, pois esse não era mais capaz de fornecer uma resposta adequada à sociedade, haja vista a evidenciação de novos direitos, em especial os transindividuais. Nesse sentido, expõe Antonio Carlos Wolkmer:

Impõe-se a construção de novo paradigma para a teoria jurídica em suas dimensões civil, pública e processual, capaz de contemplar o constante e o crescente

aparecimento histórico de “novos” direitos.73

No ponto, relativamente ao direito processual, expõe e propõe Gregório Assagra de Almeida:

Segundo a natureza da pretensão, divide-se o direito processual, portanto, não mais em dois grandes ramos (direito processual penal e direito processual civil), como apontava José Frederico Marques, mas, agora, em

72 KUHN, Thomas S. Op. cit., p. 125.

43 três ramos: a) direito processual penal; b) direito

processual civil; e c) direito processual coletivo.74

Realmente, há necessidade de se pensar o direito processual sob o prisma proposto por Gregório Assagra de Almeida, porquanto o direito processual

civil, de per si, não tem capacidade para solucionar os “quebra-cabeças”, conforme

definição de Thomas S. Kuhn, existentes nos conflitos de massa.

Tome-se, como exemplo, o conceito de legitimidade. A “legitimidade

ad causam é condição da ação e se relaciona com a pertinência subjetiva ativa e

passiva da ação”.75 Acrescenta Eduardo Arruda Alvim:

A legitimidade, em regra, é ordinária. Isto é, aquele que se afirma titular do direito material tem legitimidade para discutir essa titularidade em juízo. Excepcionalmente, porém, a legitimidade pode ser extraordinária, quando alguém pode pleitear afirmação

de direito alheio, em nome próprio (art. 6, do CPC).76

Esses parâmetros, porém – não obstante sejam úteis para a devida

compreensão das partes no âmbito do processo civil e a sua pertinência subjetiva em

relação ao comando emanado da sentença –, são insuficientes para explicar o

fenômeno da legitimidade das partes no âmbito do processo coletivo.

Com o surgimento do processo coletivo foi necessária a construção de um novo paradigma que, rompendo com o anterior, passou a explicar, de forma satisfatória, a sujeição das partes a uma determinada decisão judicial. Por esta razão,

74 ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito

processual (princípios, regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação). São

Paulo: Saraiva, 2003, p. 20.

75 ALVIM, Eduardo Arruda. Direito processual civil. 2ª edição, reformada, atualizada e ampliada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 157.

44 no âmbito do processo coletivo, fala-se em legitimidade autônoma para condução do

processo e, não mais, em legitimidade ordinária ou extraordinária.77

Outro exemplo de aplicação no direito pode ser observado no direito penal, mais especificamente na teoria do tipo penal. Explicam Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina que o tipo penal, no final do século XIX e começo do século XX, ou seja, ao tempo do causalismo, era puramente objetivo. Exigia-se: conduta, resultado naturalístico nos crimes de resultado, nexo de causalidade e adequação típica. Portanto, para essa teoria, “puramente causalista e formalista não havia dúvida que, por exemplo, „causar qualquer tipo de aborto‟ era um fato típico”.78

A teoria do tipo penal apresentou uma segunda fase denominada por Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina de fase neokantiana. Nesse momento, o “tipo penal não é objetivo e neutro, é objetivo e valorativo, ao mesmo tempo”. Todavia, apesar “de toda ênfase dada ao aspecto valorativo do Direito Penal [...], no que concerne à estrutura formal da tipicidade pouco se alterou: continuou

sendo concebida preponderantemente como objetiva”.79 Não houve, pois, uma

alteração de paradigma.

Sobreveio uma terceira etapa: o finalismo. Para este, o “tipo penal

passou a ser composto de duas dimensões: a objetiva e a subjetiva”, passando a ter

relevância o desvalor da conduta.80

O finalismo representou uma alteração relevante na doutrina tradicional, pois alterou a ideia vigente ao afirmar que o dolo e a culpa deveriam

77 Para um detalhamento e síntese da discussão acerca da legitimação no processo coletivo ver Gregório Assagra de Almeida, Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito

processual (princípios, regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação). São

Paulo: Saraiva, 2003, p. 497/501. Ver também o capítulo 3, item 3.3., desta dissertação.

78 GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Direito penal: parte geral. Volume 2. (Coordenação: Luiz Flávio Gomes). São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 229/230. 79 GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Op. cit., p. 230.

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fazer parte do fato típico e não mais da culpabilidade.81 Houve, portanto, uma

alteração de paradigma: do causalismo ao finalismo.

Ao avaliar o causalismo e o finalismo no Brasil, expõem Zaffaroni e Pierangeli:

A doutrina brasileira sustentou a teoria causalista (tipos objetivos e dolo e culpa na culpabilidade) em quase todas as obras elaboradas na vigência do código de 1940 (NELSON HUNGRIA, ANÍBAL BRUNO, BASILEU GARCIA, JOSÉ SALGADO MARTINS, E. MAGALHÃES NORONHA, JOSÉ FREDERICO MARQUES, PAULO JOSÉ DA COSTA JÚNIOR, ROQUE DE BRITO ALVES E OUTROS). No caso do Código de 1940, surge a estrutura finalista como uma melhor metodologia analítica, e, muito embora nem todos os autores adotem um único ponto de partida quanto à teoria do conhecimento, estão acordes numa única sistemática (tipo complexo, culpabilidade depurada). Dessarte, podemos mencionar como exemplos as obras gerais de HELENO CLÁUDIO

FRAGOSO, JÚLIO FABRINI MIRABETE,

FRANCISCO DE ASSIS TOLEDO, DAMÁSIO E. DE JESUS, LUIZ REGIS PRADO, CEZAR ROBERTO

BITTENCOURT e outros.82

Há, ainda, duas outras vertentes teóricas, conforme a síntese de Luiz Flávio Gomes e Antonio García-Pablos de Molina: o funcionalismo moderado de Roxin e a teoria constitucionalista do delito. Ocorre, porém, que nenhuma dessas

81 GOMES, Luiz Flávio; MOLINA, Antonio García-Pablos de. Op. cit., p. 229/230.

82 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro. Volume 1 – Parte geral. 9ª edição revista e atualizada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 350/351.

46 teorias parece ter, no Brasil, logrado êxito, ou melhor, consenso entre os profissionais do direito. Logo, não são ainda paradigmas, embora possam vir a sê-lo algum dia.

Observe-se que em relação aos exemplos citados (legitimidade no processo coletivo e teoria do tipo penal), embora haja certa predominância

doutrinária quanto ao afirmado, não há unanimidade.83 Todavia, para uma mudança

de paradigma, essa unanimidade é desnecessária, porquanto, consoante afirma Thomas S. Kuhn, para um novo paradigma ser aceito não se exige que ele seja capaz

de solucionar todos os “quebra-cabeças”.84 Ademais, acrescenta Kuhn:

Quando, pela primeira vez no desenvolvimento de uma ciência da natureza, um indivíduo ou grupo produz uma síntese capaz de atrair a maioria dos praticantes de ciência da geração seguinte, as escolas mais antigas

começam a desaparecer gradualmente. Seu

desaparecimento é em parte causado pela conversão de seus adeptos ao novo paradigma. Mas sempre existem alguns que se aferram a uma ou outra das concepções mais antigas; são simplesmente excluídos da profissão e seus trabalhos são ignorados. O novo paradigma implica uma definição nova e mais rígida do campo de estudos. Aqueles que não desejam ou não são capazes de acomodar seu trabalho a ele têm que proceder

isoladamente ou unir-se a algum grupo.85

Parece ser esse o momento atualmente vivido pela ciência jurídica, qual seja: o surgimento de novos direitos que transcendem a singularidade do ser humano para serem classificados como direitos coletivos ou transindividuais.

83 Em relação ao tipo penal, por exemplo, Luiz Flávio Gomes afirma ser adepto da teoria constitucionalista do delito. Op. cit., p. 231.

84 KUHN, Thomas S. Op. cit., p. 44. 85 KUHN, Thomas S. Op. cit., p. 39.

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