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CAPÍTULO 1- O “limão” o racismo como estruturante das relações de poder: raça, racismo,

1.2 Definição geral do conceito de racismo

Vários estudiosos, em sua maioria intelectuais brancos, se debruçaram sobre a construção da nação brasileira tendo como base a exploração colonial do negro (FREYRE, 1936; FERNANDES, 1965; SODRÉ, 1979; GORENDER, 1992; REIS, 2003; SCHWARCZ, 2012, GUIMARÃES, 2009), a partir do pressuposto de que, durante séculos, através do tráfico e escravização de milhões de corpos negros, a escravidão deixou de ser apenas mão- de-obra para a atividade econômica da empresa colonial e passou a ser, ela própria, uma de suas principais atividades econômicas (MOURA, 2014). Estima-se que o Brasil tenha recebido quase metade dos 11 milhões de seres humanos, que aqui passaram a ser chamados de negros, e que foram sequestrados do continente africano (MARIUZZO, 2011). Esse número leva o Brasil a ser um dos territórios com maior população negra concentrada fora da África.

Definir de maneira geral o que é racismo traz em si muitos outros problemas. Isso porque implica, em primeiro lugar, definir raça tal como a branquitude e a colonialidade assim o impõem para, em seguida, desconstruir esse conceito como quero tentar fazer aqui. Tentarei apenas compreender a ideia de que o racismo e a raça são construtos sociais, ou seja, uma ideologia racialista (APPIAH, 1997), e não uma realidade da natureza (GUIMARÃES, 2009)29.

O conceito de “raça” não faz sentido senão no âmbito de uma ideologia ou teoria taxonômica, à qual chamarei de racialismo. No seu emprego científico, não se trata de conceito que explique fenômenos ou fatos sociais de ordem institucional, mas de conceito que ajude o pesquisador a compreender certas ações subjetivamente intencionadas, ou o sentido subjetivo que orienta certas ações sociais (GUIMARÃES, 2009, p. 31).

Isso implica em aceitar, ainda que provisoriamente como pressuposto, o sentido de “raça”, para, logo após, superá-lo, ou, como prefiro teorizar aqui, ressignificá-lo. Por isso, quero de maneira geral compreender aqui as premissas que nos levam, antes de tudo, a problematizar esse conceito. Primeiramente, a ideia central a ser defendida nesta tese de que

raça é uma construção originalmente externa ao negro, e não dele mesmo (MBEMBE, 2014),

aparecendo como fantasia política a ele imposta. Portanto, uma entidade fictícia, tornada realidade política através de séculos de exploração racista. Por outro lado, como analisa Gates Jr. (1988), o negro enxerga nesse tipo de entidade a possibilidade de atuação política, de

maneira a não entender esse significante como tendo um significado real, mas uma figura retórica que ele usa para agir e ressignificar.

No caso do Brasil, a experiência do racismo, enquanto criador dessa fantasia política, se constitui naquilo que chamamos de mito da democracia racial (GUIMARÃES, 2006). Defino o mito da democracia racial, com base no pesquisador branco Guimarães (2006), mas, sobretudo, em Munanga (2004), a consolidação de uma ideologia racista construída historicamente através do mito fundador da nacionalidade brasileira (CHAUÍ, 2006) com o intuito de branquear a sociedade brasileira e apagar tanto física quanto intelectualmente os povos negros. Com base no trabalho de Moura (2014) e Azevedo (1987), entendo que esse mito vem sendo pavimentado, sobretudo em preparação pelas elites brancas, na construção do que veio a ser chamado abolição da escravatura, que, a meu ver, foi incompleta30.

Em tese, nunca existiu democracia racial no país. Então, qual seria o motivo para esse mito existir enquanto tal? Nesse sentido, a obra Casa-Grande & Senzala de Freyre (1936) é fundamental para fortalecimento de uma ideologia de culturalismo racialista que se inicia ainda nas preparações pré-abolição (AZEVEDO, 1987) pelas elites brancas até se tornar reconhecimento do Estado por Getúlio Vargas quando da instituição do Estado Novo (CARVALHO, 2014). Nessa época, o governo Vargas vai desenvolver a ideia de que vivemos em um país produto de uma miscigenação cordial, em que negros, brancos e índios vivem em harmonia, o que é reconhecido como unidade de um povo.

É precisamente nesse momento que residem duas situações importantes. Uma é a raça como noção biológica, como proveniente do racialismo do século XIX (APPIAH, 1997; GUIMARÃES, 2009) e uma visão mais contemporânea e culturalista de raça como inexistente, segundo esses critérios raciais, mas que, ao ser interpretada à luz das violências ideológicas, pode gerar conflitos e discriminações porque, ao se silenciar sobre o tema, como forma de o esquecer, ou ao apenas entender raça como fenômeno social, essa noção culturalista é também racialista. Exemplos disso, para mim, são as obras de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque, Raymundo Faoro e Darcy Ribeiro, cujas análises evitam falar mais explicitamente de racismo ou acabam gerando um sujeito negro que é forjado como passivo ou oculto na história da resistência no país. Trato esses dois fenômenos aqui, me baseando na ideia de significação do signo raça, como duas tendências. A primeira é o racialismo, cujas origens derivam da visão de colonialismo sobre o negro. A segunda é o culturalismo

30 Aqui também eu imprimo no texto algo que, durante muito tempo, vem dividindo pensadores antirracistas e

abolicionistas no Brasil. Penso que não podemos negar que houve uma abolição da escravatura, mas com limites rígidos e, com isso, incompleta. Não pretendo, no entanto, me alongar nessa polêmica.

racialista, que apaga o negro, inclusive, como terceira pessoa do discurso e atribui o fim do sistema escravocrata a um acaso da cultura ocidental, negando ao negro o direito de ser seu principal sujeito. Essa segunda visão leva àquilo que Appiah (1997) define como racismo extrínseco, como segue:

Para um racista intrínseco, nenhuma quantidade de provas de que um membro de outra raça é capaz de realizações morais, intelectuais ou culturais, ou de que tem características que, em membros de sua própria raça, haveriam de torná-lo admirável ou atraente, serve de base para tratar essa pessoa como ele trataria os membros similarmente dotados de sua própria raça. [...] A diferença fundamental entre os “-ismos” intrínseco e extrínseco é que o primeiro declara que um certo grupo é objetável, sejam quais forem seus traços, ao passo que o segundo fundamenta suas aversões em alegações sobre características objetáveis (APPIAH, 1997, p. 35).

Aqui Appiah (1997) empreende bem a discussão sobre a visão de raça desde o século XIX. Sobretudo entre intelectuais brancos no Brasil (mas ele também se refere em sua obra aos pan-africanistas norte-americanos), a ideia de raça que era vista pelas lentes do racialismo do século XIX eram, por assim dizer, parte de um racismo intrínseco. É o caso de estudidosos como Silvio Romero, que combatia como poucos a qualidade da obra de Machado de Assis, justamente por suas origens negras (SCHNEIDER, 2018) e Nina Rodrigues, que, ao ser um dos pioneiros da medicina legal no país, fez sua trajetória estudando a suposta inferioridade dos negros e cuja pesquisa tem, inclusive, servido de base a estudos de diversas áreas sobre os povos negros no país. Pouco a pouco, vozes como Gilberto Freyre (1936), numa postura que, como chama Appiah (1997), pode ser reconhecida como racismo extrínseco, passam a formular ideias sobre raça numa tentativa de contra-acatar a visão inicial racialista.

É necessário, no entanto, reconhecer que tanto Freyre (1936) quanto Getúlio Vargas, que nomeio nesta tese como culturalistas racialistas, pensavam estar combatendo uma ideologia racialista proveniente do século XIX que, entre nós, logrou maior tradição no movimento eugenista brasileiro31e, como já dissemos, nos trabalhos do médico Nina Rodrigues. Como exemplo disso está a legalização da prática da capoeira (1940)32 e do direito da liberdade ao culto religioso (1946)33, ambos durante a era Vargas. No entanto, o mesmo reconhecimento de unidade nacional, que legaliza e reconhece esses signos supostamente nacionais, os assimila e deles se apropria, os apagando em seus registros de resistência que comemorar a figura cordial da mistura supostamente harmônica e cordial do povo brasileiro

31 Veja aqui < https://pt.wikipedia.org/wiki/Movimento_eug%C3%AAnico_brasileiro>. 32 Ver mais em < https://pt.wikipedia.org/wiki/Capoeira#Hist%C3%B3ria>.

(em que o negro não é visto como sujeito), e em que o principal sujeito reforçado como brasileiro é o mestiço34, fundamentou o fim da chamada Frente Negra Brasileira, o primeiro partido negro brasileiro, quando do decreto presidencial que extinguiu todos os partidos em 193735. Portanto, mesmo reconhecendo que tinha que transformar parte da branquitude,36a Frente Negra Brasileira foi traída pela necessidade de apagar aquilo que, nos negros, não lembrasse miscigenação, ao passo que os brancos continuavam se branqueando para produzir, com isso, distinção de uma sociedade que, no passado, foi escravocrata e, com isso, passaram a produzir um afastamento de sua culpa por racializar. Ou seja, tanto o racialismo quanto o culturalismo racialista apagam o negro, apagando dele sua identidade de sua autoria no processo de significação da história brasileira, negando a ele o status de nacional e lhe sujeitando ao lugar obrigatório de “limpar” a família a fim de sobreviver.

Por outro lado, o problema de Appiah (1997), ao tratar desse tema que abranjo para tratar dos sentidos da raça e do racismo, e suas diversas faces, reside nas mesmas limitações teóricas que enxergo em Joel Rufino dos Santos (1988), e em tantos outros colegas, e em mim mesmo, ao falar de racismo. Antes se faz uma imensa introdução sobre o sentido de racismo de maneira sui generis como se nós estivéssemos ali didaticamente ensinando aos brancos, nossos leitores, o que é racismo, e isso devesse ser mesmo nossa obrigação. No caso de Appiah (1997), ao contrário de Mbembe (2014), não parece existir uma diferenciação de lócus de enunciação entre brancos e negros quanto aos sentidos do racismo intrínseco e extrínseco, sendo que, ao que parece, essa teoria pode se tornar, sem risco, universalmente usada para quaisquer composições raciais.

De fato a divisão sobre os mais diversos sentidos ideológicos de raça nos faz alcançar com mais propriedade os sentidos de racismo. Tal como Mbembe (2014), Guimarães (2009) diz que raça é um conceito relativamente jovem na história da humanidade, revelando, inclusive, seu uso em peças literárias sobretudo a partir das grandes navegações eurocêntricas. Por isso, é preciso a partir desse ponto distinguir a escravidão moderna (com sequestro para fins de construção de um sistema de colonialidade e capitalismo na

34 É fundamental ao leitor, para compreender a leitura de mestiço pela era Vargas, uma atenta leitura de Os Sertões de Euclides da Cunha. Nela o mestiço passa a ser comemorado como uma raça metafísica do brasileiro

cordial.

35 Veja mais sobre a Frente Negra Brasileira aqui < http://www.palmares.gov.br/?p=2913>.

36 A Frente Negra Brasileira chamava de branquitude o poder inconsciente do branco perante o poder e

branquidade o status de todos os brancos. Portanto, não se acreditava que todos os brancos são racistas. Alguns brancos poderiam, portanto, negar ou, como se diz no inglês, disavow, sua própria identidade branca ligada ao poder. A própria extinção da frente é o resultado do fracasso dessa tática a meu ver. Os brancos são figuras indissociáveis do signo universalista que os colocou no mundo. É possível, no entanto, ser racista e não reproduzir nem o racialismo culturalista e nem o racialismo.

colonialidade/modernidade) da escravidão antiga (que existia em todo o mundo, e também, por razões de ser, na África, como parte do mundo), onde não havia o signo raça enquanto tal.

Em minha teoria aqui sendo explorada quero acrescentar que essa nomeação é o que nos leva à separação de um fazer no mundo racial que separa, em termos de escravidão, o mundo antigo do mundo moderno. Trata-se aqui, expandindo a teoria de Gates Jr. (1988), da mudança desse signo de um simples nome a um significante com significado completamente ligado à construção da colonialidade/modernidade.

Por outro lado, ao não se atentarem ao papel da linguagem como construtora desse processo, Guimarães (2009) e Appiah (1997) parecem discordar. Para Guimarães (2009), o outro parece mesmo acreditar na ideia de uma essência racial dada às inúmeras tentativas de tratar das questões de traços. Ele, no entanto, se inscreve no grupo que entende que raça é uma interpretação da cultura. Eu, neste trabalho, me inscrevo tanto na visão de Gates Jr. (1988) sobre a possibilidade de o sujeito modificar a língua e, com ela, seus sentidos geradores iniciais, como a partir de Mbembe (2014) e Chalmers (2013) sobre raça como uma fantasia política que, ao passo em que o negro não acredita em si como coisa significada, usa a raça a ele imposta para gerar sua luta contra o racismo.

De outro modo, o próprio Guimarães (2009) parece revisar sua visão de raça como interpretação meramente cultural ao tratar dos casos em que há uma discussão sobre racismo, sem um correspondente em raça. É o caso de inúmeros estudos nos Estados Unidos que usam os latinos para falar de raça/racialidade sem, assim, distinguir etnicidade e raça, ao usar racismo como mero efeito de sentido para falar de uma discriminação social:

Sem dúvida, pode-se usar o termo “racismo” como uma metáfora para designar qualquer tipo de essencialismo ou naturalização que resultem em práticas de discriminação social. Tal uso é, contudo, frouxo quanto à ideia de “raça” (sic) encontra-se empiricamente ausente e apenas empresta um sentido figurativo ao discurso discriminatório (GUIMARÃES, 2009, p. 36).

Nesse ínterim, o problema central em se tratar qualquer preconceito como racismo, nesses casos, reside naqueles limites estabelecidos por Tope Omoniyi (1999), ao situar a discussão, a partir de sua experiência linguística e racial na África, não na questão racial, mas nos limites entre religião, regiões urbanas e rurais e etnicidade. Ao acabar aquele texto, o autor pergunta “Há uma conceito de etnicidade nos Estados Unidos? Se sim, como a linguagem ajuda a distingui-lo de raça e nacionalidade?”. Essas perguntas podem ajudar a fornecer respostas a tendências compostas majoritariamente em trabalhos de linguistas nos Estados Unidos e Canadá como Flores e Rosa (2015) ou Kubota e Lin (2006).

De fato, o que fez, ainda que de maneira sutil, Omoniyi (1999), ao situar sua experiência na África, é dizer que, para os africanos, raça não interessa, a não ser como conceito que foi imposto de fora para dentro e, que, para tanto, ele precisa responder. As fronteiras étnicas, religiosas e regionais são, portanto, aquilo que desenham o que se quer como identidade.

Portanto, para que falar de raça e racismo? Ainda faz sentido usar esse termos, dada a extrema complexidade de seu conceito e suas acepções diversas? Guimarães (2009) nos alerta que o antirracialismo não produziu necessariamente antirracismo, mas, em nosso caso singular, o mito da democracia racial dado que, ao apagar a discussão, se fomentou a visão de que vivíamos num país sem racialização.

Bonilla-Silva (2010) mostra em sua pesquisa que, no caso dos Estados Unidos, essa tendência também se confirmou. A maioria dos entrevistados de sua pesquisa, por exemplo, tentou não usar palavras usadas nos tempos das leis Jim Crow de segregação racial, ao passo que usavam outros termos de racialização. Em uma pesquisa aqui no Brasil, com o objetivo de perceber a relação entre racismo cordial e racismo explícito, Turra e Venturi (1995) tiveram um resultado impactante. No levantamento, 90% dos entrevistados admitiram que há racismo no Brasil. Porém, mesmo indicando que havia racismo no Brasil, 96% não se identificavam como racistas.

Em outras palavras, o racismo é uma instituição colonial do Estado, do mercado e da comunidade usado para nomear, dominar e explorar povos e que, no nosso caso negro, é resultante de um intenso tráfico comercial de negros africanos que desterritorializou o corpo negro a ponto de que suas origens territoriais, culturais e econômicas passem apenas a aparecer como origem negra (GILROY, 2001), e cujo tráfico foi mantido por um sistema colonial perverso que cria na raça uma fantasia de dor e horror (MBEMBE, 2014) para os sujeitos racializados, mas de também consequências avassaladoras, como é o caso do fascismo, para a própria branquitude moderna (CESAIRE, 1971),37 além da possibilidade de

37 Eu estou sempre falando de branquitude nesta tese sem, muitas vezes, apresentar minhas inspirações. Uma

delas é Cesaire (1971) ao compreender que, após racializar o mundo inteiro, e o negro, por conseguinte, o europeu entrou na crise de seu próprio humanismo através do fascismo. O fascismo é, portanto, um episódio que acontece após o esgotamento de todo o projeto escravocrata, num momento que o próprio branco europeu já não consegue lidar com a miscigenação que criou com o regime escravocrata, passando ele próprio a produzir seus monstros humanistas, como é o caso de Hitler. Porém, esta análise leva a crer, como constatei em Nascimento (2019), o antifascista muitas vezes ignora que, antes do fascismo (que também foi, em alguma medida, uma forma de racialização dos brancos entre eles) veio o racismo e que, portanto, antes de reconhecer e fazer tribunais contra o fascismo, é necessário que as pessoas brancas sejam culpabilizadas pelos sistemas raciais que produziram nessa grande aventura colonial.

resistência enquanto ressignificação linguística, discursiva e histórica (NASCIMENTO, 2019; MOURA, 2014).