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CAPÍTULO 1- O “limão” o racismo como estruturante das relações de poder: raça, racismo,

1.4 Políticas da colonialidade/ decolonialidade

1.4.2 A Europa como ponto-zero do mundo

De acordo com Grosfoguel (2016), o racismo reflete hierarquias de superioridade e inferioridade no sistema mundo. Adoto, para iniciar o debate em torno da Europa como centro do mundo, o pensamento de Ramon Grosfoguel (2016), cujas análises reforçam dois aspectos iniciais para este debate: a) as elites ocidentalizadas do Terceiro Mundo reproduzem máscaras raciais de inferioridade / superioridade para manter o colonialismo; b) O privilégio racial tem implicações fundamentais para a forma como as opressões de classe, gênero, sexo ou de nação/ colonial são vividas.

Em primeiro lugar, penso, como Grosfoguel, que os intelectuais são, na maioria das vezes, as próprias elites ocidentalizadas do Terceiro Mundo que, investidas em forma de autoridades, reproduzem privilégios raciais. Em segundo lugar, não obstante serem esses intelectuais as próprias elites brancas desses países, são aqueles que muitas vezes estudam objetos científicos sobre negritude a partir de um ponto de vista branco. Quando o objeto é sobre negros ou pessoas pobres, a perspectiva epistêmica é sempre orientada a partir de políticas da colonialidade. Assim, tomando de empréstimo a visão pós-estruturalista de Foucault sobre genealogia, arqueologia do saber e episteme:

Essa organização [discursiva da episteme] compreende, inicialmente, formas de sucessão e, entre elas, as diversas disposições das séries enunciativas (quer seja a ordem das inferências, das implicações sucessivas e dos raciocínios demonstrativos; ou a ordem das descrições, os esquemas de generalização ou de especificação progressiva aos quais obedecem, as distribuições espaciais que percorrem; ou a ordem das narrativas e a maneira pela qual os acontecimentos do tempo estão repartidos na sequência linear dos enunciados) (FOUCAULT, 1997, p.63).

Foucault (1997), em sua filosofia limitada à modernidade europeia, permite pensar em sua análise da formação discursiva da episteme, que o conhecimento não pode ser neutro e, por isso, é possível dizer que a Europa vai constituindo, ao invadir territórios, e ao dizimar e escravizar populações não-brancas, o sentido do que é e do que não é Ocidente (SAID, 1990), e assim aprofunda o mito da modernidade entre esses povos.

Como minhas análises aqui são de um linguista, ainda que, desde as discussões pós- estruturalistas reconheçamos que a linguagem é um meio de montar o arcabouço de epistemologias, construir ontologias e (re) produzir ideologias, entendo aqui que a linguagem não é só uma forma de reproduzir, classificar, criar e mudar o mundo à nossa volta, mas a

própria uma forma de epistemologia, genealogia e ontologia que constitui os sujeitos. Se admitirmos que as epistemologias ocidentais são centradas na cultura supremacista branca e europeia, podemos compreender como corretas as principais ponderações de Fanon (2008) sobre a vinculação do pensamento do colonizado pelas lentes do colonizador. Assim, acredito ser através da linguagem que o mito da existência de uma modernidade se reverbera em forma de agenda política, como é o caso da visão da Europa como ponto de partida do mundo. Para Grosfoguel (2007), refletindo sobre o universalismo eurocêntrico:

O mito da autoprodução da verdade pelo sujeito isolado é uma parte constituinte do mito da modernidade de uma Europa autogerada e isolada que se desenvolve sozinha sem depender de ninguém no mundo. Assim, como o dualismo, o solipsismo o mito da autoprodução é constitutivo da filosofia cartesiana. Sem solipsismo, não existe um mito de sujeito com racionalidade universal que se confirme como tal. Aqui inaugura-se a ego- política do conhecimento, que não é senão uma secularização da cosmologia cristã da teopolítica do conhecimento (GROSFOGUEL, 2007, p. 64).

De acordo com os pensamentos de Grosfoguel acima, o mito de uma Europa autossuficiente foi criado a partir das ideias cartesianas. Isso diz respeito à ideia de uma Europa que supostamente não precisa de nada para ser completa e ignora, por isso, sua história enquanto continente colonizador, se desresponsabilizando do horror que causou através do colonialismo. Como exemplo disso, o White Paper on Intercultural Dialogue, um documento lançado Pelos Ministros das Relações Exteriores do Conselho da Europa da União Europeia em 2008 para tratar da atual fase de crise imigratória na modernidade europeia, promete buscar o fortalecimento de uma política multiculturalista de “tolerância” aos outros, como se confere a seguir:

Nas últimas décadas, a diversificação cultural ganhou ímpeto. A Europa atraiu migrantes em busca de uma vida melhor e dos requerentes de asilo de todo o mundo. A globalização tem comprimido espaço e tempo em uma escala sem precedentes. As revoluções nas telecomunicações e nos meios de comunicação - particularmente através do surgimento de novos serviços de comunicação como a Internet - tornaram os sistemas culturais nacionais cada vez mais porosos. O desenvolvimento dos transportes e do turismo trouxe mais pessoas do que nunca ao contato presencial, criando cada vez mais oportunidades para o diálogo intercultural. Nesta situação, o pluralismo, a tolerância e a amplitude são mais importantes do que nunca (CONSELHO DA EUROPA, 2008, página 13).

Inicialmente, pregando suposta dignidade e tolerância à diversidade cultural na Europa, o documento diz que, “nas últimas décadas, a diversificação cultural ganhou

impulso” (CONSELHO DA EUROPA, 2008, p.13). Embora admitindo que o fenômeno da imigração não é novo e existiu em todos os tempos, o documento formalmente diz que, atualmente, isso está atraindo imigrantes procurando uma vida melhor. O documento ignora séculos de colonização, quando países da Europa exploraram, escravizaram e dizimaram vidas humanas na América, África e Ásia, negligenciando o fato histórico de migração de europeus para as Américas, África e Ásia. Afinal, segundo eles, se os imigrantes estão procurando uma vida melhor, isso se dá não porque as elites europeias tenham colonizado a maior parte das civilizações do planeta, mas, naturalmente, porque essas pessoas não têm condições perfeitas para o bem-estar social em seus países, sem que tenha havido uma história de colonialismo europeu anterior. Assim, como esse pensamento quer fazer crer, a globalização parece ser o único culpado por esse novo fenômeno migratório, e não o colonialismo ou o neocolonialismo e seus estruturais sistemas de racismo.

Em outro documento lançado mais tarde no mesmo ano de 2008, em resposta a esse documento governamental, organizações da sociedade civil europeia lançam o chamado manifesto arco-íris (rainbow paper) para supostamente representar a diversidade cultural. No entanto, como podemos ver naquele documento, a ideia de competência como categoria está sempre separando o "nós" (competentes) do "eles" (incompetente). Por exemplo, o documento diz que "as pessoas precisam estar equipadas com competências para se juntarem. Capacidade e competências devem ser criadas para o Diálogo Intercultural "(FRANK, 2008, p.4), reconhecendo os imigrantes como pessoas não competentes para o trabalho no mundo europeu. Como vimos com Moura (2014) e Azevedo (1987), essa mesma alegada visão de incompetência dos não-brancos levou à abolição da escravatura no Brasil e a consequente substituição de negros por imigrantes europeus.

Analisando que os imigrantes de que trata o Manifesto Arco-íris muitas vezes tinham empregos formais em seus países antes da imigração e que eles também podem ter profissão, ou uma graduação, qual é a concepção de competência entendida pelos autores de tal documento, lançado no mesmo ano e para supostamente corrigir o White Paper on

intercultural dialogue do Bloco Europeu? Como os excertos parecem mostrar, as cores

podem mudar, mas as posturas epistêmicas parecem não mudar.

Ao tratar dessa postura eurocêntrica, Castro-Gómez (2007) cunha o conceito de uma Europa que é representada como um ponto-zero do mundo através de um universalismo. Para ele, o ponto-zero seria um ponto de partida do mundo, supostamente neutro e autossuficiente, de onde todo o resto do mundo se torna dependente. Assim, ao se construir como ponto-zero do mundo, a Europa se firma através de universalismos coloniais. Tomando os trechos

anteriores como uma prova de como as autoridades europeias se comportam perante diálogos interculturais, precisamos começar pela descolonização do conhecimento, que é o principal passo para desconstruir o universalismo ocidental:

O universalismo é visto não apenas como o lugar onde o conhecimento é produzido que leva ao progresso moral ou material da sociedade, mas como o centro vigilante dessa legitimidade. Em ambos os modelos, o universalismo funciona mais ou menos como panóptico de Foucault, porque ele é concebido como uma instituição que estabelece os limites entre o conhecimento útil e inútil, entre doxa e episteme, entre o conhecimento legítimo (isto é, "validade científica") e ilegítimo conhecimento (CASTRO- GÓMEZ, 2007, p. 81).

Assim, se o universalismo produz epistemologias, ele é a grande força vigilante no

Ocidente. Citando Foucault, Castro-Gómez (2007) lembra a suposição foucaultiana sobre

como os objetos epistêmicos são construídos, ao passo que, para incluir um objeto epistêmico, é preciso excluir diversos outros. As fronteiras do conhecimento ocidental, ao impor sua legitimidade, legitimam o que é conhecimento e o que não é. Os White Paper e Raibow

Paper, que é o documento lançando por organizações europeias para se contrapor ao primeiro,

confirmam esse comportamento racista europeu ao construir a noção de outro, mesmo com a melhor das intenções.

Assim, quando o Ocidente racializa, ele se descreve como universal, sendo o branco o humano enquanto os outros a “raça”, levando à Europa a se nomear enquanto ponto zero do

mundo, como lugar que pode falar de tudo e de todos de maneira universal:

Bem, é esse tipo de modelo epistêmico que eu quero chamar de hibridismo do ponto zero. Nós poderíamos caracterizar este modelo, usando a metáfora teológica do Deus Absconditus. Como Deus, o observador observa o mundo de uma plataforma de observação não observada, a fim de gerar uma verdadeira observação para além da dúvida. Como o deus da metáfora, a ciência moderna ocidental está situada fora do mundo (no ponto zero) para observar o mundo, mas, ao contrário de Deus, ela não dá uma olhada orgânica no mundo, mas apenas um olhar analítico. A ciência moderna procura estar localizada no ponto zero de observação para ser como Deus, mas não pode observar como Deus. É por isso que falamos sobre hibridismo, sendo pecado do excesso quando os mortais querem ser como os deuses, mas não poder ser, eles incorrem no pecado do hibridismo. Isto é mais ou menos o que acontece com a ciência ocidental na modernidade. Na verdade, o hibridismo é o grande pecado do Ocidente: Ter rum ponto de vista que predomine em todos os outros pontos de vista, mas sem esse ponto de vista pode ter um ponto de vista (CASTRO-GÓMEZ, 2007, p.83)55.

55 Tradução minha do trechoPues bien, es este tipo de modelo epistémico el que deseo denominar la hybris del

Consequentemente, a visão de ponto zero, lugar de onde a Europa se enuncia, implica que, se os imigrantes têm que adaptar suas vidas à Europa, e essas organizações europeias recomendam a inclusão deles com a condição de que eles também “recebam” algumas competências básicas, isso permite situar o problema da ideia neoliberal de “competências básicas” que as políticas de letramento têm difundido na América Latina.

Da mesma forma, as formas de universalidade criam as amarras coloniais entre nós, de maneira que todos os aspectos do cotidiano passam a ser vistos através dessa lente de uma Europa como ponto-zero. Mesmo a visão cronológica de um mundo em que os habitantes mais antigos derivam da África passa a ser suplementada pela visão brancocêntrica de um Ocidente cuja noção de vida e organização parte do mundo europeu. Certamente, a escravidão e o trafico negreiro do Atlântico, bem como a dizimação dos indígenas, vão gerando uma regularidade de violência contra o não-branco, e, especialmente, por suas marcas fenotípicas, cujos signos só podem se justificar pela visão de extinção de tudo aquilo que não é parecido com o europeu, cujo único e absoluto retrato correspondente no Brasil, segundo os brancos brasileiros, é o branco.