• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1- O “limão” o racismo como estruturante das relações de poder: raça, racismo,

1.4 Políticas da colonialidade/ decolonialidade

1.4.1 O mito da modernidade

O mito da modernidade é o primeiro passo para construção de uma colonialidade a partir do regime jurídico imposto pelo colonialismo nas Américas. A visão de modernização pela invasão é uma das maneiras invocadas pelo colonizador ao se proclamar conquistador de um espaço que não é dele, por meio de inúmeros privilégios raciais, conforme nos aponta Enrique Dussel:

A colonização da vida cotidiana do índio, do escravo africano pouco depois, foi o primeiro processo “europeu” de “modernização”, de civilização, de “subsumir” (ou alienar) o Outro como “si mesmo”; mas agora não mais como um objeto de uma práxis guerreira, de violência pura – como no caso de Cortês contra os exércitos astecas, de Pizarro contra os Incas – e sim de uma práxis erótica, pedagógica, cultural, política, econômica, quer dizer, do domínio dos corpos pelo machismo sexual, da cultura, de tipos de trabalhos, de instituições criadas por uma nova burocracia política (DUSSEL, 1993, p. 50).

Dessa forma, a modernidade é um mito que, para se construir, necessitou interditar e criar conceituações, entre elas a noção de raça. Esse mito, portanto, constrói o branco como raça universal e as demais raças como raças específicas. Isso leva a um contexto muito particular em que o branco não desnuda sua racialidade de maneira a achá-la universal e, portanto, olha o mundo a partir de sua lógica binariamente construída. Não raramente, isso leva às mesmas confusões científicas que garantiram que o mito da modernidade consignasse o capitalismo como seu maior ator político e econômico e a ciência como garantidora desse ator e do próprio mito da modernidade. Como Robinson (2000) nos indica a seguir, ao descrever aquilo que ele chama de capitalismo racial:

A criação do preto se deu obviamente ao custo dos imensos gastos psíquicos e intelectuais de construção do Ocidente. O exercício foi obrigatório. Foi um esforço mensurar a importância do trabalho negro cuja posse serviu à economia global e foi esculpida e dominada para configurar as classes mercantis da Europa ocidental (ROBINSON, 2000, p. 4).52

Assim, o capitalismo é racial por excelência, pois, para se constituir enquanto tal, precisou do trabalho negro através da escravização e do imenso tráfico negreiro no Atlântico.

A visão de modernidade, portanto, parte de um mito de invasão, em que o colonizador, para se valer dos benefícios de explorar outros povos, cria o mito da narrativa cartesiana, em que ele é racional enquanto os demais são irracionais (DUSSEL, 1993). No Brasil, essa visão está amplamente documentada tanto nos arquivos de início da ocupação territorial, no início

52 Tradução minha do trecho “The creation of the Negro was obviously at the cost of immense expenditures of

psychic and intellectual energies in the West. The exercise was obligatory. It was an effort commensurate with the importance Black labor power possessed for the world economy sculpted and dominated by the ruling and mercantile classes of Western Europe”.

do século XVII, como nos documentos das assembléias e câmaras de parlamentares que falam da suposta inferioridade negra (MOURA, 2014). No entanto, como quero argumentar em minha escrita pós-tese, esse mito da modernidade no Brasil se inicia a partir da língua, no momento em que, na expressão máxima dessa ocupação do território, a Língua Portuguesa perde papel para a Língua Geral53 enquanto língua de comunicação na colônia, sendo que o Estado português precisa intervir. Assim, nesse contexto o Estado português afirmou que:

Sempre foi máxima inalteravelmente praticada em todas as Nações, que

conquistaram novos Domínios, introduzir logo nos povos conquistados o

seu próprio idioma, por ser indisputável, que este é um dos meios mais eficazes para desterrar dos Povos rústicos a barbaridade dos seus antigos

costumes; e ter mostrado a experiência, que ao mesmo passo, que se

introduz neles o uso da Língua do Príncipe, que os conquistou, se lhes radica também o afeto, a veneração, e a obediência ao mesmo Príncipe. Observando pois todas as Nações polidas do Mundo, este prudente, e sólido sistema, nesta Conquista se praticou tanto pelo contrário, que só cuidaram os primeiros Conquistadores estabelecer nela o uso da Língua, que

chamaram geral; invenção verdadeiramente abominável, e diabólica,

para que privados os Índios de todos aqueles meios, que os podiam civilizar, permanecessem na rústica, e bárbara sujeição, em que até agora se conservavam. Para desterrar esse perniciosíssimo abuso, será um dos

principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas respectivas

Povoações o uso da Língua Portuguesa, não consentindo por modo algum, que os Meninos, e as Meninas, que pertencerem às Escolas, e todos aqueles Índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem da língua

própria das suas Nações, ou da chamada geral; mas unicamente da

Portuguesa, na forma, que Sua Majestade tem recomendado em repetidas ordens, que até agora se não observaram com total ruína Espiritual, e Temporal do Estado (Grifos meus)54.

Esse documento é um dos mais antigos a demonstrar uma visão do Estado português sobre os indígenas brasileiros, em que, como pontuam Dussel (1993) e Robinson (2000) sobre a modernidade capitalista, se permite construir um mito de modernidade do europeu frente ao colonizado ao construir o europeu como moderno/racional enquanto se impõe colonialidade nos territórios invadidos. Entendemos esse mito como ponto de partida para a construção de uma visão racionalista que subsume e imprime colonialidade em todos os atos e políticas da atualidade, desde os gestos mais simples e sutis até a formatação de todas as formas de poder.

53 A Língua Geral é considerada, para muitos estudiosos, línguas de origem indígena, com traços de diversas

línguas indígenas, com variação regional de acordo com cada província nos século XVII e XVIII e que passaram a ser o elo de comunicação entre os colonizadores e os povos indígenas (RODRIGUES, 1996). Um dos elos da reforma pombalina foi o combate à Língua Geral e a instituição exclusiva da Língua Portuguesa, como se pode perceber pelo documento que citarei a seguir.

54 Disponível em <http://lemad.fflch.usp.br/sites/lemad.fflch.usp.br/files/2018-