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6.1. DEFINIR O TURISMO

“O turista é também um ser histórico. Não um ser acabado, mas um ser em contínua construção, em contínua formação. O turismo, por sua vez, é experiência” (Panosso Netto, 2011: 35)

Foto nº 7: Ilha de Icodub (Guna Yala – Panamá), 16 de agosto de 2004

Autoria: Xerardo Pereiro

É difícil definir o turismo com clareza, precisão e delimitação, devido à sua mocidade, pelo fato de ser uma atividade multidisciplinar (cf. Sancho, 2001: 35) e, ainda, polissémica. O debate académico é amplo existindo variegadas definições que intentam compreender este fenómeno tão complexo (cf. Co- hen, 2004; Holden, 2006; Marrero Rodríguez et al., 2009; Dann e Parrinello, 2009, González Damián, 2009). Não há um conceito único e absoluto de tu- rismo, ele está em constante redefinição. Porém, é necessário ter um quadro de referência que nos permita ter uma linguagem compreensível para os in- vestigadores e agentes sociais do turismo. No caso europeu, os estudos do tu- rismo são antigos; existem desde os anos 1920 estudos acerca desta atividade tão complexa (cf. Dann e Parrinello, 2009), sendo anteriores ao boom turístico ou turistificação (Picard, 1995) que ocorreu após a segunda guerra mundial.

De acordo com Mário Carlos Beni (2007: 34-40) podem ser encontradas na literatura científica e no mercado turístico três tipos de definições de tu- rismo: a) económicas; b) técnicas; c) holísticas. As definições económicas do turismo reconhecem apenas as implicações económicas ou empresariais do turismo, sendo econocéntricas, visam conhecer o turismo enquanto indústria (s), setor ou atividade económica transversal. É necessário esclarecer que na literatura anglo-saxónica o sentido de indústria turística – qualquer atividade económica produzida em série- é diferente do sentido habitual, utilizado na Ibero América – produção de bens manufaturados em série-. Em segundo lu- gar, as definições técnicas procuram uma base estatística comparável ao nível internacional (ex.: OMT) e apresentam uma preocupação com a medida dos mercados turísticos (ex. movimento de turistas, despesas dos turistas).

O terceiro tipo de definições procura abranger a complexidade do fenó- meno turístico, sendo central a definição de turista, e procuram adotar abor- dagens interdisciplinares e multidisciplinares para compreender o turismo. A investigação do turismo seria nesta perspetiva holística e humanista: “a study of man away from his usual habitat, of the industry which responds to his ne- eds, and the impact that both he and the industry have on the socio-cultural, economic,and physical environments” (Jafari, 1977: 8) - “o estudo do ser hu- mano longe do seu local de residência, da indústria que satisfaz as suas neces- sidades, e dos impactos que ambos, ele e a indústria, geram sobre os ambientes físico, económico e sociocultural da área recetora” (tradução nossa).

Em relação às definições técnicas, estas destacam todas as conceptuali- zações oferecidas pela Organização Mundial do Turismo (OMT), de teor quantitativo, estatístico e jurídico, e que têm como fim contabilizar e medir o turismo quantitativamente e controlá-lo através da legislação. Vejamos de seguida uma breve evolução desta conceptualização.

A institucionalização mundial do turismo passa pela criação em 1934 da União Internacional de Organismos Oficiais para o Turismo (UIOOPT), que em 1947 passou a designar-se União Internacional de Organismos Oficiais de Turismo (UIOOT) (IUOTO nas suas siglas em inglês, International Union of Official Travel Organizations), com sede provisória em Londres (cf. http:// www2.unwto.org/es/content/historia ), adquirindo em 1948 o estatuto consul- tivo da ONU. Em 1963, numa conferência da ONU ocorrida em Roma sobre viagens internacionais e turismo começam a adotar-se as definições estatísti- cas e técnicas para medir o turismo, diferenciando-se visitante, turista e excur- sionista. Nesta conferência adotou-se uma das primeiras definições técnicas de turismo: “Atividade desenvolvida por uma pessoa que visita um país dife- rente daquele de sua residência habitual, com fins distintos do de exercer uma ocupação remunerada, e por um período de tempo de pelo menos 24 horas” (IUOTO, 1963). Esta definição integra a noção de visitante, foca o turismo

internacional e nega o turismo de negócios. A OMT vai suceder à UIOOT na institucionalização mundial do turismo em 1975, com sede em Madrid e participada por mais de 150 países, e acabou por converter-se numa agência especializada e reconhecida da Nações Unidas (ONU).

A OMT define inicialmente o turismo como a estadia de uma pessoa fora da sua morada habitual por mais de 24 horas e por motivos de lazer, descanso ou aventura. Esta definição serviu para diferenciar dois tipos de visitantes (cf. OMT, 1994; 1995): os turistas e os excursionistas, sendo estes últimos definidos pela OMT como aqueles que visitam um local turístico e que regressam à sua morada em menos de 24 horas, isto é, visitantes de dia. A OMT inicialmente definia o turismo como um movimento de pessoas motivados pela recreação, todavia, na década de 1990, acaba por aceitar os negócios como motivo de viagem turística (cf. OMT, 1994; Sancho, 2001).

Nessa mesma linha, em 1994 a própria OMT afirma que “o turismo com- preende as atividades realizadas pelas pessoas durante suas viagens e estadas em lugares diferentes do seu entorno habitual, por um período consecutivo inferior a um ano, por lazer, negócios ou outros” (cf. OMT, 1994; Sancho, 2001: 3). Esta definição é ampla, flexível e integra como traços as motivações do turista, a estadia temporária, as atividades e a localização fora do lugar habi- tual de residência. Sem descurar estas definições técnicas como uma referência incontornável, um dos seus problemas é a polissemia do conceito turismo e também o de turista, faltando precisão e maior consenso. Um exemplo é a pro- dução do conceito de visitante como unidade social do turismo e a sua diferen- ciação entre turista (pernoita no lugar de visita), excursionista (visitante de dia que não pernoita) e passageiro em trânsito (de passagem por um lugar e em viagem para outro, ex. aeroporto ou cruzeiro…). Além do mais, ao nível esta- tístico, se uma pessoa realiza duas viagens turísticas e uma pessoa nenhuma, a definição estatística atribui em média uma viagem a cada uma. Outro proble- ma é a dificuldade em obter informações estatísticas fiáveis nalguns contextos geopolíticos, já que por exemplo, é difícil conhecer com rigor o número de pessoas que ficam alojadas em casas particulares de alguns destinos turísticos. Convém também mencionar que estas definições técnicas permitem que quase qualquer pessoa que se desloque possa ser considerada turista, o que representa que afinal o problema de ambiguidade e delimitação concetual e operativa continua (Francesch, 2004). Acontece que há um grande interes- se político e empresarial em salientar os elevados números no turismo, para realçá-lo enquanto atividade económica e empresarial e colocá-lo na agenda social e política dos países e instituições mundiais.

Em relação às definições de tipo holístico e humanístico, estas abordam o turismo de uma forma compreensiva, com o intuito não de medir o fenómeno

mas de entender o seu funcionamento, a sua forma e o seu significado. Nos princípios do século XX, o turismo foi definido como um movimento espa- cial de forasteiros (Mariotti, 1923) e, no mesmo sentido, Morgenroth (1927; 1929) afirma que o turismo “é a deslocação de pessoas, que temporariamente ausentam-se da sua morada habitual, para satisfação de exigências vitais ou culturais, ou desejos pessoais de diverso tipo, convertendo-se por outro lado em usuários de bens económicos e culturais” (Morgenroth, 1929; citado em Barretto, 2012: 10). Robert Glucksmann (1935; 1939) definiu também o turis- mo como movimento de forasteiros, estadia num lugar diferente da residência, relações com os recetores ou habitantes locais (Glucksmann, 1939; citado em Barretto, 2012: 9-10). Dois autores que também criaram uma definição holís- tica e humanística de turismo foram os suíços Hunziker e Krapf, para quem o turismo é: “A soma de fenómenos e de relações que surgem das viagens e das estâncias dos não residentes, desde que não estejam ligados a uma residência permanente nem a uma atividade remunerada” (Hunziker e Krapf, 1942; cita- do por Barretto, 2012: 11). Esta definição, adotada posteriormente pela Asso- ciação Internacional de Especialistas Científicos em Turismo (AIEST), é um pouco ampla e fenomenológica e não foca questões consideradas hoje relevan- tes para definir o turismo como as motivações do turista, mas na época teve um grande efeito no pensamento sobre o turismo.

Na segunda metade do século XX, a atenção holística ao turismo intensi- ficou-se de forma complementar com as abordagens económico-empresariais e técnico-jurídicas. Não é o nosso objetivo expor aqui todas essas definições, algumas das quais serão focadas nos próximos capítulos, mas sim destacar al- guma delas pelo seu interesse e sublinhar alguns dos significados holísticos do turismo. A primeira a destacar é a definição dada por Alister Mathieson e Geoffrey Wall, para os quais o “Turismo é o movimento provisório de pessoas, por períodos inferiores a um ano, para destinos fora do lugar de residência e de trabalho, as atividades empreendidas durante a estada e as facilidades são cria- das para satisfazer as necessidades dos turistas” (tradução nossa) (Mathieson e Wall, 1982: 1). Destaca-se nesta definição o caráter temporário do turismo, a importância da oferta de serviços e da satisfação das necessidades dos turistas. Nas definições holísticas e humanistas de turismo observa-se uma trans- formação com relação às mudanças sociais (cf. Cohen, 2004; Holden, 2006), mas hoje em dia, estas destacam os seguintes significados do turismo (Smith, 2004):

• Movimento de pessoas (viagem de prazer, mobilidade temporária): desejo de sair de casa, transporte de visitantes, fluxo de pessoas de um lugar para outro, anti sedentarismo, deslocamento, viagem de negócios como turismo. Sentido de regresso a casa, ao lar.

tercâmbios culturais.

• Consumo, entretenimento, atividades, lazer, alimentos, bebidas, even- tos, trabalho.

• Negócio multissetorial, elemento multiplicador da economia.

• Atividade humana multidimensional e complexa: em jogo estão identi- dades, necessidades, desejos, motivações, sentidos, experiências, vivên- cias, convívio, sociabilidade, emoções, corpos…

• O centro é o ser humano (sujeito dos estudos turísticos). • Campo de investigação multidisciplinar.

Portanto, o turismo é um fenómeno histórico e social total (Cohen, 2004; Holden, 2006; Ouriques, 2016), que não pode ser reduzido à economia, à re- presentação, ao discurso ou à simples experiência dos turistas e outros atores que participam no seu campo. Esta emancipação do exclusivo economicismo e da gestão são necessários para se pensar o turismo a partir de perspetivas an- tropológicas, multidisciplinares e interdisciplinares. Também não faz sentido, excluir os contextos económicos, políticos e organizacionais do turismo que conferem sentido e significado a esta atividade humana complexa (cf. Ouri- ques, 2016).