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IDENTIDADE E ALTERIDADE: MODELOS DE INTER PRETAÇÃO

Antropologia e identificações coletivas

4.1. IDENTIDADE E ALTERIDADE: MODELOS DE INTER PRETAÇÃO

Foto n.º 4: Fotografia de camisola do doutoramento em antropologia da Universidade de San- tiago de Compostela (1992-1993): E ti de quen ves sendo?

“Somos existentes porque somos diferentes” (Vicente Risco, citado por Da- vid Cortón, comunicação pessoal, 14-02-2008)

“A identidade não é monolítica, é plástica, variável e complexa” (Cohen, 1994: 2).

O que é ser mirandês? O que é ser português? O que é ser europeu? O que é ser galego? O que é ser mulher? O que é ser jovem? O que é ser velho? O que é ser advogado? O que é ser hispano? O que é ser latino-americano? O que é ser árabe? O que é ser muçulmano?

Estas perguntas colocam a questão da identidade em diferentes níveis: a identidade coletiva, a identidade étnica, a identidade de género, a identidade de idade, a identidade profissional, a identidade nacional, a identidade pessoal, a identidade religiosa. Considerando o nível da identidade coletiva (cf. Cucó e Pujadas, 1990; Lash e Friedman, 1992; Pereiro, 1998; Remotti, 1990; Lisón Tolosana, 1992; 1997), as respostas a “o que é ser português?” ou outras seme- lhantes podem ser de três tipos:

1) Respostas de tipo essencialista, substantivista, psicologista e primordia- lista. Numa resposta essencialista ao problema da identidade, esta define-se como um conjunto de atributos socioculturais apriori, imanentes, perenes, herdados através da alma colectiva preexistente. Estes atributos seriam obser- váveis no comportamento presente e seriam pensados como homogéneos a to- dos os membros do grupo. Para esta postura a identidade coletiva existe desde sempre, sem descontinuidades e sem quebras. A identidade é a sobrevivência de uma “essência” primária nascida em tempos remotos, é uma sobrevivência inata do passado. A cultura é percebida como estática e não poluída, e a tra- dição cultural como algo perene, permanente, fixo e imutável.

A resposta substantivista menciona a identidade, de forma semelhante à perspectiva anterior, isto é, como uma espécie de substância, imaginada como fixa, sacra e intocável. Essa substância transmitir-se-ia desde as raízes cultu- rais, pensadas como próprias, diferentes e autocriadas isoladamente.

Na resposta psicologista, procura-se um paralelismo com uma identidade psicológica de base apriori e substancial. Ex.: “Os portugueses são gente com saudade”, “Portugal: Fátima, Fados e Futebol”. Os discursos psicologistas falam de uma maneira de ser comum que tem como base a partilha de umas dispo- sições psíquicas comuns e de uma personalidade colectiva. Nesta perspectiva existe um preconceito sobre a equivalência do comportamento afirmado entre todos os membros do grupo. Desta maneira poderíamos predizer o comporta- mento social numa interacção.

resultado de uma adesão primordialista, afectiva e emotiva, a uma entidade pre-existente e os seus líderes. A identidade é primordial, mobilizadora e con- gregadora por lealdade e identificação primordial.

Este tipo de respostas é reificado. Elas baseiam-se numa metáfora pseudo- biologicista, genetista, fetichista do “nós”, fundamentalista às vezes. Estas po- sições pretendem definir como puros os seus membros, longe das ameaças do exterior, das misturas e da hibridação, algo empiricamente difícil ou impossí- vel de demonstrar, porque todos os seres humanos resultam de múltiplas mes- tiçagens. Esta postura é monolítica, dura, e levada a um extremo tenta afirmar e legitimar a permanência imutável e o direito a existir de um grupo, nação, estado no presente e no futuro.

A crítica que podemos esboçar face a estes modelos teóricos é que nem todos os membros de um grupo humano se comportam da mesma maneira, sendo que podem ter personalidades diferentes (Vieira, 2009) dentro do mes- mo grupo social. Os grupos humanos são muito diversificados, daí que ido- latrar origens ou aprioris esencialistas possa ter uma função discriminadora. Também pode haver conflitos, tensões, visões do mundo diferentes que afetem coesão da identidade e que não sejam explícitos. As identidades não são essen- ciais aprioris, porém, são construídas e adquiridas pelos próprios sujeitos em processos sociais de seleção complexos (Vieira, 2009).

Um exemplo para a aplicação política destes modelos foi o que ocorreu nos anos 1990 na república ex-soviética da Geórgia, na qual o governo anunciou que privaria de cidadania georgiana os habitantes que não demonstrassem que os seus antepassados haviam vivido nessa república antes de 1801 (Waldron, 1995).

2) Cognitivista. Esta resposta sublinha o conjunto de valores, percepções e normas partilhadas por um grupo, e ainda, a visão do mundo e os conceitos de sociedade, de espaço e de tempo. Os valores e normas condicionariam o com- portamento, mas seriam algo estratégico e útil para os interesses individuais e/ ou grupais. A perceção desses traços culturais comuns implica uma selecção artificial por meio da qual se salientam uns traços e esquecem outros, criando limites baseados numa diferença construída. Exemplos: “Os portugueses são católicos”; “Deus, pátria e família” (Afirmação do Estado Novo).

3) Interaccionista, processual, situacionista e sociohistórica. As identida- des confirmam-se na interacção social, adquirem-se e criam-se em processos sociais, constrõem-se através da socialização e enculturação, expressam-se em discursos, acções simbólicas, textos e contextos. As identidades constrõem-se em processos de negociação social. A identidade não é uma coisa, uma subs-

tância ou essência. Não há traços culturais identitários de validade universal, nem a língua, nem a cor da pele, nem a religião, etc. Desta maneira pode acon- tecer que haja um forte sentido de identidade coletiva diferenciada dentro de uma pluralidade linguística (ex.: Suiça, o povo judeu), dentro de uma colec- tividade sem um território político-administrativo específico (ex.: curdos, ju- deus). Noutros casos a comunidade idiomática não impede a divisão em dife- rentes nações-Estado (ex.: Hispanoamérica).

A identidade é uma definição do ‘nós’ que se estabelece em função dos conteúdos das relações para com os “outros” (confronto “in-out group”). A identidade construi-se historicamente, portanto, está em constante mudança, e apesar da sua aparente permanência no tempo, ela é sempre incompleta. A identidade constrói socioculturalmente a semelhança interna de um grupo pensado como homogéneo (não quer dizer que o seja), e a diferença (hete- rogeneidade e diversidade) face a outros grupos. A identidade alimenta-se da alteridade, está sempre inacabada e em mudança.

Este paradigma interpreta a identidade e os seus símbolos como uma cons- trução sociocultural sempre em processo (Sanmartín Arce, 1993). A identi- dade é processual porque se baseia em processos de identificação e diferen- ciação nos quais se unem e articulam pessoas e interesses vinculados a ideias (cognição e imaginação), sentimentos (emotividade e afetividade), comporta- mentos (práticas e modelos) e símbolos (representações e rituais) (cf. Velasco, 1981; 1986).

Nesta perspetiva entende-se a identidade como uma definição e afirmação do “nós” estratégica para construir uma identidade mutável e complexa. É de sublinhar aqui que existe uma permanente interação entre uns e outros, o que implica redefinições, reinterpretações e recriações da identidade e dos seus símbolos.

Exemplo 1: Portugal teve desde a monarquia de Afonso Henriques onze bandeiras. A actual bandeira é uma bandeira republicana (do Partido Republicano), da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro (aprovada em Assembleia a 19-6-1911), e substituiu as antigas cores brancas com franjas azuis pelo verde- escuro e escarlate, os dois bipartidos (In Jornal de Noticias, 1-12-2000, p. 20).

Exemplo 2: Os “mantones de Manila” é uma prenda de adorno feminina utilizada pelas mulheres espanholas. Associada ao imaginário espanhol, na sua origem foi uma criação da indústria da seda chinesa para exportação desde o século XVIII, primeiro para as Filipinas seguindo-se Espanha, México e Gua- temala (Aguilar Criado, 1999).