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O estatuto epistemológico das ciências humanas e sociais

“As fronteiras disciplinares não se devem tornar vacas sagradas” (Hannerz, 1979: 3-4) Seguindo o pensamento do antropólogo Adolfo Yañez Casal (1996), po- demos afirmar que as Ciências Sociais, nas quais se integra a antropologia, aparecem, enquanto exercício profissional e académico, no século XIX. Este começo não se dá por acaso, uma vez que é nessa altura que se consolida a sociedade burguesa e a modernidade, e que aparecem novos problemas sociais que se manifestam na relação entre o indivíduo e o grupo.

As Ciências Sociais e Humanas têm em comum a relação entre sujeito (humano) e objecto (humanos) de estudo, o que implica falar de um esta- tuto epistemológico próprio, diferente do das ciências naturais. Esta postura não se encontra, porém, isenta de um forte debate científico que remonta à

origem das ciências humanas e sociais. Durkheim (1995) considerava que as ciências humanas e sociais deveriam imitar as ciências naturais e considerar os fenómenos sociais como naturais. Esta perspectiva resume-se na expres- são durkheimiana: “os factos sociais como coisas” (Durkheim, 1995). Autores como Dilthey (1839-1911), Max Weber (1864-1920) e Peter Winch defende- ram, contrariamente, que as ciências sociais deveriam ter um estatuto epis- temológico próprio, porque a ação humana é radicalmente subjectiva. Para estes autores, situados numa linha “compreensiva”, as ciências sociais devem compreender os fenómenos sociais, a partir das atitudes mentais e do senti- do que os agentes conferem às suas acções. Esta perspectiva defende a ideia de que se deve utilizar métodos diferentes das ciências naturais, basicamente qualitativos e indutivos, que nos levem a explicar e/ou melhor compreender a realidade sociocultural. Um exemplo disto é o seguinte (Schütz e Luckman, 1977): se vemos a uma pessoa abrir a porta de uma vivenda, podemos inter- pretar que está entrando na sua casa, mas pode ser que nos enganemos e talvez seja o serralheiro, é por isso que é melhor perguntar aos participantes indo mais além do senso comum. Portanto, o auto-conhecimento e o conhecimento intersubjectivos caracterizariam as ciências humanas e sociais, desde o ponto de vista epistemológico. Dilthey (1992) chegou a afirmar que as ciências so- ciais devem centrar-se não nas causas dos fenómenos sociais, e também nas representações, sentimentos e interpretações dos mesmos.

Karl Popper (1986) foi um participante importante neste debate: afirmou a inexistência de oposição entre as ciências naturais e as ciências humanas e sociais. Para ele, a verdadeira oposição existe entre ciências empíricas e os sis- temas metafísicos. Ao contrário da metafísica, a ciência caracterizar-se-ia por submeter as suas proposições e teorias à falsidade (refutação e verificação). Embora esteja consciente de que a ciência é sempre provisória, Popper recon- hece o direito da mesma a procurar leis gerais. Esta validade limitada signifi- caria pensar o conhecimento científico não como uma verdade irrefutável e absoluta, mas como um conhecimento –“certum” - validade limitada, tempo- rária e provisória.

Thomas Kuhn (2000), em oposição a Popper, distinguirá as ciências pa- radigmáticas (ciências naturais) das ciências pré-paradigmáticas (as ciências sociais). Porquê? Segundo este autor, não existe um paradigma sobre a natu- reza humana que seja aceite por toda a comunidade científica. Isto significa uma clara diferença relativamente às ciências humanas e sociais pois, se bem que paradigmas como os de Newton ou os de Einstein (relativismo) tenham sido aceites por todas as ciências naturais, em ciências humanas e sociais, a diversidade de teorias e princípios sobre a natureza humana é tão ampla que não nos permite falar de paradigma. Paradigma é entendido por Kuhn como o conjunto de teorias e princípios sobre a estrutura e a natureza das coisas, isto

é, um modelo.

Um paradigma seria um conjunto de teorias aceite, por unanimidade, por toda a comunidade científica. Sem entrar a fundo nesta discussão sobre pre- paradigmas e paradigmas (não é este o objectivo desde tema), é, porém, im- portante situar as ciências humanas e sociais, nomeadamente a antropologia na organização da produção social do saber. De acordo com Kuhn (2000) a história da ciência não é um processo cumulativo de conhecimento (talvez o contrário seja certo parcialmente nalgumas áreas como a Medicina), porém um processo construído a saltos, revoluções, mudanças radicais no paradig- ma científico de explicação. Um paradigma é um conjunto de ideias que uma comunidade científica partilha sobre metodologias, teorias epistemologias e ontologias.

Mais tarde a hermenêutica filosófica recupera o significado, a interpre- tação e a compreensão humana do social (Gadamer, 1992). A compreensão está interligada com os preconceitos, a pré-compreensão do intérprete. Outra influência importante na epistemologia das ciências sociais foi o pós-estru- turalismo de Derrida e Foucault. Derrida (1975), através da sua estratégia de desconstrução do saber, questionará a autoridade do investigador social, afir- mando que os investigadores constroem o conhecimento através da subjecti- vidade da linguagem e de estratégias retóricas. Mais do que factos externos ao texto, o conhecimento é uma construção textual do investigador, um relato, uma narrativa. Negam assim o realismo, defendendo a ideia que a investigação é um fenómeno sócio-histórico que é parte do processo social de vigiar e con- trolar, é portanto um exercício de poder. Michael Foucault (2003; 2009) afir- mará que todo saber está intimamente ligado ao poder, e como toda produção de saber é uma forma de exercer poder.

A partir de uma perspectiva antropológica humanista, mais ligada ao con- hecimento epistemológico compreensivo e não ao positivismo nem ao neopo- sitvismo, as características da produção do conhecimento antropológico são as seguintes:

1. Existem outras formas de conhecimento que não o científico – arte, poesia, literatura, fotografia..., com legitimidades sociais diferentes. 2. A realidade constrói-se socialmente através de processos históricos dia-

léticos.

3. Os seres humanos são seres significantes, que dotam de sentido tudo o que fazem, pensam e dizem. Os objectos são conhecidos, através da meditação do sujeito e da sua linguagem.

4. A verdade absoluta não existe, apenas existem algumas certezas – cer- tum. Isto não significa que não se possa controlar, cientificamente, a subjectividade característica das ciências humanas e sociais.

5. Todo o conhecimento científico está exposto a princípios éticos e valo- res. Os resultados de uma investigação científica deveriam responder a duas questões: A quem servem? Para quê? Não têm igual valor ético, o químico que trabalha na criação de uma bomba atómica e o que trabal- ha para descobrir uma medicina que cure o cancro.

6. É impossível publicar um livro de ciências sociais que não influa, dalgu- ma maneira, na sociedade.

7. Qualquer realidade social não pode ser entendida apenas através da quantificação matemática. Questões como a felicidade, a tristeza, a dor, os sentimentos, os afetos não podem ser reduzidas a uma quantificação. O que distingue as ciências humanas e sociais é, portanto, o seu estatuto epistemológico próprio. No entanto, a relação intersubjectiva com o objecto de estudo também pode determinar algumas diferenças. Braudel (1976) afirma: “O que muda é o observatório, a paisagem é sempre a mesma”. E qual é o papel e o estatuto da antropologia em relação às outras ciências sociais e humanas? Vejamos, de seguida, uma aproximação para esta questão.