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A tarefa de fazer recortes na ininterrupta cadeia comunicativa para compor um

corpus de análise constitui um dos primeiros gestos de interpretação do fenômeno em foco. Diante disso, apontamos os critérios que orientaram o recorte do corpus de pesquisa.

O projeto de transformação identitária do Dia começou na década de 1980, quando o jornalista Ary Carvalho, ao se tornar proprietário e presidente da empresa, mitiga o apelo sensacionalista que caracterizou o jornal desde sua fundação nos anos 1950 e dá início à construção de uma identidade institucional de seriedade. As mudanças na editoria envolviam aspectos técnicos, de recursos humanos,

119 administrativos e de redação, mas não miravam outro público alvo. A despeito de qualquer alteração, o jornal mantém um projeto popular, evidenciado pelo preço da edição – R$1,20 durante a semana e R$ 2,50 nos finais de semana – e pelo foco em assuntos que envolvem as classes menos favorecidas, especial do Rio de Janeiro. O novo desenho da imagem institucional dizia respeito ao modo de a empresa se relacionar com o público, e a participação em concursos especializados começa a ser vista como importante estratégia de conquista de respeito e fidelidade.

De fato, a premiação tem configurado um modo de referenda ao trabalho do jornalista e de valorização da editoria há algum tempo, sendo impossível ignorá-la para se manter na esfera da imprensa. Desde o final da década de 1940, com a criação do mais importante prêmio de jornalismo no Brasil – o Prêmio Esso de Jornalismo –, a situação de concurso passou a figurar um espaço de consolidação e/ou transformação de valores profissionais. A cultura de concursos e prêmios na esfera jornalística começou a atuar como diferencial na arena competitiva do meio, garantindo respeitabilidade entre os pares e perante o público leitor. A despeito do prêmio dado aos profissionais, o reconhecimento de trabalho bem feito contemplava tanto os jornalistas com trabalhos premiados quanto a empresa para a qual trabalhavam. Desse modo, instaurou-se a cultura de premiação na esfera jornalística que, do ponto de vista do qual nos colocamos, constitui uma arena na qual o trabalho da equipe de reportagem é objeto de análise.

Instalado esse instrumento de validação na esfera jornalística, vemos nele uma oportunidade de acessar o parecer das empresas de informação participantes de competições especializadas sobre si mesmas. O ato de inscrever determinada matéria em um concurso traz o primeiro julgamento sobre o inscrito: o da própria editoria. Diferente do objetivo que orienta a publicação, a inscrição implica uma referenda da própria informação sobre o diferencial daquele produto dentre os demais que veicula. Em segunda instância, a premiação consolida essa apreciação favorável.

Com isso, fazemos dois recortes: a) focamos as matérias inscritas em concurso por figurarem enunciados imbuídos de auto-avaliação positiva; b) restringimos o escopo de investigação àquelas premiadas, porque permitem resgatar também a referenda de uma banca examinadora, representante dos valores do funcionamento jornalístico. Assim, solicitamos a O Dia uma lista com os prêmios recebidos ao longo desse projeto

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de reconstrução identitária institucional para delimitar o escopo desta investigação. Encontram-se no Anexo I os itens referentes à premiação jornalística stricto sensu até o ano de 2005, quando delimitamos o corpus de pesquisa. Os prêmios de marketing, vendas ou de qualquer outra natureza diferente da jornalística não foram elencados aqui. A listagem de prêmios dá o panorama do avanço de O Dia no processo de consolidação de uma imagem séria. Em 1988, 1989, 1991 e 1993 foi conquistado um prêmio em cada ano. Os três primeiros foram modalidades do Prêmio Esso, o que sinaliza a preocupação do jornal com o reconhecimento entre os pares de sua nova identidade. A partir de 1996, a editoria investe em maior quantidade de prêmios, sendo vencedora em competições reconhecidamente importantes no meio jornalístico e também em concursos de menor visibilidade. De qualquer maneira, o aumento do número de premiações evidencia, por um lado, o envolvimento de O Dia com a instituição “prêmio” confirmada na esfera e, por outro, a referenda do trabalho empreendido pela empresa. Outro fator importante a considerar é a não correspondência entre prêmios e venda. O plano de redefinição da imagem, embora comprometido com a perspectiva mercadológica, não buscava simplesmente vender mais. Em 1996, o jornal atinge o auge de tiragem, chegando a um milhão de exemplares, conforme dados fornecidos pela própria empresa. Atualmente, a despeito das distinções obtidas, o jornal atinge uma média de sessenta e quatro mil exemplares. Nem por isso deixa de continuar investindo numa identidade séria. O quadro 3.1A apresenta a quantidade de prêmios obtidos a cada ano até 2005:

Quadro 3.1A

Ano Quantidade de Prêmios

1988 01 1999 01 1991 01 1993 01 1996 06 1997 03 1998 10 1999 06 2000 07 2001 06

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2002 13

2003 17

2004 18

2005 12

Esse painel quantitativo não revela dados significativos tanto pela quantidade, mas pelos sentidos mobilizados no crescente investimento institucional em concursos especializados. Diante disso, decidimos fazer um corte vertical, abrangendo um ano com múltiplas conquistas, para capturar um momento em que a editoria tenha sido reconhecida em variados contextos de enunciação para verificar as estabilidades e instabilidades da postura ética do jornal. Reduzimos o foco para o ano de 2004. Deixamos de fora do escopo as moções, menções honrosas e certificados e concentramo-nos nos prêmios propriamente ditos, o que reduziu para 14 o número de matérias vencedoras, como destacado no quadro 3.1B.

Quadro 3.1B

Instituição Premiadora Prêmio (detalhamento)

Fundação Educacional e Cultural de Nova Iguaçu (Fenig)

Troféu Dedé Portela pela cobertura do Carnaval de Nova Iguaçu UK section of Amnesty

International

Prêmio Global de Direitos Humanos Anistia Internacional com a série Escravos do Século 21 (começou em 16/11/2003), sobre exploração do trabalho escravo no país.

Central Disque-Denúncia e do Movimento Rio de Combate ao Crime

Prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo pela reportagem

Segunda Sem Lei, da jornalista Márcia Brasil, que revelou o drama do taxista Sílvio Manoel Fernandes, 73 anos, torturado e morto por traficantes durante tumultos de rua em fevereiro do ano passado. Instituto Ayrton Senna Grande Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo, na categoria jornal,

com a série Crise na Educação, de Karina Bottino, com

colaboração de Marcelo Remígio e Viviane Barreto. As reportagens vitoriosas mostraram o caos no ensino público na rede estadual e denunciaram o novo conceito nos históricos escolares: S/P, de “Sem Professor”. (24.08, de 26 a 29.08.2003 e 31.08.2003).

Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP)

Prêmio anual na categoria cobertura noticiosa com a reportagem

Segunda Sem Lei, da jornalista Márcia Brasil. Instituto Brasileiro de Ciências

Criminais (IBCCRIM) Prêmio IBCCRIM de Jornalismo, nas categorias Prêmio Especial e Prêmio Jornalismo Impresso, pela série Nesta briga, o menor sai

ferido de Marcelo Remígio. EMBRATEL em parceria com

Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio

6º Prêmio Imprensa Embratel, na categoria Melhor Reportagem na Região Sudeste, com a série Filhos da Violência, de Priscylla Almawy (publicada dias 20.07.2003 ;17.08.2003; 29.08.2003; 05.10.2003; 08.02.2004);

Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança (Abecip)

Primeiro Prêmio Abecip de Jornalismo, na categoria Sistema Financeiro de Habitação, pela matéria Bancos facilitam casa

própria (04.07.2004), de Christiane Campos e outras reportagens inscritas: 25.01.2004 (duas); 25.04.2004; 09.05.2004; 06.06.2004. Confederação Nacional de Grande Prêmio CNT de Jornalismo 2004, com a série Transporte

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Transportes Preferido: os pés, da repórter Viviane Barreto, com colaboração de Élcio Braga, Hélvio Lessa, Vanessa Assenof e Marcelo Remígio. (publicada dias 03.08; 04.08; 08.08; 09.08/2004)

Movimento de Justiça e Direitos Humanos e pela Ordem dos Advogados do Brasil seccional Rio Grande do Sul

Prêmio Direitos Humanos Jornalismo com a série Ataque a

helicóptero: reação, fuga e execução, das repórteres Adriana Cruz, Márcia Brasil e Priscylla Almawy (publicada a partir do dia 28 de setembro);

Terceiro lugar na categoria Meio Ambiente com a matéria Aqui Jaz

uma Praia, de Fabrício Marta (12 matérias publicadas partir de 12 de junho).

Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Urbana e Resíduos Especiais

9º Prêmio Abrelpe com a série Aqui jaz uma praia, de Fabrício Marta.

Case New Holland (CNH) 12º Prêmio CNH de Jornalismo Econômico, na categoria Especial Finanças com a reportagem Como ganhar com os juros, do repórter Lúcio Santos (publicada 19.09.2004)

Petrolífera Esso Prêmio Esso de Fotografia, com a foto Ataque a helicóptero reação,

fuga e execução, uma seqüência de imagens publicadas dia 28.09, tiradas de helicóptero da Polícia Civil, que registra os momentos em que dois rapazes são mantidos sob a mira de armas por policiais, pouco antes de aparecerem mortos e sendo carregados pelas escadarias do Morro da Providência.

Dentre as conquistas nesse período, interessamo-nos por aquelas que contemplaram matérias produzidas por ou com a participação da editoria de política do jornal. Isso porque reconhecemos a política como uma arena de embates ideológicos, e a gestão de tensões éticas da esfera jornalística em enunciados cujo objeto é essa arena contribui para a compreensão do modo responsável de organizar as relações intersubjetivas que estruturam tais enunciados. Destacamos com sombreamento no quadro 3.1B acima os quatro prêmios que se encaixam nesse perfil. Como a UK section

of Amnesty International não disponibilizou os critérios de avaliação da série premiada, desconsideramos esse prêmio.

Assim, o corpus de análise compõe-se de três séries de reportagens produzidas pela editoria de política do Jornal O Dia ou com sua participação entre 2003 e 2004 e premiadas em 2004, conforme apontado no quadro 3.1C abaixo:

Quadro 3.1C

Série de Reportagens Instituição e Prêmio Publicação

Crise da Educação

(série de dez reportagens)

Instituto Ayrton Senna

Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo 1º lugar: categoria jornal impresso

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Nesta briga, o menor sai ferido

(série de três reportagens)

Instituto Brasileiro de Ciências Criminais a) Principal prêmio de jornalismo; b) 1º lugar: categoria mídia impressa

Março de 2004

Transporte preferido: os pés

(série de quatro reportagens)

Confederação Nacional de Transportes 1º lugar: categoria jornal impresso

Agosto de 2004

Para dialogar com essas séries de reportagens, convocamos os seguintes textos prescritivos:

a) a Lei de Imprensa e suas reformulações: Decreto 0, de 22 de novembro de 1823; Lei 0, de 20 de setembro de 1830; Lei 0, de 16 de dezembro de 1830; Decreto nº 24.776, de 14 de julho de 1934; Lei nº 2.083, de 12 de novembro de 1953; Lei nº 5.250, de 09 de fevereiro de 1967;

b) o Código de Ética dos Jornalistas, que veicula a voz organizadora da classe profissional;

c) o manual de redação de O Dia, que traz a voz da empresa;

d) as normas de participação dos concursos, que traduzem vozes da cultura organizacional do jornalismo sem vínculos, a priori, com a editoria premiada.

Nesse eixo prescritivo, encontramos indícios das referendas daquilo considerado ético e responsável na esfera jornalística, articulada num núcleo de tensões construído historicamente, como evidenciam as diferentes perspectivas destacadas.