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Delimitação do acordo aos casos de pequena e média criminalidade

Capítulo III – A aplicação dos acordos sobre a sentença penal no ordenamento

3.5 Delimitação do acordo aos casos de pequena e média criminalidade

Vimos que as soluções consensuais já previstas no nosso atual CPP circunscrevem-se ao tratamento da pequena e média criminalidade. De facto, “concretamente, e embora não esgote o espaço do consenso, é invariavelmente a pequena criminalidade que aparece referenciada como pacificamente vocacionada para soluções processuais de consenso”725.

É esta a opção refletida no atual CPP, mencionando-se no respetivo preâmbulo que “no tratamento da pequena criminalidade devem privilegiar-se soluções de consenso, enquanto no da criminalidade mais grave devem, inversamente, viabilizar-se soluções que passem pelo reconhecimento e clarificação do conflito”726. O intuito será, então, tratar a pequena e média

criminalidade, “em grande parte responsável pelos “sentimentos de insegurança” e “crise da justiça””727, mediante soluções céleres e simplificadas, algumas delas de tom consensual,

reservando a resolução dos casos de criminalidade mais grave728 para a aplicação do processo

ordinário, dada a maior complexidade da investigação que requer729.

724 DIAS, Jorge de Figueiredo, Acordos sobre a..., op. cit., pp. 52 e 53. 725 ANDRADE, Manuel da Costa, “Consenso e Oportunidade...”, op. cit., p.335.

726 Preâmbulo do CPP, ponto II, n.º 6, al.b). A este propósito refere Fernando Fernandes: “Constrói-se dessa forma um sistema de coordenadas,

no qual o eixo horizontal é representado pelo espaço compreendido entre a pequena criminalidade e a criminalidade grave e o eixo vertical compreende o espaço respectivamente ocupado pelas soluções de consenso em um pólo e as soluções de conflito no outro. Os dois eixos referidos, o vertical (consenso/conflito) e o horizontal (pequena criminalidade/criminalidade grave), tendem a separar a fenomenologia criminal segundo linhas que se sobrepõem, interceptando-se, porém, necessariamente. É essa distinção a ser utilizada para a opção entre soluções de conflito ou de consenso no processo penal, sendo afirmado que no tratamento processual da pequena criminalidade ocorre dar prioridade a soluções consensuais e nos casos de grave criminalidade a solução deve tender a um reconhecimento e a um esclarecimento do conflito” - Cf. FERNANDES, Fernando, O processo penal..., op. cit., pp.497 e 498.

727 RODRIGUES, Anabela Miranda, “Celeridade e eficácia...”, op. cit., p.40.

728 “(…) cujo intenso desvalor ético e elevada repercussão social fazem sobrepor o valor da verdade sobre o da composição de interesses”, in

COSTA, Eduardo Maia, “Justiça negociada...”, op. cit., p.87.

729 Relembra Costa Andrade que “tudo aponta, pois, para a compreensão e estruturação do processo penal assente na tensão dialética: entre

espaços naturalmente predispostos para soluções de consenso; e outros em que as soluções de conflito não conhecem alternativa”, in ANDRADE, Manuel da Costa, “Consenso e Oportunidade...”, op. cit., p.334. A este propósito refere, de igual modo, Fernando Fernandes que “também em Portugal prepondera o entendimento de que o efeito de optimização político-criminal das reacções, através de um tratamento

Assim, os mecanismos consensuais, pondo a tónica na celeridade e simplificação processuais, serão, com maior aceitação, direcionados para os casos de pequena e média criminalidade, nomeadamente nas situações em que não se apresentem dificuldades acrescidas do ponto de vista dos factos e do direito, ou em que o conflito se move num espaço mais reduzido, numa relação vítima-agressor. Daí que a este respeito se afirme que a resposta processual penal à pequena e média criminalidade tem como objetivo a “maximização da eficácia, optimização político-criminal e alívio da justiça”730.

Como vimos nos casos da suspensão provisória do processo, arquivamento em caso de dispensa de pena ou processo sumaríssimo, todos se movimentam num determinado setor de criminalidade de menor gravidade, onde as práticas consensuais serão mais facilmente aceites731. Mas se as soluções consensuais encontradas foram longe, não poderiam ir longe

demais. Isto é, a introdução de mecanismos processuais que impliquem, por si só, um consenso sobre o mérito do processo, nos casos de criminalidade mais grave, tem gerado entre nós, talvez pela imediata ligação que se estabelece com a plea bargaining anglo-americana, alguma perplexidade. De facto, na criminalidade mais grave estão em causa valores que contendem com a comunidade num todo, pelo que uma solução consensual, neste campo, poderia abalar os sentimentos de segurança e paz de todos, ao permitir-se que se estabelecesse um acordo quanto à decisão da causa. Claro que sempre se poderia argumentar que os deveres conferidos legalmente ao Ministério Público e ao juiz sempre fariam crer que seria a própria comunidade a participar do acordo, pelo compromisso de objetividade e de procura da verdade que aqueles assumem no processo. Não obstante, talvez fosse necessário atingir um patamar de total crença

diferenciado para as condutas de nula ou duvidosa danosidade social, visa possibilitar a concentração de esforços das instâncias formais na prevenção, controle e repressão da criminalidade violenta, a qual deve ser alvo principal do funcionamento eficiente do Sistema criminal” - Cf. FERNANDES, Fernando, O processo penal..., op. cit., p. 501.

730 MESQUITA, Paulo Dá, “Os processos especiais…”, op.cit, p. 46.

731 Afirma Fernando Fernandes que “é a natureza de bagatela do bem jurídico protegido, avaliada pelo legislador no momento da fixação da

moldura penal, através de razões de prevenção geral, que conduz a que nos casos de diversificação processual, mesmo com a sua ocorrência a expectativa na manutenção da norma não seja abalada. Ou seja, sendo a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma (prevenção geral positiva ou de integração) uma forma de se traduzir a função primordial do Direito Penal que é a tutela de bens jurídicos, nos casos em que o bem jurídico objecto da lesão é de natureza bagatelar a norma pode não carecer da resposta penal típica para a manutenção e reforço da sua vigência, admitindo-se, pois, a diversificação processual de natureza consensual ou fundada na exclusão/atenuação do princípio da legalidade. Nesses casos basta a comprovação formal do conflito. Nestas hipóteses a diversificação processual pode ser suficiente e mais adequada em termos de política criminal, visto que mesmo com a sua ocorrência a norma continua válida para a comunidade, por consequência mantém a função tutelar do Direito Penal, permitindo-se a obtenção de outros efeitos político-criminais também importantes”, FERNANDES, Fernando, O processo penal..., op. cit., p. 832.

na justiça para que a comunidade aceitasse placidamente a sua representação numa solução deste tipo.

Assim, bem refere Maia Costa que “enquanto na pequena criminalidade se deve procurar, por um lado, a celeridade do processo e, na medida do possível, a reparação da vítima, por um lado, e evitar a estigmatização do agente, por outro, não sendo tanto a verdade que interessa, mas prevalentemente a resolução justa do caso, como tal considerada e aceite pelas partes, já na criminalidade grave a preocupação com a não estigmatização do agente perde relevância e a verdade material adquire um papel central. A justiça, neste tipo de criminalidade, de intenso desvalor ético e elevada repercussão social, só pode ser feita na base da verdade. Não há composição de interesses que possa prevalecer sobre ela. A procura da verdade e o julgamento público adquirem valor essencial na administração da justiça, na legitimação político- constitucional”732. Além disso, como refere Fernando Torrão, “a verdade consensuada só é

comunitariamente suportável quando a tensão conflitual entre o delinquente e a sociedade assume proporções menores”733.

Nos acordos sobre a sentença penal, pretende Figueiredo Dias averiguar “a possibilidade e as eventuais vantagens da introdução, na medida possível, de estruturas consensuais que atravessem horizontalmente todo o processo penal em qualquer das suas espécies e formas, que não apenas em formas especiais abreviadas, simplificadas ou sumaríssimas”734. Afirma o

Autor, em outras instâncias sobre a temática, que a possibilidade da realização dos acordos sobre a sentença assenta numa ideia “transversal a todo e a qualquer processo penal” e a “todo o tipo de crime”735. E assim justifica: “os acordos que eu sugiro ou são bons ou são maus. Se

forem bons para um furto de um pequeno objeto, então também são bons para o homicídio qualificado”736 e vice-versa.

Ora, é aqui, na aplicação dos acordos sobre a sentença à criminalidade grave, que reside grande objeção. Como vimos, a opção politico-criminal plasmada no CPP assenta na distinção de tipos de criminalidade, atribuindo-lhes soluções distintas. Não se pretendeu, em todo o caso,

732 COSTA, Eduardo Maia, “Justiça negociada...”, op. cit., p.93.

733 TORRÃO, Fernando, A Relevância Político-Criminal...,op.cit., p. 141 e 142. 734 DIAS, Jorge de Figueiredo, Acordos sobre a..., op. cit., p.23.

735 Expressões de Figueiredo Dias, referidas no programa “Em nome da Lei”, emitido pela Rádio Renascença, em fevereiro de 2012, num debate

subordinado ao tema “A justiça pode ser negociada”.

abranger a criminalidade mais grave nas soluções naturalmente dirigidas à pequena e média criminalidade, pelo motivo, cremos nós, já acima referido nas palavras de Maia Costa. E se entre os acordos sobre a sentença, propostos por Figueiredo Dias, e as soluções consensuais de suspensão provisória do processo, arquivamento em caso de dispensa de pena e processo sumaríssimo existem algumas semelhanças de fundo, não tendo estas últimas, apesar das críticas da época, encontrado entrave à sua previsão legislativa, certo é que elas diferem num ponto crucial: a abrangência dos acordos à criminalidade grave. Não encontrando entrave de maior para que tal sucedesse, refere Cláudia Santos a este propósito: “Como se compreendem, então, as resistências suscitadas pela aceitação daqueles acordos sobre a sentença? A resposta parece ser apenas uma: a sua atinência também à criminalidade mais grave (e é apenas aí que ganham decisiva importância), aquela em que a mais grave de todas as penas – a pena de prisão – continua a desempenhar um papel essencial (e, porventura, ainda demasiado essencial). Justificar-se-á, porém, por esta razão a sua interdição como regra? Não é o que se crê, desde que os acordos sobre a sentença sejam limitados por um conjunto de exigências destinadas a impedir a sua contradição com princípios tão essenciais como o princípio da culpa na sua dimensão adjectiva e o princípio da reserva de juiz. Julga-se, antes, que um recurso sensato àqueles acordos pode favorecer quer a realização da justiça, quer a almejada contenção da prisão, diminuindo os tempos, os custos e a incerteza dos julgamentos penais (com tudo o que representam de desfavorável também para a sociedade e para ao arguido) e também permitindo respostas menos punitivas e mais construtivas que o encarceramento”737.

Noutro prisma, propunha Nuno Brandão, na aplicação dos acordos sobre a sentença, uma abordagem gradual, “começando-se pela pequena e média criminalidade e só depois, em função do balanço realizado, eventualmente avançando para o seu alargamento a todos os demais domínios”738.

Existe, ainda aqui, outra questão a considerar. Sabemos que o regime atual da confissão integral e sem reservas, previsto no artigo 344.º, n.º 2, do CPP, implica, de uma forma geral, a renúncia à produção da prova relativa aos factos imputados, considerando-se estes provados, bem como a passagem de imediato às alegações orais e à determinação da sanção aplicável. São estas consequências da confissão integral e sem reservas, nomeadamente a supressão da

737 SANTOS, Cláudia Cruz, “Decisão penal...”, op. cit., p. 156. 738 BRANDÃO, Nuno, “Acordos sobre a…”, op. cit., p. 174.

fase de produção de prova, que traz claras vantagens de economia e celeridade processuais. Sucede que, conforme indicado na al. c), do n.º 3, daquele artigo, aquelas implicações não se verificam no caso do crime ser punível com pena de prisão superior a 5 anos, pelo que, neste caso, a produção de prova pode suceder, decidindo o tribunal se a mesma deve ter lugar e em que medida.

Ora, relembrando, indica-nos Figueiredo Dias que os acordos sobre a sentença seriam admissíveis à luz dos preceitos atuais, mormente do artigo 344.º relativo à confissão, estendendo, por sua vez, aquela admissibilidade a qualquer tipo de criminalidade. Assim sendo, somos levados a concluir que um acordo alcançado, com base nas imposições legais vigentes, em que a confissão do arguido incidisse sobre crime superior a 5 anos, o tribunal, em sua livre convicção, sempre poderia fazer cumprir a produção de prova necessária, pelo que, neste caso, as vantagens de celeridade e economia processual não seria tão abrangentes (apesar de, naturalmente, poder contribuir para um tratamento mais expedito do caso), como nos casos da confissão do arguido face a crimes para os quais se previsse uma pena de prisão inferior a 5 anos. Queremos com isto colocar a tónica na ideia de que, mesmo o regime jurídico da confissão, através da qual se pretende justificar a admissibilidade atual dos acordos sobre a sentença penal, reflete aquela distinção de tratamento entre a pequena e média criminalidade, pelo que a admissibilidade da realização de acordos, face a qualquer tipo de criminalidade, incluindo a mais grave, que implicasse a desnecessidade de produção de prova, só poderia suceder, a nosso ver, de iure condendo, pelo que face ao normativo vigente aquela desnecessidade ou renúncia apenas poderá suceder quando estejam em causa crimes puníveis com pena de prisão inferior a 5 anos.

Uma vez que já existem, entre nós, soluções consensuais que permitem solucionar os conflitos de forma mais acelerada, ainda que atinente à pequena e média criminalidade, e face ao regime jurídico atual da confissão, que permite, em dadas circunstâncias, a renúncia à produção de prova, devemos questionar-nos, se a prática dos acordos trarão benefícios de considerável dimensão que admita o afastamento de determinados paradigmas enraizados no atual processo penal, nomeadamente, aqueles relacionados com o tratamento dado à criminalidade mais grave. Assim, recordamos o que se refere sobre a temática no preâmbulo do nosso CPP: “convém não esquecer a importância decisiva da distinção entre a criminalidade grave e a pequena criminalidade (…). Trata-se de duas realidades claramente distintas quanto à

sua explicação criminológica, ao grau de danosidade social e ao alarme coletivo que provocam. Não poderá deixar de ser, por isso, completamente diferente o teor da reação social num e noutro caso, máxime o teor da reação formal”739. Tenhamos, ainda em consideração que, “não

raro, o controle eficaz da criminalidade só pode lograr-se mediante a formalização da conflitualidade real”740