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Capítulo II – Os institutos de consenso no processo penal português

2.4 Processo sumaríssimo

Processo especial previsto nos artigos 392.º e seguintes do CPP, o processo sumaríssimo poderá ser requerido ao tribunal, pelo Ministério Público, por iniciativa do arguido ou depois daquele o ter ouvido, nos casos de crimes puníveis com pena de prisão não superior a 5 anos ou só com pena de multa467, quando entenda que ao caso deva ser concretamente aplicada pena ou

medida de segurança não privativa da liberdade, determinando, a final, no requerimento, as sanções concretamente propostas. No caso do crime depender de acusação particular, aquele requerimento do Ministério Público dependerá da concordância do assistente. Não havendo objeções por parte do juiz, aquele requerimento será pessoalmente notificado ao arguido, que terá a possibilidade de se opor no prazo de 15 dias, sendo-lhe, de igual forma, nomeado defensor, no caso de ainda não ter advogado constituído ou defensor nomeado. Não se opondo o arguido, o juiz, por despacho, aplica a sanção e condena o arguido ao pagamento da taxa de justiça. Esta decisão vale como sentença condenatória, não admitindo recurso ordinário. Por outro lado, no caso do arguido deduzir oposição, o juiz ordena o reenvio do processo para a forma que lhe caiba, equivalendo à acusação. O processo sumaríssimo é, ainda, caracterizado pela inexistência da instrução (artigo 286.º, n. º3, do CPP), inexistência de julgamento e trânsito imediato em julgado468.

Facto curioso é a possibilidade constante do n.º 2, do artigo 395.º, do CPP, de acordo com o qual, no caso do juiz entender que a “sanção proposta é manifestamente insuscetível de realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” (al. c), n.º 1, artigo 395.º), em vez de reenviar o processo para outra forma, poderá fixar uma sanção diferente, na sua espécie e medida, da inicialmente proposta pelo Ministério Público, desde que este e o arguido concordem nesta nova solução. Quanto à prova, esta será obtida de outro modo, diferente da que decorre da sua produção em ambiente do tradicional julgamento, sendo, normalmente, “recenseada e carreada no requerimento escrito do Ministério Público”469. Será, portanto, necessária uma prévia

investigação do Ministério Público, no sentido de aferir a existência de indícios que possibilitem a

467 A Diretiva n.º 1/2016, de 15-02-2016, emitida pela Procuradoria-Geral da República esclarece que o processo sumaríssimo poderá ser

aplicado quando estejam em causa crimes puníveis com pena de prisão não superior a 5 anos, pena de prisão não superior a 5 anos ou pena de multa, pena de prisão não superior a 5 anos e multa ou só pena de multa - Cf. Diretiva n.º 1/2016, de 15-02-2016, p. 2.

468 ANDRADE, Manuel da Costa, “Consenso e Oportunidade...”, op. cit., p.356. 469 ANDRADE, Manuel da Costa, “Consenso e Oportunidade...”, op. cit., p.356.

aplicação do processo sumaríssimo, preenchendo os seus pressupostos. Isso mesmo fica vertido no requerimento apresentado por aquela entidade para a aplicação deste processo especial, que deverá conter, além dos elementos relacionados com a identificação do arguido, a descrição dos factos imputados, as disposições legais violadas, a prova existente e as razões pelas quais se entende que ao caso não deva ser aplicada pena de prisão (artigo 394.º, n.º 1, do CPP). Uma vez que o processo terminará com a não oposição do arguido e consequente despacho do juiz, que vale como sentença condenatória, a averiguação da prova existente pelo juiz é feita, somente, com base no requerimento para aplicação do processo sumaríssimo apresentado pelo Ministério Público, pelo que inexiste qualquer verificação ulterior da prova por parte do juiz. Tal facto assenta a sua legitimidade, aqui como noutras soluções consensuais, no consentimento, neste caso, na não oposição, do arguido. Mas, mais ainda, a possibilidade conferida ao juiz pelo artigo 395.º, n. º2, de fixar sanção diferente da proposta pelo Ministério Público, com a concordância deste e do arguido (mas já não do assistente nos casos dos crimes particulares?), baseia-se, unicamente, e uma vez mais, na prova apresentada pelo Ministério Público.

Neste processo especial, está desde logo evidenciada “a sua organização para a celeridade, eficácia e simplificação”, reconduzindo-se, ainda, “às ideias centrais de ressocialização e consenso”470. O processo sumaríssimo surge, então, como uma forma de resposta direcionada

aos casos de pequena criminalidade, de forma abreviada e célere, pretendendo, de igual modo, reduzir a estigmatização que o processo tradicional sempre pressupõe471, estando em causa um

“compromisso entre a necessidade de declaração da justiça do caso, como tarefa própria do Estado, e a reposição, pretendidamente em espaço consensual, da paz jurídica”472. É, portanto,

naquele fluxo de delitos de menor danosidade social que o processo sumaríssimo pretende apresentar-se como uma solução mais adequada em termos de eficiência e eficácia. Relembrando António Henriques Gaspar, “o processo sumaríssimo, na praxis e em acção, afirmar-se-á previsivelmente, como um processo tipicamente urbano, em tribunais de maior dimensão, onde o culto da forma se não sente e a necessidade, dir-se-ia cultural, do debate da

470 Por todos, Idem, ibidem.

471 Preâmbulo do CPP, ponto II, n.º 6, al.a).

472 GASPAR, António Henriques, “Processos especiais”, in O Novo Código de Processo Penal, Jornadas de Direito Processual Penal, CEJ, Coimbra,

audiência não se afirma. Mas é também aí, nesses tribunais de ritmo mais intenso, que a preocupação de eficácia a que se pretende responder mais se sublinha”473.

O consenso que se opera nesta solução abrange, como vimos, a concordância do juiz de instrução, do Ministério Público, do arguido, e, no caso do procedimento depender de acusação particular, do assistente. A concordância do arguido surge como um pressuposto absolutamente essencial para a aplicação do processo sumaríssimo474. Ribeiro de Albuquerque afirma que neste

processo especial “não há a possibilidade de verdadeira negociação da pena com o arguido”475,

pelo que lhe resta somente aderir, em jeito de consentimento ou concordância, às propostas que lhe são apresentadas.

Refere António Henriques Gaspar que “a decisão sobre a culpa e a pena assenta num elemento consensual”476, daí se justificar a imposição contida nas alíneas do n.º 2, do artigo

394.º, do CPP, de acordo com as quais o Ministério Público terá de indicar, no requerimento, “as sanções concretamente propostas” e a “quantia exata a atribuir a título de reparação, nos termos do disposto no artigo 82.º-A, quando este deva ser aplicado”. Além destes elementos, deverá constar do requerimento escrito, as “indicações tendentes à identificação do arguido, a descrição dos factos imputados e a menção das disposições legais violadas, a prova existente e o enunciado sumário das razões pelas quais entende que ao caso não deve ser aplicada a pena de prisão” (artigo 394.º, n. º1, do CPP). Só nesta perspetiva, sabendo exatamente o que é proposto, poderá o arguido, de forma informada e cautelosa, decidir sobre a oposição ou não à proposta formulada. Bem refereFernando Fernandes que “a especificação no requerimento da pena concreta proposta pelo ministério público é considerada como medida indispensável para a caracterização do espaço de consenso, face à necessidade do conhecimento pelo arguido a esse respeito, para os fins de poder decidir sobre a aceitação ou não do rito. A bem da verdade, esse requerimento acaba por se traduzir, na prática, num misto entre acusação e a sentença, decorrente de uma avaliação prognóstica feita pelo ministério público sobre a pena a ser imposta no caso concreto”477.

473 Idem, p.377.

474 RODRIGUES, Anabela Miranda, “Celeridade e eficácia...”, op. cit., p.46. 475 ALBUQUERQUE, José P. Ribeiro de, “Consenso, Aceleração e…”, op. cit., p. 17. 476 GASPAR, António Henriques, “Processos especiais…”, op. cit., p. 373. 477 FERNANDES, Fernando, O processo penal..., op. cit., p. 461.

António Gaspar caracteriza o processo sumaríssimo como “jurisdicional, consensual e facultativo”: “Jurisdicional, porque a intervenção confirmadora da decisão de aceitação do arguido é tarefa do juiz e tem força de caso julgado”; “Consensual, porque a tomada de decisão depende do acordo do arguido; não é um processo contraditório porque não há debates, mas igualmente se não toma decisão sem audiência (por falta de oposição), porque pressupõe a existência de acordo”; “Facultativo, porque depende da iniciativa que seja tomada pelo M.ºP.º com a formulação do requerimento a justificar os motivos porque entende que a aplicação da sanção deve ter lugar segundo esta forma especial de processo simplificado”478 (ressalva apenas

para a iniciativa que caberá também ao arguido).

Relativamente à aplicação do processo sumaríssimo, reconhecendo que a utilização desta forma de processo tem aumentado de forma significativa479, a Procuradoria-Geral da República

emitiu, a 15 de fevereiro do corrente ano, a Diretiva n.º 1/2016, no sentido de “apoiar e incrementar a utilização do processo sumaríssimo e promover uma atuação mais eficaz e homogénea do Ministério Público, tanto na fase de inquérito como na fase judicial”480. Assim, de

acordo com a Diretiva, aquela entidade deveria optar por soluções consensuais no tratamento da pequena e média criminalidade, “permitindo uma maior disponibilidade para o tratamento dos factos criminais que pela sua gravidade imponham o reconhecimento e clarificação do conflito”481, utilizando o processo sumaríssimo quando ao caso não seja possível aplicar a

suspensão provisória do processo. Na mesma Diretiva se refere a possibilidade do arguido e assistente requererem ao Ministério Público “a aplicação da pena em processo sumaríssimo antes de ter sido deduzida acusação particular”482. Prevê-se, ainda, um conjunto de atitudes

processuais tendentes a assegurar o respeito pelos direitos dos sujeitos processuais envolvidos, como é o caso da indicação de que ficará excluída a possibilidade de aplicação do processo sumaríssimo, no caso de não ter sido possível proceder ao interrogatório do arguido no decurso

478 GASPAR, António Henriques, “Processos especiais…”, op. cit., p. 376.

479 Diretiva n.º 1/2016, de 15-02-2016, p. 1. Fernando Fernandes dava-nos conta de que a aplicação do processo sumaríssimo nos primeiros

sete anos da sua vigência do Código foi irrelevante - Cf. FERNANDES, Fernando, O processo penal..., op. cit., p. 465. Já em 1996 Paulo Dá Mesquita refere, de igual modo, a mesma irrelevância dada ao instituto, justificado não só por uma “mentalidade predominantemente conservadora dos aplicadores de direito, mas essencialmente, da própria timidez do legislador de 1987 que criou requisitos muito apertados para a tramitação do processo sumaríssimo”, aplicado a um “universo muito restrito de crimes” - Cf. MESQUITA, Paulo Dá, “Os processos especiais no Código de Processo Penal português – respostas processuais à pequena e média criminalidade”, in Revista do Ministério Público, Ano 24, n.º 93, janeiro/março, Lisboa, Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, 2003, p. 49.

480 Diretiva n.º 1/2016, de 15-02-2016, p. 1. 481 Idem, pp. 1 e 2.

do inquérito (apenas passa a ser possível aquela aplicação a pedido do arguido). Mais, nos crimes públicos e semi-públicos, apesar de a lei não prever a concordância do assistente, deverá o Ministério Público comunicar-lhe a intenção de aplicar ao caso o processo sumaríssimo. Por último, na Diretiva se reafirma que “as soluções de conflito só deverão ter lugar quando não se verifiquem os pressupostos legais de aplicação das soluções de consenso”483.

Paulo Dá Mesquita dá-nos conta de que o processo sumaríssimo não poderia ser confundido com a plea bargaining estadunidense, uma vez que, além da distinta organização judiciária (em particular do Ministério Público) num e noutro ordenamento jurídico, no processo sumaríssimo não se verifica uma “negociação sobre o crime, factos e pena, mas tão só o reconhecimento pelo arguido dos factos e crimes imputados, bem como a aceitação das sanções propostas (que merecem a concordância do juiz)”484. De facto, como já referimos, não há qualquer possibilidade

de sindicância pelo arguido sobre o conteúdo da proposta apresentada pelo Ministério Público. Tal como sucede na suspensão provisória do processo e no arquivamento em caso de dispensa de pena, a resposta do arguido reduz-se à mera declaração aceitação ou não aceitação, inexistindo a possibilidade de apresentar contrapropostas, no âmbito de uma estrutura dialógica bilateral, tendente à conclusão final do conflito.