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O princípio da culpa e as exigências de prevenção

Capítulo III – A aplicação dos acordos sobre a sentença penal no ordenamento

3.4 O princípio da culpa e as exigências de prevenção

Relembrando, determina o princípio da culpa, previsto no n.º 2, do artigo 40.º, do CP, que a “toda a pena supõe a culpa e não pode ultrapassar, na sua medida, a medida da culpa”694.

Vigora, então, a máxima nulla poena sine culpa que “implica, de modo necessário, que a cominação de qualquer reacção criminal tenha de ter na sua base um juízo de censura ao agente”695. A culpa será, então, o “pressuposto indispensável da imposição da sanção,

funcionando como limite máximo e inultrapassável da pena”696. O princípio da culpa “não vai

buscar o seu fundamento axiológico, aliás irrenunciável, a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade da pessoa humana – o princípio axiológico mais essencial à ideia do Estado de Direito democrático”697.

Além disso, refere o artigo 71.º, n.º 1, do CPP, que a determinação da medida da pena será realizada em “função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. Assim, ao critério da culpa junta-se as exigências de prevenção, dois elementos que determinarão a medida da pena, numa “convivência harmónica entre as finalidades preventivas do Sistema e o princípio da culpa (culpabilidade)”698. Assim, refere Figueiredo Dias que “as finalidades da aplicação de uma pena

residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa”699.É o “limite máximo de pena adequado à culpa que não pode ser ultrapassado”700.

Assim, a culpa surge, em última medida, como um limite a quaisquer considerações preventivas701.

As exigências de prevenção desdobram-se em prevenção geral positiva ou de integração e prevenção especial de socialização. A primeira exigência liga-se à proteção dos bens jurídicos,

694 DIAS, Jorge de Figueiredo, Acordos sobre a..., op. cit., p. 51 e DIAS, Jorge de Figueiredo, “O sistema sancionatório do…”, op. cit., 35. 695 COSTA, José de Faria, “Diversão (desjudiciarização) e mediação: que rumos?”, in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de

Coimbra, Vol. LXI, Coimbra, Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1988, p. 36, apud FERNANDES, Fernando, O processo penal..., op. cit., p.562.

696 FERNANDES, Fernando, O processo penal..., op. cit., p.750 e DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Português..., op. cit., p.230. 697 DIAS, Jorge de Figueiredo, “O sistema sancionatório…”, op. cit., p.36.

698 FERNANDES, Fernando, O processo penal..., op. cit., pp. 749 e 750. 699 DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Português..., 2009, op. cit., p.227. 700 Idem, p.230.

traduzida na “tutela das expectativas da comunidade (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida”702 e assenta na ideia da necessidade da pena, a valorar no caso concreto, face

às circunstâncias do caso703. Assim, indica Figueiredo Dias que fatores “da mais diversa natureza

e procedência – e na verdade, não só factores do «ambiente», mas também factores diretamente atinentes ao facto e ao agente concretos – podem fazer variar a medida da tutela dos bens jurídicos e da necessidade da pena”704. A prevenção geral positiva ou de integração

assume “o primeiro lugar como finalidade da pena”705, não se fornecendo uma medida exata

mas sim uma moldura (moldura de prevenção), de acordo com “a menor ou maior necessidade de tutela das expectativas na validade das normas – por consequência, necessidade de protecção de bens jurídicos -, em função da gravidade do facto”706.

Quanto à prevenção especial, tem-se em vista um objetivo de reintegração ou ressocialização do agente na sociedade (ou ainda de advertência individual, principalmente nas penas de substituição, ou de segurança ou inocuização, no campo das medidas de segurança707). Refere

Figueiredo Dias que que “há, decerto, uma medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias; medida, pois, que não pode ser excedida em nome de considerações de qualquer tipo. Mas, abaixo desse ponto óptimo, outros existem em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde, portanto, a medida da pena pode ainda situar-se sem que esta perca a sua função primordial; até se alcançar um limiar mínimo, abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a função cautelar”708. Ora, é entre aquele ponto ótimo e este limiar mínimo que pode subsistir uma

prevenção especial de socialização, sendo este elemento que irá determinar, por fim, a medida da pena709. Assim, esta medida deve “evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua

reintegração na comunidade”710. 702 Idem, p.228. 703 Idem, ibidem. 704 Idem, ibidem. 705 Idem, p.72.

706 FERNANDES, Fernando, O processo penal..., op. cit., p.761. Esclarece o Autor que “a medida da pena que a comunidade entende necessária

à tutela das expectativas na validade da norma conduzirá ao limite máximo de pena nessa moldura de prevenção; a medida de pena que a comunidade entende que já é suficiente, dentro do necessário, para assegurar a protecção dessas expectativas conduz ao marco mínimo da moldura penal”, correspondente à “defesa da ordem jurídica” - Cf. idem, p. 761.

707 DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Português..., 2009, op. cit., pp. 243 - 245. 708 Idem, p.229.

709 Idem, p.231. 710 Idem, ibidem.

Relativamente ao conteúdo que poderia assumir um acordo sobre a sentença, vimos que fica excluída a questão da culpabilidade, mantendo o tribunal o seu poder-dever de investigar os factos. Já quanto à sanção, refere aquele Autor que não poderá ser objeto de acordo a medida concreta da pena, pelo que tal determinação caberia, apenas e tão-só, ao tribunal, ponderadas todas as circunstâncias do caso, relevantes para a determinação da “culpa e a prevenção e, em função delas, encontrar o extacto quantum de pena”711. De outra forma, violar-se-ia o princípio da

culpa, aproximando o acordo de um negócio processual712.

Posto isto, nos acordos sobre a sentença penal será “essencial poder afirmar-se que a sanção aplicada não abandonou em momento algum os princípios gerais de medida da pena, em especial no que respeita à sua adequação às exigências da culpa e da prevenção”713. Assim,

a culpa do arguido deverá ser verificada pelo tribunal e não só basear-se, como vimos, no acordo encontrado. Além disso, como afirmava Figueiredo Dias, “o tribunal não pode, em qualquer caso, atribuir à confissão um efeito influente da medida da pena que a torne inadequada não só à culpa, mas também ao conteúdo do ilícito”714 e a sentença deverá ser elaborada “com pleno

respeito pelos princípios, regras e normas gerais” do CPP715.

O que se propõe na realização dos acordos sobre a sentença, apesar de não se poder neles determinar a medida concreta da pena, será a fixação um limite máximo, dentro da moldura penal legalmente prevista, que corresponda, ainda assim, à culpa do agente, de modo a que a sanção que vier a ser aplicada corresponda aos princípios gerais da medida da pena716. Propõe-

se, de igual modo, além daquele limite máximo, a possibilidade de se estabelecer um limite mínimo, no caso de se verificarem “circunstâncias que instantemente conduzem à exigência pública de um mínimo de culpa e prevenção”717. Assim, “o máximo de pena a acordar tem de ser

um tal que não exceda a medida da culpa nem as exigências óptimas de prevenção geral positiva; enquanto o mínimo tem de ser bastante para dar guarida às necessidades de defesa da

711 DIAS, Jorge de Figueiredo, Acordos sobre a..., op. cit., p.51.

712 Idem, ibidem. Relembramos que Figueiredo Dias afasta terminantemente a prática de qualquer negociação, afirmado que “nas conversações e

acordos sobre a sentença aqui em vista deverá ser proibido ao tribunal, ao ministério público e ao arguido qualquer «negociação» tendente a alcançar um «equilíbrio dos interesses das partes», qualquer mercadejar com a justiça material, não se tratando neles de nenhuma «troca» ou «barganha». Idem, p. 50.

713 Idem, p.53. 714 Idem, pp.53 e 54. 715 Idem, p.54.

716 DIAS, Jorge de Figueiredo, Acordos sobre a..., op. cit., pp. 52 e 53. 717 Idem, p.60.

ordem jurídica e de prevenção especial positiva”718. Esta “moldura penal do acordo”719, segundo

Figueiredo Dias, seria, então, consentânea com o princípio da culpa, uma vez que “a fixação da medida concreta da pena dentro daqueles limites continua a pertencer em último termo ao tribunal” 720, que a fixará em resultado do exercício do seu poder de investigação oficial, na sua

“livre convicção acerca da factualidade efectivamente ocorrida” 721.

Ora, a fixação daquela moldura do acordo, com um limite máximo abaixo daquele outro legalmente previsto para o crime, parte do reconhecimento de que a confissão do arguido, em sede de acordo, deverá poder influenciar a medida da pena, uma vez que, para esta medida revelam “não apenas considerações de culpa mas também, de forma autónoma, considerações de prevenção”722. A atenuação da pena em virtude da confissão justificar-se-á, segundo

Figueiredo Dias, pela “menor necessidade de pena (e, por conseguinte, de prevenção) que no caso se faz sentir”723. Sucede que também, neste ponto, a justificação da menor necessidade de

pena e, por consequência, a sua atenuação, deverá assentar num verdadeiro arrependimento do arguido, o que nunca ficará sucederá, nos casos em que, pelo contrário, o arguido confesse por mera tática-processual.

Quanto à fixação de uma moldura acordada pelas partes, e tendo em conta que a iniciativa para a realização do acordo poderá partir também do juiz, assumindo este um papel ativo na conformação do mesmo, sempre nos poderemos questionar em que ponto fica o princípio da investigação oficial, face ao compromisso assumido pelo tribunal de respeitar a moldura penal do acordo, na fixação, posterior, da pena concreta a aplicar ao arguido. Assim, mais uma vez, e também aqui, a participação ativa do juiz, num acordo sobre a sentença, poderá afetar a imparcialidade que sempre se requer no exercício da função de julgar. Em sentido oposto, refere Figueiredo Dias que esta determinação de um limite máximo no acordo não significa uma antecipação da decisão do tribunal, nem elimina a necessária imparcialidade e objectividade do juiz, uma vez que “também no processo em que não exista um acordo o juiz vai humanamente,

718 Idem, p.62. 719 Idem, p.60, nota 75.

720 Idem, ibidem. Indica-nos o Autor que “o máximo de pena a acordar tem de ser um tal que não exceda a medida da culpa nem as exigências

óptimas de prevenção geral positiva; enquanto o mínimo tem de ser bastante para dar guarida às necessidades de defesa da ordem jurídica e de prevenção especial positiva” - Cf. Idem. p. 62.

721 Idem, p.45. 722 Idem, p.54. 723 Idem, pp. 56 e 57.

ao longo do procedimento, formando opiniões e juízos relevantes para o resultado do processo, sem que em função dessa realidade possa falar-se de uma ilegítima antecipação do resultado final”724.