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PROPOSTA DE UM CURSO BÁSICO DE INFORMÁTICA

4.2 Delineamento do curso

O curso está estruturado em três eixos principais, vinculados entre si:

desmistificação e familiarização, motivação e reposicionamento identitário e práticas de leitura e escrita na linguagem da interface gráfica.

A ordem dos eixos se explica pela dialética de Paulo Freire. Primeiro porque só se pode construir sobre conhecimento adquirido. Neste sentido, o sujeito entra em contato com o objeto a ser estudado, registra suas interpretações e explicita o campo de significação em relação ao assunto trabalhado. Segundo, porque para Freire, a verdadeira motivação de aprender existe porque a incorporação do conhecimento é o resultado de uma recriação, uma reinvenção (FREIRE, 1974), uma autoctonização do conhecimento adquirido. Assim não há como motivar sobre base alguma. Não há como motivar os alunos do Telecentro a

aprenderem informática se têm medo de tocar no computador. Isso deve acontecer expondo-se as entranhas do computador, permitindo que peguem em partes dele (discos rígidos, placas mãe, bancos de memória danificados, mas que sirvam de exemplo) e explicando o que são estas coisas e como elas funcionam. Desta forma as duas primeiras aulas, o primeiro contato de vários dos alunos com um computador, são fundamentais para que em seguida,

compreendendo um pouquinho mais do que é um computador, como ele funciona e para que ele serve, possam transformar este conhecimento em motivação, isto é, elencar e selecionar para si o que querem aprender a fazer com o computador. Mais duas aulas detendo-se nesta motivação para aprender informática, e alinhando-os com a identidade de futuros usuários de computador (e Gee nos lembra que a identidade desempenha um papel fundamental na

aquisição de um domínio semiótico) e já estarão preparados para a tarefa de aprenderem a se comunicar com o computador e demais dispositivos digitais interativos.

O primeiro eixo tem o objetivo de desmistificar e dar recursos semióticos aos alunos para se familizarizarem com as partes internas do computador e o seu funcionamento, expondo as entranhas da caixa preta. Em outras palavras, é necessário antes de mais nada mostrar aos alunos o que é um computador e como ele funciona, pois sem este conhecimento as outras informações ensinadas ao longo do curso ficarão vazias. “Copiar”, por exemplo: sem saber o que é memória, disco rígido e processador não é possível situar as informações transmitidas na explicação sobre o ato de copiar. É fundamental abrir o gabinete de um computador e revelar seu interior. Mas não apenas mostrar, é profícuo explorar, explicar, esclarecer tudo o que há lá dentro, para quê serve e como funciona, deixar que toquem nessas partes, peguem-nas nas mãos. Esse início do curso reflete uma preocupação com a fundamentação em elementos básicos de informática, algo que no curso do “Jovem.com” só se vê muito apressadamente.

Explicados em termos simples, os principais componentes físicos do computador, é necessário que se explique aqueles dos quais só se vê uma pequena parcela: os sistemas lógicos do computador. O que é sistema operacional, o que é uma interface, do que são feitos, para quê servem, como funcionam, etc. É frutífero que os alunos saibam o que são os diferentes tipos de memória, o que é um disco rígido, bits e bytes, o que é e como funciona o processamento (etc), porque desde o início têm oportunidade de conhecer a design grammar do domínio semiótico da informática, começam a usar com propriedade estes termos - que já saíram do vocabulário técnico e são usados por todos - e porque ganham referências concretas onde situar as operações com a interface. Essa parte é composta de duas aulas.

Esse eixo servirá, portanto, como fundamento para as explicações posteriores e para todo o processo de letramento digital dos alunos, mas ela também conduz ao segundo eixo, que é quando os alunos se situam em relação ao computador.

Nesse sentido, de posse da informação do que são computadores pessoais e como

eles funcionam, o segundo eixo, motivação e reposicionamento identitário, é o momento em

que serão exploradas as suas funções, através das quais poderão ser estabelecidas as motivações dos alunos para aprenderem informática. Principalmente para aqueles que não conhecem nada ou pouco do assunto, estão assistindo as aulas porque são gratuitas, como pude observar no Telecentro. Conhecendo um pouco mais do que é e para que serve um computador, os alunos já podem, um a um, serem chamados a definir uma motivação real e específica para aprender informática.

Além disso, com o emprego de um vocabulário ligado à informática, uma identidade de “usuário de computador” já poderá começar a ser construída entre os alunos e relacionada ao domínio semiótico da informática. Esta parte do curso se origina da constatação de que a falta de motivação é um dos maiores problemas enfrentados pelos alunos do telecentro. Parto da hipótese de que em grande parte esta falta de motivação advém do pouco conhecimento sobre o tema. Além disso, como vimos em Gee (2002), sem identificação com um domínio semiótico não há aprendizado, portanto também é necessário constituir-se uma identidade associada ao uso de computadores acessível aos alunos do Telecentro.

O preço de ingresso em qualquer domínio é este: os alunos devem estar dispostos e motivados para engajarem-se na prática estendida no domínio, de tal maneira que eles tomam para si e crescem em uma nova identidade socialmente situada, uma identidade que eles possam ver como uma extensão frutífera de si mesmos. (GEE, 2002:11; grifos meus)95

Ressalto que as aulas neste eixo são apenas o início do processo de motivação e identificação dos alunos, um processo que não termina aqui, que segue como tônica de todo o resto do curso. Esta parte é também composta de duas aulas.

Já o terceiro eixo, práticas de leitura e escrita na linguagem da interface gráfica,

tem por objetivo dar aos alunos recursos para aprenderem a operar qualquer interface gráfica (smartfone, tablet, caixa eletrônico, web, etc). Haverá ênfase também nos elementos de linguagem visual, padrões de interação comuns a todas as interfaces gráficas, assim como interfaces gráficas de outros dispositivos, além de noções de interação humano-computador.

Será esclarecida nesta terceira parte a noção de que a interface é uma linguagem, e que ela deve ser aprendida como tal – como algo que tem semântica, sintaxe e um conjunto de regras que regem a composição de “frases” - e serão propostos exercícios de leitura e escrita na linguagem da interface. Afinal de contas, uma interface gráfica pode ser vista como um conjunto de signos que devem ser interpretados (o usuário no papel de receptor da mensagem do computador) e operados (o usuário no papel de emissor de mensagens ao computador) de modo a: (a) incorporar as necessidades do usuário e aquilo que ele deseja realizar com o uso do

95 Tradução minha. (“The entry price for any domain is this: Learners must be willing and motivated to engage

in extended practice in the domain in such a way that they take on and grow into a new socially-situated identity, an identity that they can see as a fruitful extension of their core sense of self.”)

computador; e (b) expressar-se da única maneira que o computador entende, transmitindo de maneira inequívoca o que o usuário deseja fazer e como.

Esse eixo é constituído de quatro aulas, dividindo-se a ênfase entre as diversas interfaces de vários dispositivos e o Windows - o sistema operacional utilizado nos computadores do Telecentro - e em como fazer coisas com ele, tendo como foco a linguagem visual/textual das interfaces gráficas e a exploração situada de várias interfaces diferentes.

As duas aulas finais não compõem exatamente um eixo-foco do curso, mas partem da constatação de que muitos alunos do Telecentro estavam, à época das observações, alheios à internet, essa ferramenta essencial de cidadania e inclusão social/digital/cultural/what-not. Seguindo o sentido das quatro aulas anteriores, as aulas finais também exploram elementos de interfaces de páginas da web e de ferramentas da web como navegadores e programas/serviços de e-mail.