• Nenhum resultado encontrado

3.3 Heterogeneidade e a metáfora do kit de ferramentas

3.3.3 Delineamento da análise

Nesta seção discutiremos a forma como estruturamos nossa análise dos dados, à partir das ideias apresentadas. Para proceder com a análise das transcrições das interações discursivas recorreremos aos pressupostos da própria análise sociocultural proposta por Wertsch. Ao desenhar a dimensão mais metodológica de sua obra, Wertsch (1991) vai aprofundar o uso do construto “enunciado” na sua aproximação sociocultural.

Considerando as ideias de Wertsch (1991) com respeito à analogia do kit de ferramentas, há alguns problemas concretos que surgem ao considerar várias linguagens

64 sociais e gêneros de fala como itens de um kit. Para Wertsch, Wittgenstein consegue apontar um desses problemas que, em termos bakhtinianos, se traduz na afirmação de que muitas vezes é difícil distinguir as várias linguagens sociais e gêneros de fala em uma linguagem nacional. Embora diferentes linguagens sociais e gêneros de fala tenham funções diferentes, eles parecem "mais ou menos parecidos", pois aparecem dentro de uma mesma linguagem nacional. Entendendo o enunciado como a unidade real de comunicação de fala, Wertsch (1991) irá recorrer a esse construto na tentativa de tornar mais objetiva a distinção entre os diferentes gêneros de fala empregados pelos falantes. Ser capaz de identificar isso auxilia ao reconhecer a forma como os sujeitos definem a situação em um debate (WERTSCH, 1984).

Wertsch (1991) busca esse detalhamento com respeito ao enunciado na obra de Bakthin e identifica três propriedades fundamentais para o mesmo, a saber: limites, finalização e forma genérica. Os limites de cada enunciado concreto como uma unidade de comunicação de fala são determinados por uma mudança de sujeitos falantes, isto é, uma mudança de falantes.

Independentemente de quão variados enunciados possam ser em termos de seu comprimento, seu conteúdo e sua estrutura composicional, eles têm características estruturais comuns como unidades de comunicação de fala e, acima de tudo, limites bastante claros [...] Qualquer enunciado - desde uma tréplica curta (única palavra) no diálogo cotidiano até o grande romance ou tratado científico - tem, por assim dizer, um começo absoluto e um fim absoluto: seu começo é precedido pelos pronunciamentos de outros, e seu fim é seguido pelas declarações responsivas de outros (ou, embora possa ser silencioso, a compreensão responsiva ativa dos outros, ou, finalmente, uma ação responsiva baseada nesse entendimento). Entre os tipos de pares de tréplica, ele listou "questão e resposta, afirmação e objeção, afirmação e concordância, sugestão e aceitação, ordem e execução" (WERTSCH, 1991, p. 106; tradução nossa).

A segunda característica do enunciado como unidade de comunicação falada é sua finalização. Para o próprio Bakthin, essa característica é "inseparavelmente ligada à primeira", podendo ser considerada "o lado interno da mudança dos sujeitos da fala".

Essa mudança [dos sujeitos da fala, ou vozes] só pode ocorrer porque o falante disse (ou escreveu) tudo o que ele deseja dizer em um momento particular ou em circunstâncias particulares. Quando ouvimos ou lemos, sentimos claramente o fim do enunciado, como se ouvíssemos a dixi conclusiva do falante. Essa finalização é específica e é determinada por critérios especiais (BAKTHIN, 1986; citado por WERTSCH, 1991, p. 107; tradução nossa).

A especificidade da finalização na última sentença significa que diferentes formas de finalização caracterizarão diferentes linguagens sociais e gêneros da fala, ou esferas da atividade humana. Em alguns casos (como questões puramente factuais, pedidos ou ordens),

65 há pouco espaço para variação e criatividade em como um enunciado pode ser finalizado; em outros casos, há uma variedade muito maior (WERTSCH, 1991).

A terceira característica do enunciado é sua forma genérica, que para Wertsch (1991) é a mais importante. Em sua discussão sobre o papel dos gêneros de fala na formação de enunciados, Bakhtin afirmou que uma das principais características do enunciado é sua relação "com o próprio falante (o autor do enunciado) e com os outros participantes na comunicação de fala" (p. 107). Trataremos a relação com o próprio falante de forma separada da relação com os outros participantes da comunicação. Contudo, antes de explorarmos esses pontos é importante destacar que:

De acordo com Bakhtin, a escolha de um gênero de fala "é determinada pela natureza específica da esfera dada de comunicação de discurso, considerações semânticas (temáticas), a situação concreta da comunicação de fala, a composição pessoal de seus participantes e assim por diante." Como sempre, no entanto, Bakhtin sublinhou que existem limites estritos para o quão individualizado um enunciado pode ser: "Quando o discurso do falante, com toda a sua individualidade e subjetividade, é aplicado e adaptado a um gênero escolhido, ele é moldado e desenvolvido dentro de uma certa forma genérica " (BAKTHIN, 1986; citado por WERTSCH, 1991, p. 107; tradução nossa).

Entendemos, dessa maneira, a forma genérica como o molde ao qual o enunciado é enquadrado sob à luz de determinado gênero de fala. Ao tratarmos da relação do enunciado com o próprio falante, olhando para a forma genérica temos dois construtos apresentados por Bakhtin, a saber: o conteúdo semântico de referência específico e o aspecto expressivo. O conteúdo semântico de referência específico (ou apenas conteúdo semântico referencial) refere-se ao tópico de um enunciado, e é isso que fornece o foco da maioria das falas. O conteúdo semântico referencial de um enunciado pode, assim, variar de uma peça de quebra- cabeça de uma criança ou a natureza ontológica da luz. Como para Bakhtin um enunciado é um elo na cadeia de comunicação da fala, o conteúdo semântico referencial dependerá de seu lugar em relação a outros enunciados.

A gama de conteúdos semânticos de referência (ou "esferas" ou "temas") de enunciados pode ser dividida de acordo com vários critérios. Por exemplo, é possível distinguir entre objetos que supostamente existem independentes do enunciado, tanto como os que não pertencem a um contexto extralinguístico imediato. Assim, pode-se referir a um computador que está imediatamente presente à percepção (extralinguístico), em oposição a um computador que não está perceptivelmente presente, mas que se torna objeto da atenção dos interlocutores, porque é trazido à conversa. Outro critério de distinção que pode ser usado

66 para delinear os tipos de conteúdo semânticos de referência disponíveis para falantes é aquela entre objetos não linguísticos e linguísticos. Sob o título linguístico estão todos aqueles casos em que a linguagem é usada para falar sobre a linguagem (WERTSCH, 1991). Ao falarmos sobre o que é um computador ou recorrermos ao significado de computador de maneira mais genérica, descontextualizada, apenas enquanto palavra, estaríamos falando de um objeto linguístico. Já um objeto não-linguístico é aquele cuja a existência independe da linguagem.

Mantendo o foco na relação do enunciado com o próprio falante, temos uma segunda questão que é o aspecto expressivo. Associamos esse aspecto expressivo à perspectiva referencial do falante. Tratando desse ponto, Bakhtin focou na “avaliação subjetiva do falante”. Porém para Wertsch,

[...] em uma abordagem sociocultural da ação mediada, uma noção mais geral de perspectiva, ou ponto de vista (Uspensky, 1973), sobre o conteúdo semântico referencial de um enunciado é útil. Isso é consistente com a observação de Bakhtin de que "não pode haver algo como um enunciado absolutamente neutro" (1986, p. 84), mas admite um conjunto mais amplo de questões - como a "perspectiva referencial" (Wertsch, 1980, p. 84), que desempenha um papel tão importante na dinâmica do funcionamento interpsicológico na zona de desenvolvimento proximal (WERTSCH, 1991, p. 109; tradução nossa).

Mudando o foco para a relação do enunciado com os outros participantes da comunicação falada é onde encontramos o núcleo de sua explicação, baseada em diálogos, para as diferenças entre os enunciados de uma linguagem social e os de outra (WERTSCH, 1991). Ainda para Wertsch,

[...] a principal contribuição de Bakhtin foi sua compreensão de como um enunciado entra em contato com outros enunciados. De fato, em sua opinião, esta forma de dialogicidade está presente em quase todos os enunciados: "enunciados não são indiferentes uns aos outros e não são auto-suficientes; eles estão conscientes e se refletem mutuamente". Essa consciência e reflexão ocorrem de várias maneiras: "as declarações dos outros podem ser repetidas", "podem ser referidas", "podem ser silenciosamente pressupostas", ou "a reação responsiva a elas pode ser refletida apenas na expressão da própria pessoa falante "(1986, p. 91). (WERTSCH, 1991, p. 109; tradução nossa).

Com base nesse trecho, não é de surpreender que, dado seu papel central no pensamento de Bakhtin, a dialogicidade tenha desempenhado um papel importante em sua categorização de enunciados, linguagens sociais e gêneros da fala. Ao que Bakhtin tratou como “consciência e reflexão” inerentes à dialogicidade, nós iremos nos referir às distintas maneiras de enunciação. Esse movimento que propomos é justificado pelo fato de que o enunciado pode assumir diferentes formas em função da intencionalidade do falante, podendo

67 assumir “a repetição de enunciados de outros”, “uma referência a enunciados dos outros” entre outras.