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3.1 A teoria sociocultural e os três temas em Vygotsky

3.1.3 Mediação

Com a finalidade de discutirmos a ideia de mediação, iniciaremos recorrendo a um exemplo que foi empregado por Pereira e Lima Jr. (2014):

[...] um estudante de Física combinou de emprestar um livro para um colega, no entanto, ao sair de casa, ele esqueceu de levar o livro consigo. Somente após encontrar o colega na sala de aula é que o estudante lembrou que deveria ter colocado o livro na mochila. Este é claramente um caso de memória natural, uma vez que foi a estimulação visual do colega que causou a lembrança no estudante. Ele não teve controle algum sobre sua memória; a imagem do livro simplesmente apareceu em sua mente. No dia seguinte, no entanto, ele resolveu colocar um lembrete no seu telefone celular, programando-o para despertar minutos antes de ele sair de casa. Ao ouvir o toque do celular, ele se lembrou de colocar o livro na mochila, podendo assim emprestar o livro para o colega. Neste segundo caso, a memória também foi o resultado de uma estimulação externa (toque do celular). No entanto, há uma diferença crucial: a lembrança do livro resultou de um ato intencional. Através do uso do celular (mediação), o estudante passou a ter controle sobre sua própria memória. Controle não apenas do objeto a ser lembrado (livro), mas inclusive do instante exato de sua manifestação (minutos antes de sair de casa). Assim, os signos servem como meios auxiliares para os seres humanos influenciarem o próprio comportamento, assim como o comportamento de outros seres humanos (considere o caso alternativo, no qual o colega envia uma mensagem de texto para o estudante, minutos antes de ele sair de casa, lembrando-o de levar o

47 livro). Este nível de controle dos fenômenos psicológicos, baseado no uso de signos, é uma característica exclusiva da atividade humana (p. 525).

Na citação acima, é possível observar que as “formas superiores de memória” resultam não apenas do desenvolvimento de constituições mentais e nervosas vinculadas ao processo de memória, mas, sobretudo, do desenvolvimento de um método de memorização baseado no uso de signos (no caso, o despertar do celular). Uma pertinente colocação diz respeito à diferenciação entre instrumentos e signos na obra vygotyskyana. Os instrumentos são meios mediacionais utilizados pelas pessoas para controlar e mudar fisicamente o mundo. Os signos, em contrapartida, são símbolos, diagramas, mapas, etc. que são utilizados para controlar comportamentos em uma dimensão psicológica. Ou seja, enquanto os instrumentos são orientados externamente, os signos são orientados internamente.

Portanto, toda atividade conduzida no plano social é sempre mediada por signos. A partir da perspectiva vygotskiana, o desenvolvimento humano representa a “história natural das operações com signos” (VYGOTSKY, 1994). É nesse sentido que podemos afirmar que o signo é um meio de interação social e apenas mais tarde se torna um meio de controle do próprio comportamento. “Assim, tudo aquilo que conseguimos realizar mentalmente, com o auxílio de signos, foi, em algum estágio do nosso desenvolvimento, realizado em colaboração com outros, através da interação social” (PEREIRA; LIMA JR, 2014, p.527). Entretanto, faz- se fundamental não perder a dimensão de que o signo é uma parte importante da investigação sociocultural. Ela, em si, não é o foco. O foco é a ação, o indivíduo em atividade prática. Wertsch (1998) traz, com intuito de evitar confusões entre os instrumentos e os signos, a ideia de ferramentas culturais. O uso do termo “ferramentas culturais” se relaciona com o desenho da teoria que o autor está delineando, na medida em que pode se afirmar que o foco de sua análise é o “agente atuando com ferramentas culturais”. São essas ferramentas que tornam as ações possíveis.

É precisamente no uso mediado de ferramentas culturais (externas ao corpo humano) que se define a natureza “distribuída” da atividade mental (PEREIRA, OSTERMANN, CAVALCANTI, 2012; PEREIRA, 2012). Através da noção de distribuição que se tornou famosa uma ideia da obra de Wertsch, a de que “a mente se estende para além da pele” (WERTSCH, 1991). O uso de ferramentas culturais realiza um papel fundamental na mediação e na internalização. Afinal de contas, o processo de internalização consiste em uma reconstrução no plano intrapsicológico de uma atividade externa, de uma ação realizada

48 socialmente, e necessariamente mediada por ferramentas culturais (como o celular, no exemplo a cima).

“Podemos inferir que quando uma função mental parece não envolver mediação, há apenas duas explicações possíveis: a) trata-se de uma função elementar, comum a outros animais (não humanos); b) ou trata-se de uma função superior fossilizada” (PEREIRA; LIMA JR, 2014, p.530). Ao compreender melhor as ideias de mediação e de como se originam as funções mentais superiores, é possível revisitar o método genético resumindo-o da seguinte forma, conforme sugerem Pereira e Lima Jr. (2014):

 todas as funções mentais superiores devem ser estudadas utilizando-se a análise genotípica;

 o desenvolvimento das funções mentais superiores deve ser descrito tanto em termos de mudanças qualitativas (radicais) quanto em termos de incrementos quantitativos;

 os principais pontos de “viragem” no desenvolvimento envolvem mudanças nas formas de mediação utilizadas;

 o entendimento completo dos processos psicológicos requer o exame de várias linhas de desenvolvimento (evolutiva, histórica e ontogenética), cada qual governado por um conjunto próprio de princípios explicativos.

A maioria dos estudos empíricos de Vygotsky envolvia crianças. Sua intenção com isso era mapear a origem de certas funções superiores para entender a sua dinâmica. Os pontos de “viragem” no desenvolvimento mental da criança estão associados à internalização de novas formas de mediação. É possível perceber, então, a necessidade da interação nas pesquisas de Vygotsky, em especial, na díade adulto-criança. Vygotsky (1994) conclui que neste tipo de interação o adulto orienta as ações da criança através do uso da linguagem (não apenas verbal). No que tange a aprendizagem, pode-se falar que o sujeito aprende algo na medida em que “aprende a lidar” (domina ou se apropria de)8

uma ferramenta que lhe permite realizar uma ação. A ideia de ação mediada está ligada intimamente com a própria noção de mediação.

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