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3.3 Heterogeneidade e a metáfora do kit de ferramentas

3.3.2 Heterogeneidade, kit de ferramentas e privilegiação

Para compreender a noção de heterogeneidade das formas de pensamento empregada por Wertsch (1991), devemos partir do princípio de que "o fenômeno da heterogeneidade do pensamento verbal (ou 'pluralismo cognitivo') consiste no fato de que em qualquer cultura e em qualquer indivíduo não existe uma forma homogênea de pensamento, mas diferentes tipos de pensamento verbal” (TULVISTE, 1986; citado por WERTSCH, 1991, p. 96; tradução

60 nossa). Esse posicionamento é o que Tulviste (1991) apresenta como heterogeneidade. Tal noção de heterogeneidade pressupõe a existência de uma variedade de formas qualitativamente diferentes de representar o mundo e atuar sobre ele. “Para Wertsch (1991), a distinção entre diferentes ferramentas culturais (ou tipos de pensamento verbal) dentro de uma linguagem natural pode ser feita com base nas noções de „gêneros de fala‟ e „linguagens sociais‟, propostas por Bakhtin (1986)” (PEREIRA; OSTERMANN, 2012, p. 34). Tulviste (1991) considera surpreendente que a heterogeneidade não tenha sido um tópico de investigação das análises de diferenças históricas e transculturais, na área da psicologia.

Transpondo essa questão para a área de Ensino de Ciências, Mortimer, Scott e El-Hani (2009) avaliam que em qualquer sala de aula há uma inevitável heterogeneidade de modos de pensar e falar, que precisam ser modelados se tivermos a intenção de produzir alguma teoria sobre o ensino e a aprendizagem. A maneira como se encara as diferentes heterogeneidades das formas de pensamento pode ser entendida como um pressuposto epistemológico pelo qual se dá o desenvolvimento dos envolvidos em uma negociação de significados. Essa diferenciação permite olharmos para o “significado” construído socialmente de uma perspectiva diferente, associada com a forma como sujeitos e grupos definem as situações e, consequentemente, relacionados com as dinâmicas na zona de desenvolvimento proximal.

A Perspicácia de Vygotsky (1994), em distinguir várias funções da fala e seus critérios, constitui um primeiro passo para identificar os vários meios mediacionais que compõe o que Wertsch (1991) irá chamar de kit de ferramentas de mediação. Para ele, os meios mediacionais, ou ferramentas culturais, não devem ser concebidos como um todo único e indiferenciado, mas sim como diversos itens de um kit de ferramentas. Wertsch (1991) reconhece a importância da analogia entre ferramentas técnicas e ferramentas psicológicas de Vygotsky (1994), assim como suas limitações.

Em particular, ele [Vygotsky] não a usou para examinar a diversidade de meios mediacionais disponíveis para os seres humanos. [...] Vygotsky não abordou essa questão nesses termos, mas em vários pontos em seus escritos ele sugeriu algo ao longo destas linhas. [...] Ele observou, por exemplo, que "os seguintes podem servir como exemplos de ferramentas psicológicas e seus sistemas complexos: linguagem; vários sistemas para contar; técnicas mnemônicas; sistemas de símbolos algébricos; escrita; esquemas, diagramas, mapas e desenhos mecânicos; todos os tipos de sinais convencionais; e assim por diante "(1981a, p.137).” [...], no entanto, ele não consegue lidar com muitas das implicações explícitas da visualização das ferramentas psicológicas como parte do todo maior organizado de um kit de ferramentas. (WERTSCH, 1991, p. 93; tradução nossa).

61 Dentro da linguagem natural, os agentes da ação têm acesso a mais de uma linguagem social e um gênero de fala. De acordo com Wertsch (1991), todas as linguagens são concebidas como ferramentas culturais que organizam a ação mental e comunicativa. Não há qualquer garantia, no entanto, de que um indivíduo de fato opte por empregar ferramentas mais apropriadas para uso em determinados contextos. Isso é algo a ser aprendido e aprender a este respeito significa compreender sobre a própria heterogeneidade do pensamento e da linguagem na diversidade de contextos em que usamos nossas ideias e declarações (MORTIMER; SCOTT; EL-HANI, 2009).

Em linhas gerais pode-se dizer que a obra de Wertsch adquire identidade própria com a noção dos kits de ferramentas. O autor consegue expandir a teoria vygotskyana, importando construtos da filosofia de Bakhtin, ao ponto de reconhecer que as distintas formas de pensar e falar são como ferramentas materiais de fato, as quais o indivíduo pode escolher para realizar algum tipo de tarefa. Tomemos como exemplo, um problema de Física, no qual é requisitado a um estudante que encontre com que velocidade uma maçã atingirá ao solo após se desprender do galho de uma macieira de altura informada, em um contexto ao qual se despreze a resistência do ar. O aluno pode responder esse problema recorrendo à equação de Torricelli (abordagem cinemática) ou igualando os teoremas da energia potencial gravitacional e da energia cinética (considerando o princípio da conservação da energia), por exemplo.

O processo de seleção da ferramenta, em um kit, está relacionado às diferentes formas de heterogeneidade de pensamento. Contudo, é a ação que será realizada que define qual a ferramenta mais adequada (no caso de encontrar a velocidade da maçã, por exemplo). Outro exemplo, considerando signos (ferramentas semióticas), é o emprego de formas distintas de linguagem. As formas de linguagem estão organizadas de acordo com alguma classe de hierarquia dominante que está relacionada ao poder ou à aplicabilidade dessas ferramentas, em determinado contexto. “Os modelos de seleção utilizados pelos agentes para escolher uma determinada ferramenta cultural são descritos em termos da noção de privilegiação” (WERTSCH, 1991; citado por PEREIRA, OSTERMANN, 2012, p. 34). Ao falar em poder, Wertsch (1991) procura justificar com isso o uso do termo “privilegiação” em detrimento de outros possíveis. Em suas próprias palavras:

Meu uso de privilegiar em vez de um termo como domínio ou dominação é motivado por várias considerações. Primeiro, o „privilégio‟ vem com muito menos bagagem teórica ligada a ele, então pode-se usá-lo em um sentido mais restrito. Além disso, em contraste com a dominação, que está intimamente ligada ao estudo

62 da estrutura social, seu foco são os processos psicológicos. [...] Outra razão para usar o privilégio do que a dominação é que o último está implicitamente associado a algum tipo de situação, ao passo que o privilégio é assumido como mais dinâmico. É dinâmico em parte porque os contextos socioculturais não determinam de forma mecânica ou unilateral a ação mediada; em muitas situações, é pelo menos possível que os participantes definam a situação de formas novas, inesperadas ou criativas. Assim, há um grau de negociação dinâmica envolvida. Uma fonte importante dessa dinâmica deriva do fato de que os padrões de privilégio são acessíveis à reflexão consciente e, portanto, à mudança autogerada (WERTSCH, 1991, p. 124; tradução nossa).

A privilegiação é um processo fundamental na obra de Wertsch, especialmente, no livro de 1991. No capítulo 5 deste livro, logo após propor a analogia do kit de ferramentas, Wertsch, já inclinado pela necessidade da busca da definição de um construto a respeito da seleção das ferramentas de mediação, propõe a seguinte questão ao seu leitor: “Qual é a natureza da diversidade dos meios mediacionais e por que um, em oposição ao outro, é utilizado para realizar determinada tarefa?” (WERTSCH, 1991, p. 94; tradução nossa). Ao propor a noção de privilegiação, Wertsch refere-se ao fato de que uma ferramenta cultural, tal como uma linguagem social, é concebida como mais eficaz ou adequada do que outras em um determinado cenário sociocultural. Durante o processo de domínio dos modelos de privilegiação, a escolha de uma ferramenta cultural pode basear-se fortemente na orientação de outros, proporcionada através da interação social. Esses modelos têm como resultado a suposição de que determinada ferramenta cultural é a mais adequada (ou, inclusive, a única possível) em um cenário sociocultural particular, mesmo quando existem outras igualmente disponíveis (PEREIRA; OSTERMANN, 2012).

Ou seja, as forças do contexto é que podem estar relacionadas com esse processo de escolha, e esta é uma linha de pesquisa em psicologia, segundo Wertsch, que necessita de mais estudos (WERTSCH, 1987). No geral, os meios mediacionais são usados com pouca ou nenhuma reflexão consciente do sujeito. (WERTSCH, 1991). Para distinguir uma ferramenta de outra na linguagem natural podemos usar as considerações de Bakhtin para a situacidade sociocultural dos processos intermentais e intramentais com as noções de linguagem social e gênero de fala. Para ele, as diferentes linguagens sociais e gêneros de fala são vistos como meios de organizar a ação mental comunicativa. (FREITAS, 2019, p. 47).

Ao identificar que uma das intenções de Wertsch (1991), ao trazer a voz de Bakhtin para sua costura teórica, é a possibilidade de expandir o programa vygotskyano contemplando com ênfase adequada a linguagem, assume-se que diferentes “linguagens sociais” e “gêneros de fala” podem ser compreendidos como diferentes ferramentas que contemplam o kit de ferramentas e cabe ao agente (falante) privilegiar uma em detrimento de outra, em um

63 contexto sociocultural específico. Contudo, privilegiar também é uma ação e, como tal, passa por um processo de internalização.

[...] a noção de privilegiar está relacionada com o aspecto psicológico de julgar quais linguagens sociais e gêneros de fala são mais apropriados do que outros em um contexto sociocultural particular. Durante o processo de dominar os padrões de privilégio, este julgamento pode depender fortemente da orientação de outros que é fornecida através do funcionamento intermental. [...]Com relação a isso, chegamos a sentir que algumas linguagens sociais e os gêneros de fala são mais apropriados do que outros para descrever e explicar vários fenômenos (WERTSCH, 1991, p. 135; tradução nossa).

Privilegiar uma ferramenta cultural, em determinado contexto, traz consigo algumas características inerentes à ferramenta na realização da ação. Os recursos e restrições inerentes à utilização de dada ferramenta na realização de uma ação são fatores importantes no processo de privilegiação. Conforme identificamos entre as propriedades da ação mediada (seção anterior), na medida em que uma nova ferramenta cultural nos libera de limitações prévias esta traz consigo novas limitações próprias. Wertsch (1998) crítica Vygotsky ao categorizá-lo como um autor que não soube reconhecer as restrições proporcionadas pelas ferramentas culturais. Ao mesmo tempo, salienta que autores, como o dramaturgo Burke (1969) estão demasiadamente preocupados com as restrições.

Outra das propriedades da ação mediada que destacamos versa sobre poder e autoridade. O poder atribuído a uma determinada ferramenta cultural, em um contexto específico, está intimamente ligado ao processo de privilegiação. Em termos da analogia do kit de ferramentas, isso novamente aponta para a noção de que os itens do kit são organizados de acordo com uma hierarquia baseada em poder ou aplicabilidade (WERTSCH, 1991).