• Nenhum resultado encontrado

3.3 Heterogeneidade e a metáfora do kit de ferramentas

3.3.1 Propriedades da ação mediada

Como a proposta de analisar a ação mediada (WERTSCH, 1998) centra sua atenção na ação humana (seja ela individual ou coletiva), destaca-se a necessidade de olhar para o agente e para a ferramenta cultural empregada na ação (não de forma isolada). Dessa forma, Wertsch identifica dez propriedades da ação mediada, a saber:

Tensão irredutível: característica da ação mediada que indica que o agente de

determinada ação não pode ser outro, senão, a(s) pessoa(s)-agindo-com-meios-mediacionais, ou seja, a essência da análise se encontra na interação entre esses elementos. Um estudante de Física que resolve uma questão proposta em um livro que pede a quantidade de calor sensível transferida a certo corpo para que esta sofra uma determinada variação de temperatura. Teria, realmente, o estudante resolvido este problema? Caso ele não pudesse usar a ferramenta 𝑄 = 𝑚. 𝑐. ∆𝑇, ele teria conseguido resolver o problema?12

A materialidade dos meios mediacionais: além dos instrumentos que possuem

materialidade evidente, alguns signos também a possuem. Portanto, as ferramentas culturais são materiais. Estes aspectos de materialidade geralmente associam-se com a palavra artefatos, no sentido de artefatos históricos que seguem existindo depois que os humanos que os utilizaram já tenham desaparecido.

O caso mais relevante de uma ferramenta cultural aparentemente imaterial é o da linguagem falada. Com frequência é mais fácil reconhecer a materialidade dos objetos da linguagem escrita que seguem existindo ainda quando não são utilizados como meios de mediação (por exemplo, o manuscrito enterrado em um baú durante décadas) que compreender a materialidade da linguagem falada. [...] No entanto, a materialidade é uma propriedade de qualquer meio de mediação (WERTSCH, 1998, p. 59; tradução nossa).

Os múltiplos objetivos da ação: A ação mediada geralmente serve a múltiplos

propósitos. Além disso, estes propósitos (ou objetivos) múltiplos da ação mediada geralmente podem estar em conflito (WERTSCH, 1998). Considerando o exemplo de um “problema de Física”, o objetivo que possivelmente se pensa é obter o resultado correto. Mas em qual

12 Considere um estudante do ensino médio e que as informações disponibilizadas pela questão fossem a massa

57 cenário? O de uma avaliação institucional? O de praticar por praticar? O de buscar refletir sobre a(s) teoria(s) que o sustenta(m)? O de questionar o limite das aproximações idealizadas no modelo empregado, frente a uma atividade experimental?

Caminhos evolutivos: A ideia aqui é defender que a ação mediada se situa em um, ou

mais, caminhos evolutivos (ou domínios genéticos, conforme discutido na seção 3.1.1). Um exemplo trazido pelo autor é o de projetar aviões. Ele afirma que na década de 60 tal tarefa era desempenhada por dezenas de engenheiros que dominavam o ferramental do cálculo e do desenho técnico. Esses projetos levavam muito tempo para estar concluídos em comparação aos dias de hoje. Hoje em dia, a mesma tarefa pode ser desempenhada por um único operador e seu computador, o que demonstra uma modificação da ação no domínio genético histórico- cultural.

Recursos e Restrições: São as ferramentas que nos proporcionam os recursos

necessários para realização de determinadas tarefas. Contudo, Wertsch (1998) aponta que da mesma forma que as ferramentas proporcionam recursos para realização de tarefas, também apresentam restrições. Para Wertsch (1998), não há dúvidas de que a perspectiva de olhar para os meios de mediação como “possibilitadores” da ação humana é muito importante, porém ele nos chama atenção para o fato de que as ferramentas também limitam a ação desempenhada. Na medida em que uma nova ferramenta cultural nos libera de limitações prévias, esta trás consigo novas limitações próprias (WERTSCH, 1998).

As transformações da ação mediada: Não importa o domínio genético em questão, a

introdução de um novo meio de mediação cria uma espécie de desproporção na organização sistemática da ação mediada. É possível considerarmos que em alguns casos surge uma ação mediada completamente nova. No entanto, além da inserção da nova ferramenta, existem outras formas de promover modificações na ação. Por exemplo, se houver variações nos níveis de habilidade do agente no uso da ferramenta, consequentemente, há modificações na ação. Um exemplo na área de ensino é a avaliação, na medida em que essa pode ser compreendida como uma ferramenta. Afinal, ao avaliarmos (medirmos habilidades) de um sujeito, estamos de certa forma, avaliando a habilidade desse sujeito com a ferramenta utilizada para avaliação em específico (por exemplo, a prova).

[...] os agentes podem demonstrar habilidades sobressalentes com determinada ferramenta cultural, porém, apenas uma habilidade comum ao utilizar outra ferramenta. É fácil passar despercebido por essa problemática, já que a ferramenta que se emprega em qualquer avaliação peculiar geralmente é uma parte fixa e não questionada da estrutura institucional, em um determinado contexto sociocultural (WERTSCH, 1998, p. 81; tradução nossa).

58

A internalização como domínio: Quando se analisa a materialidade dos meios de

mediação, consequentemente se avalia a habilidade de um agente ao manusear a ferramenta cultural específica. As habilidades surgem através da utilização dos meios de mediação. Nessa perspectiva, a ênfase é dada em como o uso de ferramentas culturais levam ao surgimento de habilidades peculiares, mais do que atitudes ou capacidades gerais, que seriam justamente, o que distingue um indivíduo de outro. A essas habilidades inerentes do agente ao empregar uma dada ferramenta cultural na realização de certa ação é que chamamos de domínio. Há, portanto, uma diferença importante entre as ideias de internalização (no sentido vygotskyano) e de domínio, vide a colocação de Pereira e Ostermann (2012):

Segundo o autor, a noção de domínio possui importantes vantagens com relação à noção mais geral de internalização. Isso porque essa última evoca uma imagem na qual os processos realizados inicialmente em um plano externo passam a ser realizados em uma espécie de plano interno. Tal imagem é encorajada por análises como a de Vygotsky (1994) sobre como a ação de contar ocorre originalmente no plano externo, com a ajuda dos dedos, para, posteriormente, sumir de vista, quando o processo é internalizado. De acordo com o autor, muitas formas de ação mediada são (e devem ser) realizadas no plano externo. Por exemplo, no caso do uso de simulações computacionais no ensino de ciências, não está claro o que significa realizar esse tipo de ação em um plano interno. Mesmo no exemplo da multiplicação, é pouco provável que a operação como um todo seja completamente internalizada. Dependendo dos números envolvidos, tal operação requer uma ferramenta cultural que “realize parte do pensamento”. Assim, a metáfora da internalização resulta demasiadamente forte porque implica algo que frequentemente não ocorre. A noção de domínio, por outro lado, é mais adequada, uma vez que ela é aplicável a praticamente todas as formas de ação mediada (p. 32).

A internalização como apropriação: A crítica apresentada por Wertsch (1998)

referente à internalização com uma visão genérica é válida também para justificar sua outra particularização, a apropriação. A ideia de apropriar-se de uma ferramenta pode ser vista, em linhas gerais, como um processo de tornar para si uma ferramenta que existe externamente, empregada por outros, no contexto de outros e com a intencionalidade de outros. A apropriação considera essa transposição para o contexto sociocultural específico daquele que busca empregá-la. Com respeito à relação entre domínio e apropriação Wertsch (1998) enuncia que:

[...] a apropriação dos meios de mediação não se relaciona necessariamente com o seu domínio de uma maneira simples. Em alguns casos, o domínio e a apropriação se correlacionam em níveis altos e baixos, porém, em outros, o uso de ferramentas culturais se caracteriza por um alto nível de domínio e um baixo nível de apropriação (p. 99; tradução nossa).

59

Consequências laterais: as ferramentas culturais são, com frequência, produzidas por

razões outras que não a facilitação da ação. Essa afirmação contrasta com a concepção na qual os meios mediacionais surgem em respostas às necessidades dos agentes.

Por exemplo, a tecnologia usada nos computadores não surgiu como consequência do avanço no campo da pesquisa em educação em ciências. Os primeiros computadores de mesa, desenvolvidos na década de 1970, foram projetados para operacionalizar o fluxo de caixa nas empresas por meio de uma planilha eletrônica. Do ponto de vista da ação mediada, a aplicação dessa tecnologia no ensino de ciências é um “efeito colateral”, ou seja, um acidente que teve o potencial não antecipado de transformar a ação mediada (PEREIRA; OSTERMANN, 2012, p. 31).

Poder e autoridade: A afirmação de que as ferramentas culturais estão associadas ao

poder e à autoridade contrasta com a concepção na qual a linguagem e outros meios mediacionais constituem instrumentos neutros de pensamento e comunicação. Essas cataracterísticas são inerentes ao contexto histórico, cultural e institucional mais amplo, na medida em que diferentes níveis de poder podem ser atribuídos às mesmas ferramentas em contextos diferentes. “Essa propriedade deriva dos escritos de Bakhtin (1981) sobre sua formulação acerca dos tipos de discurso „autoritário‟ e „internamente persuasivo‟. O pressuposto geral é o de que o poder e a autoridade não são atributos do indivíduo, considerado em isolamento, mas sim da tensão irredutível entre os agentes e as ferramentas culturais” (PEREIRA; OSTERMANN, 2012, Pg. 31).

Embora Wertsch (1998) tenha apresentado essas dez propriedades da ação mediada, por uma questão de espaço, não exploraremos todas as características, apenas as que julgamos mais importantes ao presente estudo, a saber: internalização como domínio, internalização como apropriação, tensão irredutível, recursos e restrições e poder e autoridade. Isso não significa que as demais características não estejam presentes, até porque todas elas são inerentes à ação mediada.