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Para ingressar no tema das demandas por redistribuição e reconhecimento faz-se necessário retomar ao termo gênero, pois Fraser (2007) o conceitua como uma categoria bivalente, a partir de dois modelos de demandas reivindicatórias de diferentes movimentos sociais, ou seja, a política de redistribuição e a política de reconhecimento.16 A autora considera um desafio trabalhar gênero que de modo simultâneo se ajusta a ambas políticas.

De um lado, encontram-se os proponentes da ‘redistribuição’. Apoiando- se em antigas tradições de organizações igualitárias, trabalhistas e socialistas, atores políticos alinhados a essa orientação buscam uma alocação mais justa de recursos e bens. No outro lado, estão os proponentes do ‘reconhecimento’. Apoiando-se em novas visões de uma sociedade ‘amigável às diferenças’, eles procuram um mundo em que a assimilação às normas da maioria ou da cultura dominante não é mais o preço do respeito igualitário. (FRASER, 2007, p. 101).

Como exemplo de política de redistribuição, tem-se a classe trabalhadora, que luta contra a má distribuição socioeconômica. Como exemplo de política de reconhecimento, tem-se a sexualidade, a diferenciação social entre homossexuais e heterossexuais.

Membros do grupo da redistribuição buscam redistribuir a riqueza entre ricos e pobres. Membros do grupo do reconhecimento buscam o direito das minorias étnicas, sexuais, raciais e de gênero. Fraser (2007) ressalta que a relação entre os dois está tensa.

16 Para a autora, “as demandas por reconhecimento dão combustível às lutas de grupos

mobilizados sob as bandeiras da nacionalidade, etnicidade, ‘raça’, gênero e sexualidade”. (FRASER, 2006, p. 231).

[...] Em muitos casos, as lutas por reconhecimento estão dissociadas das lutas por redistribuição. Dentro dos movimentos sociais como o feminismo, por exemplo, tendências ativistas que encaram a redistribuição como um remédio para a dominação masculina, estão cada vez mais dissociados das tendências que olham para o reconhecimento da diferença de gênero. (FRASER, 2007, p. 102).

Além disso, a autora ressalta que alguns proponentes da redistribuição entendem as reivindicações de reconhecimento como uma “falsa consciência”, como obstáculo ao alcance da justiça social. Ao passo que alguns proponentes do reconhecimento rejeitam as políticas redistributivas por não articular nem desafiar as principais experiências de injustiça. Por isso, para a autora, “justiça, hoje, requer tanto redistribuição, quanto reconhecimento; nenhum deles sozinho é suficiente”. (FRASER, 2007, p. 102).17

Tem-se um difícil dilema quando nos afastamos desses dois extremos e nos confrontamos com pessoas sujeitas à injustiça cultural e à injustiça econômica que necessitam de redistribuição e reconhecimento. Fraser (2006, p. 333) conceitua essa categoria como coletividades “bivalentes”. E, ainda, sustenta que “são diferenciadas como coletividades tanto em virtude da estrutura econômico- política quanto da estrutura cultural-valorativa da sociedade”. Portanto, coletividades bivalentes necessitam de remédios de redistribuição e de reconhecimento.

Fraser (2007) propõe tratar a questão do reconhecimento como status social. Dessa forma, o que exige reconhecimento não é a identidade específica de um grupo, mas os membros do grupo na condição de parceiros integrais na integração social. Assim, o não reconhecimento significa subordinação social, ou seja, ser privado de participar como um igual na vida da sociedade. Para reparar uma injustiça, há necessidade de uma política de reconhecimento. No modelo de status, ao contrário, significa uma política que visa a superar a subordinação, tornando o sujeito falsamente reconhecido um membro integral da sociedade, capaz de participar como igual.

17 Segundo Fraser (2007), integrar redistribuição e reconhecimento não é uma tarefa fácil. O

trabalho envolve difíceis questões filosóficas, principalmente à relação entre moralidade e ética, entre o correto e o bem e entre a justiça e a boa vida. Ambos concordam que distribuição pertence à moralidade e o reconhecimento à ética, e elas nunca se encontrarão. Contudo, é isso que Fraser (2007) pretende desafiar, argumentando que é possível integrar redistribuição e reconhecimento.

Entender o reconhecimento como uma questão de status significa examinar os padrões institucionalizados de valoração cultural em função de seus efeitos sobre a posição relativa dos atores sociais. Se e quando tais padrões constituem os atores como parceiros, capazes de participar como iguais, com outros membros, na vida social, aí nós podemos falar de reconhecimento recíproco e igualdade de status. Quando, ao contrário, os poderes institucionalizados de valoração cultural constituem alguns atores como inferiores, excluídos, completamente ‘os outros’, ou simplesmente invisíveis, ou seja, como menos do que parceiros integrais na interação social, então nós podemos falar de não reconhecimento e subordinação de status. (FRASER, 2007, p. 108).

Nesse modelo, o não reconhecimento aparece quando as instituições impedem a paridade de participação, por exemplo, como ocorre quando somente considera-se correta a família chefiada por homens, e a família chefiada por mulheres não, bem como leis que excluem a união entre pessoas do mesmo sexo.

Para Fraser (2006), o gênero é um paradigma de coletividade “bivalente”, pois abrange dimensões econômicas e dimensões cultural-valorativas, portanto, necessita de política de redistribuição e de política de reconhecimento. O gênero, por exemplo, tem dimensões econômico-políticas, porque é um princípio estruturante básico da economia política. Ele estrutura a divisão fundamental entre trabalho “produtivo” remunerado e trabalho “reprodutivo” e doméstico não- remunerado. Além disso, estrutura a divisão interna do trabalho remunerado, com a remuneração mais alta para os homens e as remunerações inferiores para as mulheres. Fraser (2006, p. 234) sustenta que é preciso abolir a divisão do trabalho segundo o gênero, “se o gênero não é nada mais que uma diferenciação econômico-política, a justiça exige, em suma, que ele seja abolido”.

O resultado é uma estrutura econômico-política que engendra modos de exploração, marginalização e privação especialmente marcados pelo gênero. Esta estrutura constitui o gênero como uma diferenciação econômico política dotada de certas características da classe. Sob esse aspecto, a injustiça de gênero aparece como uma espécie de injustiça distributiva que clama por compensações redistributivas. De modo muito semelhante à classe, a injustiça de gênero exige a transformação da economia política para que se elimine a estruturação de gênero desta. Para eliminar a exploração, marginalização e privação especialmente marcadas pelo gênero é preciso abolir a divisão do trabalho segundo ele - a divisão de gênero entre trabalho remunerado e não-remunerado e dentro do trabalho remunerado. (FRASER, 2006, p. 234).

Em relação à dimensão cultural, o gênero abarca elementos que se assemelham mais à sexualidade do que à classe, portanto, ele se enquadra na problemática do reconhecimento. O androcentrismo é uma característica essencial da injustiça de gênero, que gera uma desqualificação generalizada da mulher. Essa desvalorização se expressa numa variedade de danos sofridos pelas mulheres, como violência sexual e doméstica, exclusão, marginalização, negação de direitos, dentre outros. Esses danos são injustiças de reconhecimento. (FRASER, 2006).

O sexismo e o androcentrismo, presentes em nossa sociedade, exigem a mudança dos valores culturais, pois negam direito às mulheres e privilegiam os homens. Há necessidade da revalorização e do reconhecimento das mulheres.

Dessa forma, o gênero, considerado como uma categoria bivalente, exige políticas de redistribuição e políticas de reconhecimento. Segundo Santos (2003), apenas a exigência do reconhecimento e da redistribuição permite a realização da igualdade. As duas políticas se entrelaçam e se reforçam para conquistar a mudança política e cultural que demanda a questão do gênero. A redistribuição busca acabar com a separação de gênero. O reconhecimento busca valorizar a especificidade de gênero.