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4.5 Discursos Jurídicos: os Critérios para Incidência da Lei Maria da

4.5.4 Vulnerabilidade e Hipossuficiência

Esta categoria corresponde à análise dos discursos dos desembargadores acerca dos pressupostos da vulnerabilidade e da hipossuficiência da mulher em situação de violência para fins de aplicação ou não da Lei Maria da Penha.

As expressões vulnerabilidade e hipossuficiência foram encontradas em setenta e quatro acórdãos. Dentro dessa categoria, duas correntes foram localizadas: a) A vulnerabilidade e a hipossuficiência da mulher são presumidas na Lei Maria da Penha, pois decorrem do próprio gênero; b) A Lei Maria da Penha se aplica somente à mulher hipossuficiente ou vulnerável.

Observe-se, por exemplo, os argumentos da primeira corrente. Em um caso de violência praticado por irmão contra a irmã o feito foi remetido ao Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher. A Magistrada determinou a redistribuição ao Juizado Especial Criminal, afirmando que não restou comprovado os requisitos da Lei Maria da Penha, uma vez que se trata de briga entre irmãos, na qual não há lesão de gênero, requisito essencial para aplicação da referida lei. O juiz suscitante alega que é caso de aplicação da Lei Maria da Penha, pois as lesões foram praticadas pelo irmão da mulher em situação de violência, residindo ambos no mesmo imóvel. O TJRS julgou procedente o conflito sob o seguinte argumento.

A Lei Maria da Penha destina-se a coibir a violência doméstica oriunda das relações de gênero, onde se pressupõe a vulnerabilidade e a hipossuficiência da mulher. [...] Dessa forma, no presente caso, a Lei incide, pois a suposta agressão foi cometida no âmbito da família, pois a vítima (mulher) e agressor (homem) são irmãos, sendo que, ainda, habitam no mesmo imóvel. (RIO GRANDE DO SUL, 2013p).

Da mesma forma, em um episódio de agressão de pai contra a filha, a julgadora sustenta a aplicação da Lei Maria da Penha, presumindo acerca dos pressupostos de vulnerabilidade e hipossuficiência.

Tratando-se de envolvimento entre pai e filha, mostra-se evidente a relação familiar, estando presente a vulnerabilidade ou hipossuficiência da vítima em relação ao seu agressor, já que o delito foi praticado no âmbito das relações domésticas e familiares, ainda que os dois não residam no mesmo local. (RIO GRANDE DO SUL, 2013q).

Por outro lado, a segunda corrente sustenta a necessidade de comprovação de hipossuficiência e vulnerabilidade para que a mulher possa receber a proteção prevista na Lei Maria da Penha. Destacam-se alguns argumentos identificados nos acórdãos que sustentam essa posição.

No caso de um irmão que ameaçou a irmã, o feito foi encaminhado à Vara Criminal com competência da LMP, que entendeu não ser caso de aplicação da Lei, pois não estava caracterizada a situação de opressão de gênero, hipossuficiência ou vulnerabilidade da ofendida. O desembargador manteve a decisão, uma vez que não identificou “a submissão da vítima frente ao agressor em razão de gênero, ou mesmo, situação de vulnerabililidade, hipossufiência e inferioridade física ou econômica”. (RIO GRANDE DO SUL, 2014f).

Da mesma forma, em um caso de ameaça de irmão contra irmã, o julgador sustenta que a Lei Maria da Penha visa a proteger e coibir a violência baseada em gênero na esfera de violência doméstica e familiar, constatada a posição de vulnerabilidade e hipossuficiência. E, ainda, conclui que “a relação de convivência existente, bem como a suposta condição de vulnerabilidade e hipossuficiência ostentada pela vítima, permite a incidência da Lei Maria da Penha no caso para ofertar maior proteção à ofendida”. (RIO GRANDE DO SUL, 2014g).

Pode-se observar que sustentar a aplicação da Lei somente às mulheres que comprovem vulnerabilidade e hipossuficiência é criar um perfil da mulher que estaria protegida pela Lei Maria da Penha, determinando as características de quem pode ou não sofrer violência doméstica e familiar baseada no gênero, bem como mantendo discursos de inferioridade feminina.

Para decidir da incidência ou não da legislação protetiva, os desembargadores parecem recorrer aos papeis de gênero96, reafirmando o “lugar” da mulher. Recoloca-se a mulher no lugar de inferioridade, de dominação, parece para que se sinta protegida.

De plano, cabe ressaltar que a Lei Maria da Penha não faz essa consideração de mulher hipossuficiente e vulnerável. Ao reforçar esses

96 “Tudo aquilo que é associado ao sexo biológico fêmea ou macho em determinada cultura é

considerado papel de gênero. Estes papéis mudam de uma cultura para outra. A Antropologia, que tem como objetivo estudar a diversidade cultural humana, tem mostrado que os papéis de gênero são muito diferentes de um lugar para outro do planeta”. (GROSSI, 1998a, p. 6).

estereótipos de gênero, inverte-se a lógica da lei. Aponte-se também a extrema dificuldade de comprovação para configuração desses requisitos. Cumpre destacar que as disposições preliminares esclarecem que qualquer mulher em situação de violência pode ser protegida pela Lei Maria da Penha, observe-se o artigo 2º.

Art. 2o Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia,

orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.

Nesse sentido, o legislador, em nenhum momento, condicionou a aplicação da lei protetiva à demonstração desses pressupostos, sendo vedado ao julgador fazê-lo. A descaracterização da violência doméstica através de exigências que não constam da lei, tornam o diploma menos eficaz em muitas situações. Se assim o fizer, mulheres com destaque no meio social, com profissão, ou independência econômica seriam consideradas isentas de violência de gênero no âmbito doméstico e familiar ou qualquer relação íntima de afeto e não estariam protegidas pela Lei Maria da Penha, como ocorreu no caso mencionado da atriz Luana Piovani, surgindo uma discriminação para situações idênticas.

Ressalte-se que a violência de gênero no âmbito doméstico e familiar pode ocorrer com qualquer mulher. A violência e o machismo ocorrem independentes de condições culturais e financeiras das mulheres. De acordo com Saffioti (1997), o fenômeno da violência de gênero, especialmente o doméstico, não conhece fronteiras de nenhum tipo, nem de classe, nem do tipo de cultura ou grupo étnico. É o mais democrático de todos os fenômenos.97

Quando não se aplica a Lei Maria da Penha a uma mulher em razão de suas características, cria-se um novo requisito que é o da mulher frágil, vulnerável e hipossuficiente. A mulher é eminentemente vulnerável no que tange a constrangimentos físicos e psicológicos no âmbito doméstico, em razão da notória e histórica violência sofrida na sociedade brasileira. Além disso, “paira

97 No mesmo sentido, Mulhen e Strey (2013, p. 229) sustentam que “as mulheres,

independentemente de raça, etnia, classe social, religião, idade ou qualquer outra condição, podem ser vítimas de feminicídio/femicídio, assassinatos baseados em gênero, produto de um sistema social que subordina o sexo feminino, tornando-as alvo de uma rota crítica que inicia no contexto familiar”.

sobre a cabeça de todas as mulheres a ameaça de agressões masculinas, funcionando isto como mecanismo de sujeição aos homens, inscrito nas relações de gênero”. (SAFFIOTI, 2004, p. 74). Por isso, a hipossuficiência e vulnerabilidade é algo inerente à condição da mulher, principalmente quando ela está diante de uma situação de violência doméstica e familiar. Portanto, entende- se que não há necessidade de comprovar vulnerabilidade ou hipossuficiência no momento da agressão, seja econômica, física, cultural, emocional.