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3.3 A Lei Maria da Penha

3.3.2 Sujeito Ativo e Sujeito Passivo

A legislação criou mecanismos para proteger a mulher vítima de violência, sem fazer referência ao gênero do agressor. Até, porque, estabelece que as relações pessoais independem de orientação sexual.

Notável a inovação trazida pela lei neste dispositivo legal, ao prever que a proteção à mulher, contra a violência, independe da orientação sexual dos envolvidos. Vale dizer, em outras palavras, que também a mulher homossexual, quando vítima de qualquer ato perpetrado pela parceira, no âmbito da família – cujo conceito foi nitidamente ampliado pelo inc. II, deste artigo, para incluir também as relações homoafetivas – encontra-se sobre a proteção do diploma legal em estudo. (CUNHA; PINTO, 2014, p. 62).

Ao dispor que a mulher lésbica também pode ser agressora, a Lei opera um rompimento de identidade fixa, com duas consequências. A primeira, apontada por Dias (2012), sobre a ampliação do conceito de família, incluindo a união entre mulheres do mesmo sexo e rompendo o dualismo de gênero. A segunda, no reconhecimento da violência entre as mulheres, rompendo com a noção fixa de mulher vítima. (CAMPOS; CARVALHO, 2011).

Nesse sentido, Campos (2008, p. 261) afirma que a discriminação que a Lei faz está relacionada ao sujeito passivo dessa violência, assim como o fazem vários tipos penais. Portanto, sujeito ativo da violência pode ser qualquer pessoa coligada a uma mulher por vínculo afetivo, familiar ou doméstico: todas se sujeitam à nova lei (GOMES; BIANCHINI, 2006). Como exemplos encontram-se conflitos entre mães e filhas, entre irmãs, dentre outras. Contudo, tal conclusão não é pacífica na doutrina e na jurisprudência. Há quem defenda que apenas o homem pode ser sujeito ativo da violência doméstica.

A Lei 11.340 não finaliza dar uma proteção indiscriminada à mulher, mas sim proteger a mulher em face do homem, supostamente mais forte, ameaçador e dominante no quadro cultura, daí por que não se aplica a referida legislação quando o sujeito ativo for do gênero feminino, podendo-se, destarte, afirmar que o sujeito ativo de crimes praticados em situação de violência doméstica ou familiar contra a mulher, para os efeitos da Lei 11.34006, é apenas o homem. (PORTO, 2014, p. 41).

Esse argumento também é defendido a partir do princípio da legalidade que não deixa espaço para interpretação extensiva em matéria de natureza penal.

Quando a lei determina que a vítima deva ser uma mulher e utiliza em vários dos seus dispositivos a expressão ‘ofendida’ e se refere ao sujeito ativo como ‘agressor’, não se pode admitir que o sujeito passivo e o ativo sejam do mesmo sexo. Na esfera penal, é imprescindível que exista uma mulher no pólo passivo, a ofendida, e um homem no pólo ativo, o agressor, como determina expressamente o texto legal. (MONTENEGRO, 2015, p. 116).

Entende-se que para a incidência da Lei Maria da Penha, independe o gênero do sujeito ativo, bastando que fique configurada a violência doméstica e familiar contra a mulher baseada no gênero, conforme exposto no item anterior.

Destaca-se que, no terceiro capítulo, será possível verificar os discursos jurídicos acerca do sujeito ativo da violência doméstica e familiar contra a mulher para fins de incidência da Lei Maria da Penha.

Quanto ao sujeito passivo, a Lei Maria da Penha exige que seja mulher. Nesse sentido, segundo uma interpretação72, a legislação abrange também transgêneros, transexuais e travestis, identificadas com o gênero feminino. Portanto, qualquer agressão contra elas no ambiente doméstico, familiar, ou em

qualquer relação íntima de afeto, baseadas no gênero, também é violência doméstica, merecendo proteção da lei específica.

Porto (2014) defende a tese de que a transexual que tenha optado pela redefinição sexual possa ser abrangida pela Lei Maria da Penha, pois não se estaria a cogitar uma analogia com a mulher, mas da própria inclusão dessa transexual no conceito de mulher. Contudo, entende que a Lei Maria da Penha não deve ser aplicada à travesti nem ao homossexual que não tenha optado pela redesignação sexual.73

Uma vez que tais indivíduos não assumem em sua plenitude o gênero oposto ao definido biologicamente, estando não raros satisfeitos com sua genitália e até mesmo com determinadas características sociais do gênero biológico, de modo que a aplicação da Lei 11340/06, em relação a tais indivíduos, realmente, viria em afronta evidente à taxatividade estrita defluente do principio constitucional da legalidade. (PORTO, 2014, p. 55).

Gomes e Bianchini (2006) entendem que:

Pessoas travestidas não são mulheres. Não se aplica no caso delas a lei nova (sim, as disposições legais outras do CP e do CPP). No caso de cirurgia transexual, desde que a pessoa tenha passado documentalmente a ser identificada como mulher (Roberta Close, por exemplo), terá incidência a lei nova.

Tal situação ainda é discutida na doutrina. Identifica-se, no Poder Judiciário, decisão favorável ao caso de redesignação sexual e de adequação sexual.

A Juíza Ana Cláudia Veloso Magalhães, da 1ª Vara Criminal da Comarca de Anápolis/Goiás, aplicou a Lei Maria da Penha a uma transexual que sofreu agressão do seu ex-companheiro. A magistrada entendeu que embora não tenha havido alteração do registro civil, a vítima fora submetida a uma cirurgia de redesignação sexual, o que a torna pessoa do sexo feminino. (GOIÁS, 2011).

73 Cabe destacar que o autor não faz uma diferenciação entre travestis, transexuais e

homossexuais, bem como não diferencia identidade de gênero e orientação sexual. Para Stoller (1978), todo indivíduo tem um núcleo de identidade de gênero, que é um conjunto de convicções pelas quais se considera socialmente o que é masculino ou feminino. “A identidade de gênero é uma categoria pertinente para pensar o lugar do indivíduo no interior de uma cultura determinada e que sexualidade é um conceito contemporâneo para se referir ao campo das práticas e sentimentos ligados à atividade sexual dos indivíduos”. (GROSSI, 1998a). Portanto, a identidade de gênero independe da orientação sexual.

Também identifica-se decisão que amplia a aplicação da Lei Maria da Penha para o caso de adequação sexual.

CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. HOMOLOGAÇÃO DE AUTO DE PRISÃO EM FLAGRANTE. AGRESSÕES PRATICADAS PELO COMPANHEIRO CONTRA PESSOA CIVILMENTE IDENTIFICADA COMO SENDO DO SEXO MASCULINO. VÍTIMA SUBMETIDA À CIRURGIA DE ADEQUAÇÃO DE SEXO POR SER HERMAFRODITA. ADOÇÃO DO SEXO FEMININO. PRESENÇA DE ÓRGÃOS REPRODUTORES FEMININOS QUE LHE CONFEREM A CONDIÇÃO DE MULHER. RETIFICAÇÃO DO REGISTRO CIVIL JÁ REQUERIDA JUDICIALMENTE. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO, NO CASO CONCRETO, DA LEI N.11.340/06. COMPETÊNCIA DO JUÍZO SUSCITANTE. CONFLITO IMPROCEDENTE. (SANTA CATARINA, 2009).

Percebe-se que as decisões concedem proteção da Lei Maria da Penha em razão da cirurgia de redesignação ou readequação sexual sob o argumento que esta torna a pessoa do sexo feminino. Ocorre que a lei não faz distinção entre mulheres numa acepção estritamente biológica e uma mulher transgênero, portanto, ela deve ser interpretada no sentido amplo do sistema de gênero para acolher situações de violência contra mulheres “trans”, independente de ter havido a cirurgia de transgenitalização. (SIMIONI; CRUZ, 2011, p. 186). Ademais, cabe destacar que a cirurgia não se faz necessária para a configuração da identidade de gênero feminina, pois esta é a forma como a pessoa se reconhece dentro dos padrões de gênero construídos socialmente em determinada sociedade.