• Nenhum resultado encontrado

3.2 – DEMOCRACIA DELIBERATIVA E O PLANEJAMENTO URBANO BRASILEIRO

Parte II: está dividida em duas seções: a primeira faz uma análise mais descritiva das experiências nos processos de revisão dos

3.2 – DEMOCRACIA DELIBERATIVA E O PLANEJAMENTO URBANO BRASILEIRO

No Brasil, se comparada a outros países, a democracia caracteriza-se como um acontecimento histórico recente, alternando momentos de maior afirmação com outros de quase inexistência, trajetória entrecortada por regimes de carácter ditatorial. Da mesma forma, o planejamento urbano reflete as determinações econômico- sociais da sociedade, não ficando à margem dos seus acontecimentos, mas oscilando entre momentos de maior democratização com outros de autoritarismo.

Embora haja uma previsão constitucional de que as políticas públicas relacionadas ao planejamento urbano, especialmente os planos diretores, devem ser geridas democraticamente, concordamos com a colocação de Gentili (1988, p. 45), de que não há um conceito unívoco de democracia a partir do qual se possa captar a sua essência universal, pois “todo conceito de democracia está indissoluvelmente unido a conflitos ideológicos, utopias e lutas políticas levadas a cabo entre os que defendem e disputam diferentes interpretações da mesma”.

27

Cabe ressaltar, porém, o esclarecimento que o autor dá para “este mercado” – esta é uma característica fundamental das economias de mercado – não oferece uma significativa soberania ao consumidor, já que está muito longe de ser um mercado plenamente concorrencial, constituindo-se, assim, em um mercado oligopólico, no qual há um predomínio do econômico sobre o político.

Assim, a concepção de democracia efetiva, aqui adotada, coloca- se parcialmente em oposição à burocracia. Segundo Tratemberg (1982), burocracia significa hierarquia e poder inerentes a uma sociedade dividida em classes, ou seja, a burocracia é um sistema de poder que está posto nas relações sociais que se estabelecem no interior de uma formação societária, permitindo que se imprima um direcionamento político ao conjunto das classes sociais com base nos interesses ideológicos da classe dominante. Contrariamente a isso, a democracia significa descentralização horizontalização e descentralização do poder, proporcionando a todos os envolvidos no processo uma participação mais igualitária.

Ariosi e Dal Ri (2004, p. 90) consideram que “A base da prática democrática é a participação, a presença e o envolvimento das pessoas com as questões da vida coletiva”. Dessa forma, a existência de democracia e, consequentemente, da gestão democrática na elaboração ou revisão de planos diretores pressupõe a quebra do paradigma da centralização do poder, a presença de diálogo e a criação de lócus para participação da população nas questões que são substanciais no transcorrer de suas vidas.

Na sociedade atual, marcada pelas profundas diferenças sociais, a principal forma de democracia que se tem experimentado é a democracia representativa, aceita pelas classes dominantes, em função de não ameaçar o poder econômico e de ser facilmente manipulável, como visto anteriormente.

Reconhece-se a complexidade da sociedade contemporânea e de suas instituições, que não se contrapõe completamente ao princípio da representatividade, marca da democracia liberal, mesmo reconhecendo numa sociedade de classe, com interesses antagônicos e irreconciliáveis, os limites da democracia representativa.

Em função desse contexto, intenciona-se pensar a democracia representativa limitada aos momentos que ela se faz extremamente necessária e como um vínculo que se estabelece entre o representante e os representados. Vínculo que não se limita ao momento da indicação via sistema eletivo, mas que deve perdurar por todo o tempo da representação e que os representantes recorram sempre que possível a consulta às bases para tirar suas dúvidas, delegando a elas poder de decisão.

A democracia participativa/deliberativa, por sua vez, é um regime onde, de forma geral, se pretende que existam efetivos mecanismos de controle da sociedade civil sob a administração pública, mediante discusões na esfera pública, não se reduzindo o papel democrático

apenas ao voto, como na democracia representativa, mas também estendendo a democracia para a esfera social.

É também considerado um modelo ou ideal de justificação do exercício do poder político baseado no debate público entre cidadãos (em grupos) e em condições iguais de participação. Lüchmann (2002) advoga que a legitimidade das decisões políticas advém de processos de discussão que, orientados pelos princípios da inclusão, do pluralismo, da igualdade participativa, da autonomia e da justiça social, conferem um reordenamento na lógica de poder político tradicional. Dessa forma, a autora conceitua a democracia deliberativa da seguinte forma:

A democracia deliberativa constitui-se como um modelo ou processo de deliberação política caracterizado por um conjunto de pressupostos teórico-normativos que incorporam a participação da sociedade civil na regulação da vida coletiva. Trata-se de um conceito que está fundamentalmente ancorado na idéia [sic] de que a legitimidade das decisões e ações políticas deriva da deliberação pública de coletividades de cidadãos livres e iguais. Constitui-se, portanto, em uma alternativa crítica às teorias “realistas” da democracia que, a exemplo do “elitismo democrático”, enfatizam o caráter privado e instrumental da política (LÜCHMANN, 2002, p. 19).

O conceito de Lüchmann (2002) vai ao encontro do que propõe Maia (2000) ao afirmar que nesse tipo de democracia a sociedade civil deve ser competente, estabelecer pontes comunicativas entre os diversos atores e ser convincente, para que, na coexistência social, suas demandas sejam encampadas pelo grupo de modo que se estabeleçam relações concretas entre a sociedade civil e as instâncias decisórias e institucionalizadas do Estado.

Essas duas visões, que apontam para uma reconfiguração dos tradicionais mecanismos decisórios das organizações públicas presentes na democracia deliberativa, podem ser enquadradas como possibilidades no processo de gerenciamento de planos diretores participativos nos moldes apontados pelo Ministério das Cidades (2005), que devem ser seguidos pelas administrações municipais.

Diferentemente da democracia representativa, que confere ao sufrágio universal a legitimidade para a autoridade do exercício do

poder, a democracia deliberativa propõe que as decisões sejam fruto de discussões coletivas e públicas que se expressam em instituições desenhadas para o exercício efetivo dessa autoridade coletiva, a partir de um tripé formado pelo poder público, saber técnico e saber comunitário (popular). Nesse sentido, como introduz Lüchmann (2003, p. 167) “a noção de esfera pública constitui-se como o eixo articulador dessa abordagem teórica”.

Dessa forma, a democracia deliberativa pode ser entendida como um processo público e coletivo de discussão e de decisão sobre políticas públicas, que eleva a sociedade civil ao patamar das deliberações políticas. De forma igual, a concepção de esferas públicas, com grande e plural participação da sociedade civil, conforma o núcleo central deste conceito que privilegia a dimensão do debate público entre cidadãos livres e em condições iguais (LÜCHMANN, 2002). Ou seja, a deliberação é resultado, não apenas da vontade dos cidadãos, mas fundamentalmente da vontade estabelecida através de um debate público entre os sujeitos deliberativos no ambiente de esfera pública.

Considerando-se o caráter primordial e decisório do processo participativo que se institui na esfera pública, o papel da sociedade civil vai além de influenciar ou impactar o sistema político-institucional. Tomando-se como base a elaboração ou a revisão de planos diretores, com participação legalmente garantida, prevê-se o papel decisivo desses atores na produção de políticas institucionais.

No Brasil, apesar do papel preponderante da sociedade civil em alguns casos, como as experiências de Orçamento Participativo28, Conselhos Gestores de Saúde e de Planos Diretores, as iniciativas para que se tenha um desenho institucional quase sempre partem do poder público, haja vista as imposições de regras e normas serem apresentadas por este. Outro fator importante é de que a participação em políticas públicas no Brasil é muito recente e, consequentemente, a cultura participativa na sociedade brasileira ainda carece de um amadurecimento para tornar-se uma prerrogativa incondicionável. No entanto, há de se ressaltar as iniciativas tomadas nos exemplos apontados por (Lüchmann (2002) e Avritzer (2002c; 2008)), que fazem do Brasil um exemplo a ser seguido em termos participativos institucionais (AVRITZER, 2008).

É nessa perspectiva que se incorpora a análise institucional no referencial da democracia deliberativa, na medida em que, para fazer valer uma autoridade coletiva pautada por uma participação ampla, livre

28

e igual de uma pluralidade de agentes sociais em fóruns públicos de decisões, faz-se necessário a criação de mecanismos institucionais que oportunizem a efetivação desse ideal de participação, bem como de autoridade política, promovendo condições favoráveis não apenas para a participação e para a expressão de interesses, mas como para o redirecionamento destes visando a inversão das prioridades sociais.

O palco delineado para essa ampla discussão é a esfera pública29; para Lüchmann (2003) a esfera pública tem um “caráter público” e é onde acontece o debate político entre sociedade civil e Estado e, na medida em que, para além dos debates, articulações, encontros que visam discutir, problematizar e complexar questões, bem como demandar soluções aos problemas que estão na agenda pública, produz e amplia espaços públicos.

Esse conceito de esfera pública está dentro dos pilares da democracia deliberativa, que por sua vez, converge para o caminho da deliberação por meio de instituições públicas e privadas. Tratar da questão da institucionalidade, porém, significa pensá-la em uma dualidade, na medida em que, por um lado, elas são resultantes de articulações e forças sócio-políticas e, por outro, apresentam um caráter impositivo no sentido de impactar relações sociais. Ou seja, em se tratando de uma perspectiva democrática deliberativa, significa pensar em uma construção institucional pautada em mecanismos – democráticos – de garantia dos princípios da igualdade, pluralismo e liberdade. Sustenta-se aqui, corroborando a ideia de Lüchmann (2002), que o poder deve organizar-se democraticamente através de instituições que, construídas coletivamente por meio de uma discussão pública, mediam as relações entre os interesses individuais e coletivos, na construção do interesse público a ser gestionado pelo complexo administrativo estatal.

Assim, como se vem afirmando, se por um lado não se pode negar o papel de constrangimento da esfera ou do campo institucional na conformação da ação e do comportamento social, por outro, tem-se que se resgatar o caráter aberto e amplo das lutas e conflitos sociais no processo de organização – ou, como frisa Lüchmann (2002) ao longo de sua tese, de reorganização institucional, ou simplesmente neoinstitucionalismo30.

A questão da participação social, portanto, está contida nos alicerces da democracia deliberativa, bem como as atribuições do

29

Sobre esfera pública ver Lüchmann (2003).

30

Estado no sentido de estimulador maior do processo democrático. Faz- se necessário, no entanto, que algumas condições sejam apresentadas à esfera pública para que sejam aprofundadas as discussões em torno de condições concretas e as manifestações democráticas tornem-se viáveis. Assim, o desenho institucional e a vontade política que se apresentam nos poderes públicos locais diversos são elementos básicos para a participação social em políticas públicas em âmbito municipal.

3.3 – A DEMANDA DA PARTICIPAÇÃO NO PLANEJAMENTO