• Nenhum resultado encontrado

1.2 A PRÁTICA DE PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL A história do planejamento urbano do Brasil, com intervenções

Parte II: está dividida em duas seções: a primeira faz uma análise mais descritiva das experiências nos processos de revisão dos

1.2 A PRÁTICA DE PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL A história do planejamento urbano do Brasil, com intervenções

pontuais do Estado, remete ao início do século passado, quando esteve principalmente relacionado ao higienismo da capital do país. Ainda no final do século XIX e, mais precisamente, nos primeiros anos do século

6

Lefebvre (2001) distingue citadins (todos os habitantes da cidade)

de citoyens (aqueles a quem o Estado reconhece a cidadania política), esclarecendo que o direito à cidade é de todos os seus habitantes, independentemente de seu reconhecimento legal como cidadãos. Entendemos, contudo, que a cidadania extrapola o enfoque formal e estatal: evocamos aqui a plena cidadania para todos os habitantes da cidade, e é por isso que nesta tese iremos chamá-los todos de cidadãos, independentemente de serem ou não reconhecidos pelo sistema jurídico formal.

XX, as autoridades do Rio de Janeiro resolveram urbanizar e modernizar a cidade tentando assim apagar seu passado colonial e monárquico, com a finalidade de atender a certa camada da sociedade.

No início do século XX, o Rio de Janeiro (a capital do país), vivia um período de transformações. Com o objetivo de dar ao Brasil características mais modernas, fugindo da visão de atraso, de país escravocrata, Pereira Passos, prefeito da cidade, inspirou-se no modelo de Paris (século XIX entre 1853 e 1870) para fazer as reformas urbanísticas no centro da cidade, construindo praças, ampliando ruas e criando estruturas de saneamento básico.

As reformas de Francisco Pereira Passos começaram em 1903, pautadas na higienização do médico Oswaldo Cruz. Essa reforma buscou também adaptar a cidade aos automóveis. Foi nesse período que o Rio de Janeiro viu a chegada da energia elétrica e a reorganização do espaço urbano, inclusive com a expulsão de pessoas para fora do centro urbano.

Um das grandes consequências da reforma “Pereira Passos” foi o surgimento de favelas devido a destruição dos cortiços. Seguindo modelo parisiense, o projeto de modernização previa intervenções nos centros urbanos, tais como a construção de praças e jardins, o alargamento e o calçamento de ruas, a drenagem de áreas alagadas, a coleta de lixo, o serviço de distribuição de água e luz, entre outros. Essas medidas, no entanto, favoreceram apenas uma pequena parcela da população, uma vez que tal projeto foi realizado pela e para as elites da época, excluindo grande parte da população dos benefícios proporcionados pela modernização.

As transformações sociais experimentadas no Brasil nesse período ficaram conhecidas como belle époque e marcaram a história do urbanismo no país, por realizarem as primeiras intervenções diretas nas cidades. Segundo Villaça (1999, p.175), “o primeiro período do planejamento urbano brasileiro é marcado pelos planos de melhoramentos e embelezamento ainda herdeiros da forma urbana monumental que exaltava a burguesia e que destruiu a forma urbana medieval (e colonial, no caso do Brasil)”. O modelo de urbanização das cidades brasileiras, nos moldes europeus, perdurou por grande parte do século XX.

A partir das décadas de 1930 e 1940, porém, o planejamento urbano passou a ser aplicado no Brasil com outro caráter: menos intervencionista em termos de obras e mais ligado à legislação urbana. A ideia de plano diretor foi, então, introduzida no início da década de 30, pelo urbanista francês Alfred Agache. Ele elaborou o primeiro Plano Diretor do Brasil (Plano Agache) para a cidade do Rio de Janeiro em

1930 e “neste plano, pela primeira vez, aparece entre nós a palavra ‘plan directeur’” (VILLAÇA, 2005, p.10). Segundo Maricato (2001), este período, especificamente a partir da década de 1940, ficou conhecido como “planejamento modernista”, o qual se fundamentou nas raízes do iluminismo e ganhou especificidade durante os anos do welfare state (1945 a 1975), também conhecidos nos Estados Unidos e Europa como “os trinta gloriosos”.

Nessa fase do desenvolvimento urbano do país, o Estado se destacou como o principal agente de promoção dessa ordem, a partir da lógica tecnicista de elaboração de planos de organização físico- territorial, em sua maioria quase sempre descomprometidos com o verdadeiro desenvolvimento econômico7 da cidade. Além disso, o desenvolvimento urbano apresentou-se de forma elitista, uma vez que foi embasado na modernização e crescimento quantitativo, privilegiando alguns grupos com ideologia distorcida.

A história desse período do planejamento urbano brasileiro, especialmente dos planos diretores, mostra-nos o quanto eles eram excessivamente genéricos, compostos por diretrizes e objetivos gerais, os quais, na prática, orientavam muito pouco as ações do Poder Público. Neste sentido, Feldman (2005) aponta que a falta de consistência e de disposição em segui-los gera uma visão tradicional de plano diretor associada à de zoneamento. Ainda hoje, conforme a autora, o zoneamento que abrange todo o território da cidade é o principal instrumento de planejamento na maioria dos municípios. Atualmente, mesmo entre os profissionais da área de planejamento urbano, é muito comum a associação entre plano diretor com lei de uso e ocupação do solo (ou lei de zoneamento).

O zoneamento a que nos referimos, na visão de Saboya (2008), é aquele que fraciona normalmente a área urbana de uma cidade em zonas teoricamente homogêneas, dentro das quais as mesmas diretrizes edilícias e urbanísticas são aplicadas. Essas diretrizes limitam-se normalmente a estipular índices máximos relativos à taxa de ocupação e de aproveitamento máximo do lote, número máximo de pavimentos e afastamentos frontais e laterais, assim como os usos permitidos em cada

7

Desenvolvimento econômico, na visão de Souza (2007), difere de crescimento econômico. É com base nesses conceitos, que se afirma que o houve no país, nesse período, foi um ‘crescimento econômico’ e não um ‘desenvolvimento econômico’, uma vez que priorizou-se aspectos meramente econômicos em detrimentos de outros como social, cultural e ambiental.

uma das zonas. Em muitos casos o mapa de zoneamento é o único a integrar a lei do plano.

Vários outros autores como Raquel Rolnik (1994), Flávio Villaça (2005), Marcelo Lopes de Souza (2006), Elson Manoel Pereira e Samuel Steiner Santos (2008), afirmam que os planos diretores tradicionais desse período apresentavam um caráter tecnocrático, visto que esses costumavam ser elaborados exclusivamente por técnicos, os quais se mantinham distantes da população e ditavam rumos e ritmos que a cidade deveria seguir.

Nessa fase os técnicos acreditavam não apenas dominar o instrumental necessário para intervir sobre o sistema urbano e corrigir seus rumos e ritmos, como também saber quais seriam esses rumos. Segundo este modelo não haveria a necessidade de um diálogo entre poder público, técnicos e habitantes. Ao Estado competiria a responsabilidade de determinar os objetivos e comandar as ações, enquanto aos Técnicos recairia a responsabilidade de elaborar os planos, transcrevendo os objetivos políticos dos gestores em projetos; e, à coletividade caberia acatar a ação de planos, sendo que, às vezes, a consulta só acontecia depois do projeto finalizado.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, Villaça (1999) acrescenta que os planos modernistas tradicionais costumavam abranger não apenas os aspectos físico-territoriais, como também os econômicos, sociais, culturais. De acordo com o autor, essa era uma estratégia das classes dominantes para desmoralizar o plano diretor, que por se apresentar demasiadamente generalista acabava não funcionando.

Pode-se afirmar, contudo, que há consenso de que os planos não eram executados pelos gestores públicos. Esse fato é atribuído por Villaça (1999) à incapacidade de as classes dominantes que se encontravam no poder à época imporem suas “soluções” para as cidades. Dessa forma, os planos serviam apenas como peças legislativas inoperantes que serviam como respostas aos habitantes, mas os investimentos e as obras públicas seguiam outra direção, alinhados a outros interesses.

Os planos diretores, no entanto, possuíam outras características, como argumenta Saboya (2008). Uma delas, que interessa ressaltar, era o não reconhecimento dos conflitos inerentes do espaço público e à convivência em sociedade, especialmente em uma sociedade tão desigual como a brasileira. Dessa forma, os objetivos eram definidos como se fossem valores universais e incontestáveis, como se não precisassem ser discutidos. Esses fatos aumentavam as probabilidades dos planos de serem engavetados e muito pouco ou quase não utilizados.

Da mesma forma, se não fosse suficiente, Pereira e Santos (2008, p. 2), assinalam que, além dessas características, o saber técnico conduziu por longo tempo o planejamento urbano. Isso resultante de um processo acadêmico em que conceitos como eficiência e funcionalidade ligados ao positivismo estiveram associados ao saber técnico e científico nos planos diretores, o que pouco mudou atualmente.

A política metodológica que norteava esse pensamento cientificista baseava-se no fato de que o saber técnico seria o responsável por proporcionar soluções justas e viáveis às cidades. Também segundo Pereira e Santos (2008) esse processo8, embasado no positivismo e no cartesianismo, era gerador do determinismo espacial. Para os autores:

Os planos diretores se revestiram de diagnósticos, fórmulas e instrumentos técnicos de planejamento, tentando enquadrar a cidade e seus processos sociais em uma estrutura rígida de ordenamento espacial, através do estabelecimento de parâmetros e normas de uso e ocupação do solo (PEREIRA e SANTOS 2008, p.2).

Esse modelo de plano diretor se mantém vivo atualmente no imaginário de muitos técnicos e também de grande parte da sociedade, como instrumento regulador e de intervenção. Mesmo sem alcançar seus objetivos, tal modelo assumiu um forte discurso ideológico nas cidades brasileiras, o que foi possível porque os planos atuaram no imaginário, tendo assim, o poder de nortear as ações técnicas e de regular as cidades. Segundo Rolnik (1994, p. 5) “sua ineficácia em regular a produção da cidade é a verdadeira fonte de seu sucesso político, financeiro e cultural”.

Na obra “As ilusões do Plano Diretor”, Flavio Villaça (2005) traz à cena as ideias do texto “Uma contribuição para a história do planejamento no Brasil” (VILLAÇA, 1999), no qual faz uma análise e tece severas críticas à valorização indevida e exagerada destinada aos planos diretores no Brasil, datados desse período. O autor não esconde o juízo de que não se deve iludir com o alcance dos planos diretores

8

Os autores entendem que nesse processo os autores dos planos diretores acreditavam que o alcance de um padrão ótimo de desenvolvimento urbano e qualidade de vida das pessoas urbanas poderia ser alcançado pelo arranjo das formas espaciais – de infraestrutura e edificações – e pela determinação de uma regulamentação urbanística eficiente.

elaborados, nem com a ideia de planos que se construíram no Brasil depois dos anos 30.

Partindo do exemplo da cidade de São Paulo sua apreciação foi elaborada e fundamentada no plano diretor da cidade, datado de 1971, e em reportagens retiradas de veículos de comunicação paulistanos que dissertaram sobre o plano diretor ou sobre ausência dele. Muito mais que isso, a opinião do autor é de que a crítica traçada pelos jornais é a extensão de um pensamento hegemônico da classe dominante da capital paulista, e que, por conseguinte, estende-se, se não a todas, mas a maioria das cidades do país. Segundo o autor:

Esse plano jamais foi usado, mesmo porque não tinha como ser usado já que era um punhado de generalidades sem condições concretas de aplicação. De seus 57 artigos, apenas três tinham condições de serem usados e de fato o foram [...]. Fora isso, esse plano jamais serviu para nada! Que mal pode provocar a obsolescência de um plano 90% do qual nunca serviu para nada? Como pode tornar-se obsoleto, algo que jamais foi usado? Como pode morrer algo que jamais viveu? (VILLAÇA, 2005, p. 11-12).

Ainda de acordo com o autor, a fé cega no poder miraculoso dos planos diretores teve sua gênese no discurso e na tecnocracia que se alojou na esfera da administração municipal brasileira de forma mais intensa que em qualquer outra esfera de governo. Para Villaça (2005, p. 21) “a falsa valorização dos planos urbanos se insere no contexto da supremacia do conhecimento técnico tradicional e científico como guia da ação política, ou seja, a ideologia da tecnocracia”. Os planos diretores, como salienta o autor, “são, na maioria, cardápios prontos” sem a participação efetiva da sociedade, que, muitas vezes, nem toma conhecimento dessas leis. Diversas obras e atividades que foram realizadas nas cidades não fizeram parte desses planos, porém, os citadinos não conheceram sua origem.

Para Villaça (2005), além da crítica e contagiado por iniciativas de algumas administrações municipais pós-constituição de 1988, quando se inclui um capítulo específico dedicado à política urbana, vislumbra uma inovação no planejamento urbano na década de 90 e coloca o plano diretor para a cidade de São Paulo, elaborado durante a gestão de Luiza Erundina, como “inovador”, por escolher “a terra urbana, a terra equipada”, como seu “grande objeto”. Coloca, também, a aprovação do

Estatuto da Cidade como a frente mais importante para a luta pela reforma urbana e para credibilidade de eventuais planos diretores.

Em As ilusões do plano diretor, o autor combina o rigor científico com a didática. Sua crítica tem como foco o conteúdo do Plano Diretor Estratégico – PDE – aprovado em São Paulo, em 2002, e o processo participativo que precedeu sua aprovação e a dos planos regionais. Nessa obra, o autor cristaliza sua tese de que a produção e a reprodução do planejamento urbano no Brasil, nos últimos 50 anos, concretizaram- se na figura do plano diretor somente enquanto ideologia. Para tanto, o autor utiliza-se dos fatos (entrevistas e reportagens) e de documentos, à luz de conceitos e pressupostos teóricos que ele vem construindo ao longo de décadas de academia.

Villaça (2005, p. 90) estrutura sua crítica a partir de quatro argumentos, quais sejam: a do plano de obras, a do zoneamento, a da participação popular e a do plano diretor. Este último é definido como “a última e grande ilusão”, “a Ilusão-Síntese de todas as outras”. O autor fundamenta seu texto em fatos - presenciados pessoalmente, como foi o caso das audiências públicas do plano diretor e dos planos regionais - ou em entrevistas e matérias publicadas em jornais, além da lei do plano e do estatuto.

A questão central presente ao longo do livro é a relação entre plano diretor e poder político. Isso porque, em um contexto de mudanças, o autor aponta continuidades, discutindo esta relação em diferentes dimensões que indicam a permanência da supremacia do conhecimento técnico e científico como bússola da ação política, tanto no PDE como no Estatuto da Cidade.

Em relação à permanência da visão tecnocrática, a crítica recai sobre a exacerbação da crença nos poderes do plano apresentado pela administração paulistana como “a salvação da cidade” (VILLAÇA, 2005 p. 13), na qual propõe “intervir em tudo, reparar tudo, sem qualquer seletividade” (ibdem p. 23).

No que concerne ao Estatuto da Cidade, a obrigatoriedade de elaboração e aprovação de planos com prazo estipulado e não no reconhecimento de que um processo de planejamento é mais importante que o próprio plano. Entendemos, então, que os avanços do Estatuto da Cidade estão nos dispositivos sobre a função social da propriedade, nas penalidades ao proprietário de terrenos ociosos ou subutilizados e na força conferida ao plano diretor.

Por meio de dados empíricos e de análise dos debates e audiências públicas do PDE e dos planos regionais, Villaça demonstra a outra permanência citada: a equivalência entre poder econômico e poder

político. O autor faz uma análise comparativa da condição urbana diferenciada do setor sudoeste – onde ocorre não a única, mas a maior concentração de camadas de alta renda, tanto na cidade como na região metropolitana de São Paulo, que, por conseguinte, “controla” a cidade.

No caso específico de São Paulo, embora o Plano de Desenvolvimento Estratégico tenha sido elaborado pelo poder público local, o órgão de planejamento da cidade não esteve imune às mudanças do papel do Estado, o que, indubitavelmente, colaborou para sua ambiguidade entre avanço ao nível dos instrumentos e retrocesso em relação à concepção de planos anteriores.

O que aconteceu em São Paulo pode ser constatado também em outras cidades brasileiras. Flavio Villaça em “As ilusões do plano diretor” assume o papel de catalisador do debate da crítica ao tecnocratismo e ao formalismo dos planos. Em “Uma contribuição para a história do planejamento no Brasil” o autor, ao mesmo tempo em que identifica um novo ciclo do planejamento urbano, afirma que o destino desse planejamento está ligado aos avanços da consciência de classe, da organização do poder político das classes populares.