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DEMOCRACIA E CAPITALISMO: A CRISE DOS DIREITOS SOCIAIS

A crise do Estado Social e, de certa forma, a própria crise da democracia 58, é marcada pela afirmação do que se tem chamado de “consenso liberal”. Essa tendência

58 Refere-se, no excerto acima, à crise da democracia compreendida no seu sentido substantivo, ou seja, como

organização política e social apta a promover o desenvolvimento individual e a corrigir as desigualdades sociais, intensificadas pelo estado liberal. Nesse modelo, muito embora, a democracia em sentido procedimental tenha atingido o seu apogeu (tomando-se como exemplo o prestígio dos parlamentos nacionais e da representatividade política), intensificou-se o distanciamento entre as classes sociais pela crença no livre mercado, fundamento do liberalismo econômico.

ideológica, que ficou conhecida como Consenso de Washington, a partir da reunião realizada em 1989, determinou fases de transição nas economias periféricas e semiperiféricas com o discurso de que, seguindo as fases de estabilização macroeconômica e as reformas estruturais apontadas como necessárias pelo Banco Mundial – como a desregulação dos mercados e privatização de empresas estatais e a retomada dos investimentos estrangeiros –, isso acarretaria um crescimento econômico almejado pelas economias semiperiféricas. Entretanto, depois do colapso econômico da Argentina, ficou claro que os artifícios sugeridos maquiavam um desastre social e econômico, que, para os expoentes dessa doutrina, seria uma etapa necessária do neoliberalismo, que resultaria, em longo prazo, num crescimento para o país (FIORI, 1997, p. 13).

Destaca-se, sob esse enfoque, que a conseqüência direta do consenso econômico liberal tem sido o gradativo enfraquecimento da própria democracia e, por conseguinte, dos direitos fundamentais, na medida em que

[...] os efeitos nefastos da globalização econômica e do neoliberalismo, notadamente os relacionados com o aumento da opressão socioeconômica e da exclusão social, somados ao enfraquecimento do Estado, têm gerado a diminuição da capacidade do poder público de assegurar aos particulares a efetiva fruição dos direitos fundamentais, além de reforçar a dominação do poder econômico sobre as massas de excluídos [...] (SARLET, 1999, p. 134).

A crise do Estado nacional acarreta uma crise na noção de soberania estatal, tendo em vista que as decisões políticas tornam-se condicionadas às situações macroeconômicas estabelecidas no âmbito internacional, balizando, dessa forma, as intervenções dos Estados nas regulações adotadas nos âmbitos interno e externo.

Nessas condições, o efeito da crise do Estado aponta para uma outra crise, a dos direitos fundamentais e dos direitos sociais. A existência desse panorama e sua dimensão dependerá do “impacto dos efeitos negativos da globalização econômica e da ampla afirmação do paradigma neoliberal, de modo especial nos países tidos como

periféricos ou em desenvolvimento, até mesmo diante de seu grau de dependência dos países industrializados [...]” (SARLET, 1999, p. 135).

Na questão trabalhista, o aumento da opressão socioeconômica apresenta seus efeitos, gerando reflexos na flexibilização dos direitos dos trabalhadores. E a questão não se restringe apenas à eficácia dos direitos sociais, e, no caso específico, do direito dos trabalhadores já consagrado em inúmeros instrumentos, seja no ordenamento interno, seja no ordenamento internacional, mas se entende que há uma crise no próprio reconhecimento e na identidade dos direitos fundamentais e sociais, ainda que essa seara esteja atrelada à crise da efetividade (SARLET, 1999, p. 138).

É preciso que se diga de forma clara: desregulamentação, flexibilização, terceirização, bem como todo esse receituário que se esparrama pelo “mundo empresarial”, são expressões de uma lógica societal onde o capital vale e a força humana de trabalho só conta enquanto parcela imprescindível para a reprodução desse mesmo capital. Isso porque o capital é incapaz de realizar sua autovalorização sem utilizar-se do trabalho humano. Pode diminuir o trabalho vivo, mas não eliminá-lo. Pode precarizá-lo e desempregar parcelas imensas, mas não pode extingui-lo. (ANTUNES, 2003, p. 177, grifos do autor)

Cabe mencionar que a própria concepção da flexibilização das normas trabalhistas é impulsionada por idéias eminentemente econômicas. O pensamento de que o ordenamento jurídico deve ser flexível é importante para uma adaptação do país aos padrões de concorrência internacional (SIQUEIRA NETO, 1997, p. 33).

Nessa perspectiva, o Direito do Trabalho pode ser entendido como um sistema rígido, caracterizado pelo intervencionismo do Estado, incapaz de estabelecer as necessidades rápidas de mudança que o mundo globalizado enseja. Ora, a solução apontada seria, então, o incentivo das negociações realizadas pelas empresas e voltadas à flexibilização das normas trabalhistas. A concorrência internacional é aludida como uma das razões pelas quais o direito brasileiro deve adequar-se às diferenças normativas entre ordenamentos jurídicos diversos, mas vale mencionar que a flexibilização das normas trabalhistas em nada soluciona o problema do desemprego

sem que medidas decorrentes da política econômica sejam adotadas (SIQUEIRA NETO, 1997, p. 33-40).

Segundo o pensamento liberal adotado pela maioria dos países centrais, a desregulamentação do mercado de trabalho visaria diminuir o gasto social. Esse processo, contudo, acaba enfraquecendo o poder sindical; retira direitos trabalhistas e reduz salários, além de aumentar o trabalho por turnos, temporário e subcontratado (CAMPO, 2006, p. 137).

Os direitos sociais, sob a ótica da normativa internacional, amparados pelas organizações internacionais, são considerados direitos legais e possuem o comprometimento com a integração social e a preocupação na proteção dos grupos mais vulneráveis, devendo ser garantidos aos indivíduos com base na responsabilidade governamental.

A violação aos direitos sociais, econômicos e culturais é resultado tanto da ausência de forte suporte e intervenção governamental, como da ausência de pressão internacional em favor dessa intervenção. É, portanto, um problema de ação e prioridade governamental e implementação de políticas públicas que sejam capazes de responder a graves problemas sociais. (PIOVESAN; GOTTI; MARTINS, 2004, p. 54)

Para Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 377), as inovações tecnológicas são capazes de criar riqueza sem criar empregos, e apenas com a redescoberta democrática do trabalho poder-se-á reconstruir a “economia como forma de sociabilidade democrática”.

Sob esse ponto de vista, uma das iniciativas possíveis para a mudança desse quadro atual repousa na redistribuição do trabalho, impondo-se a exigência de padrões mínimos trabalhistas para que os produtos possam ser livremente comercializados no mercado mundial: “trata-se de uma iniciativa destinada a criar um denominador comum de congruência entre cidadania e trabalho a nível global” (SANTOS, 2006, p. 378-379). Santos entende que a iniciativa deve ser tomada pela OMC, mas faz a ressalva de que se cuide para que a adoção de padrões mínimos trabalhistas não resulte em uma forma

de protecionismo – fator importante na discussão do tema –, ou seja, essa medida deveria vir acompanhada do reforço da qualificação profissional, caso contrário, será apenas mais uma forma de exclusão social. O que os governos apresentam é uma preocupação a respeito do controle nacional da inflação, mas não do emprego.59

Na preocupação com a cidadania, logo, com a democracia, o autor Leonardo Avritzer (2002) aponta para a necessidade de se estabelecer uma categoria de cidadania abstrata social transnacional, capaz de assegurar, no plano internacional, direitos sociais. O autor ressalta a importância de se assegurarem condições mínimas de trabalho para que as mercadorias possam circular livremente no comércio internacional: “No caso dos direitos sociais globais trata-se de coibir, no processo de extensão do mercado, a re-mercantilização do trabalho, obrigando o mercado a aceitar um nível internacional de regulamentação das condições de trabalho para que as mercadorias possam circular” (AVRITZER, 2002, p. 43).

Tanto Antunes quanto Santos e Avritzer destacam a importância de se estabelecerem padrões mínimos trabalhistas, visando à proteção dos direitos fundamentais e sociais da parcela da população responsável pela produção de bens, mas que não dispõe de um regime internacional que a proteja, ao contrário, por exemplo, do mercado de bens, que possui ordenamento próprio. Entretanto, é necessário ressaltar que nenhum deles menciona sanções comerciais como “moeda de troca” entre os países integrantes da OMC, apenas alertando para a importância de padrões mínimos trabalhistas.

Eis que as fronteiras nacionais políticas desaparecem quando se analisa a economia globalizada; a economia acaba por subjugar a sociedade às leis da acumulação capitalista. A desregulamentação econômica prejudica a soberania política e vice-versa. Em resumo, o poder econômico tende a valer mais do que o poder das políticas públicas.

59 Ainda pondera o autor “Esta última iniciativa [desnacionalização da cidadania], destinada a ensejar uma partilha

mais eqüitativa do trabalho a nível mundial, visa criar fluxos entre as zonas selvagens e as zonas civilizadas que existem, não só ao nível das sociedades nacionais, como também ao nível do sistema mundial. Neste momento, e ao contrário do que propaga o nacionalismo xenófobo dos países centrais, esses fluxos ocorrem predominantemente entre os países periféricos e constituem um encargo insuportável para estes. Para minorar este encargo, há que promover fluxos da periferia para o centro como exigência cosmopolita de justiça social.” (SANTOS, 2006, p. 378)