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3 CAPÍTULO 02 PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA E COMUNICAÇÃO PÚBLICA

3.2 Democracia, participação e políticas públicas

A democracia tornou-se a forma predominante de organização da dominação política na modernidade ocidental, passando por mudanças no seu significado e em suas práticas.

Para Avritzer (2002), dentre as mudanças destacam-se um forte estreitamento da ideia de soberania, consenso sobre formas não-participativas de administração, e rejeição de desenhos participativos pelo seu impacto não institucional. Esses novos consensos, segundo o autor, estão ligados aos episódios do período entre guerras e na consolidação da democracia no continente europeu ao final do que chama de segunda onda de democratização (1943- 1962).

Em linhas gerais, a concepção mais ampla de soberania de Rousseau acabou não sendo apropriada pela prática democrática no interior da modernidade em função das complexas formas de administração estatal com a consolidação das burocracias especializadas nos moldes weberianos e a emergência de uma democracia de massas – exigindo um governo de elites aptas a garantir a racionalidade da política diante da sociedade massiva.

Essa última indicação leva ao chamado elitismo democrático5, que trabalha com a ideia de que povo participa do sistema democrático como produtor de governos escolhidos por meio de processos eleitorais entre as elites qualificadas para governar. O povo atua como árbitro das disputas entre as elites com habilidades para coordenar a complexidade desse Estado moderno.

Essa é a corrente classificada por Santos e Avritzer (2002) como concepção hegemônica da democracia na segunda metade do século XX, com forte recorte para um argumento procedimentalista, evitando à passagem de uma discussão ampla das regras do jogo democrático à identificação da democracia com as regras do processo eleitoral.

Somado a isso, um terceiro elemento que compõe a concepção hegemônica de democracia para os autores é percepção de que a representatividade constitui a única solução possível nas democracias de grande escala para o problema da autorização (SANTOS e AVRITZER, 2002, p.48). Essa percepção resultou na centralidade dos sistemas eleitorais para representação do eleitorado no exercício de autorização de poder por meio do voto.

Em uma perspectiva histórica, a crise do Estado de bem estar social e cortes nas políticas sociais a partir da década de 1980 na Europa, as crises identificadas nos países centrais em que o modelo de democracia hegemônica havia se consolidado, o fim da Guerra

5 SCHUMPETER (1984)

Fria e a consolidação dos processos de globalização econômica criam um cenário para rediscutir os limites da democracia na sua capacidade redistributiva em um debate estrutural que apontou para o problema da forma democrática e suas variações (SANTOS, 2002; SANTOS e AVRITZER, 2002).

Na América Latina particularmente, além das limitações do histórico modelo democrático pautado no patrimonialismo e autoritarismo excludentes na representação das diversidades presentes na região, o debate sobre a democracia ganha sentido pelas limitações de duas características do elitismo democrático que acabaram não correspondendo na dinâmica política da região. A primeira, a competição entre as elites que, ao invés de condutoras com expertise para governar por saberem defender e representar os valores democráticos, acabaram disputando entre si abrindo mão muitas vezes desses próprios valores para manter o controle do Estado. A segunda característica refere-se ao papel democrático das mobilizações de massas, que na tradição do elitismo democrático representavam ameaça à ordem institucional. Na região, redes de organizações e movimentos sociais assumiram esse papel em maior ou menor proporção e contribuindo com o aprofundamento da democracia segundo Avritzer (2002).

Nesse conjunto de questionamentos sobre a forma hegemônica de um regime democrático abre-se o debate sobre formas não hegemônicas de democracia em um entendimento de que a democracia não se reduz a uma questão de organização institucional de dinâmica procedimental.

O debate democrático nesse sentido extrapola a arquitetura institucional preocupada com os meios para resolver a demanda pela ocupação representativa do poder político. A democracia é uma gramática de organização da sociedade e da relação entre o Estado e a sociedade (SANTOS, 2002).

Por essa via, mudanças societárias acompanham e são acompanhadas por mudanças institucionais. Não há uma lei natural que organiza essa prática, mas mudanças históricas e culturais. Essa compreensão exige uma releitura na relação entre o procedimentalismo e suas dimensões societárias.

A concepção deliberativa de Habermas (2003) auxilia ao apontar para essa possibilidade na sugestão de um princípio importante para o debate sobre democracia participativa, o da deliberação ampla. Os procedimentos democráticos têm vínculo com pluralidade de vida das pessoas que, por isso, devem participar das discussões e das decisões

políticas, baseados na liberdade e igualdade, na apresentação de ideias e argumentação racionais.

A atuação dos movimentos sociais pela tematização de questões surgidas com a emergência de novos atores no contexto público também contribuem para a ampliação do político que extrapola as vias institucionais clássicas para assumir dimensão cotidiana, uma prática que é permeável nas relações sociais.

Essa vertente especificamente foi central na redemocratização da América Latina e na constituição das novas institucionalidades e práticas democráticas que culturalmente se esforçam para ressignificar modelos e arranjos democráticos excludentes e autoritários (DAGNINO, 2002; 2004), mais participativas e descentralizadas, plurais e mais representativas de grupos e sujeitos até então fora do cenário político.

Esses pressupostos fortalecem, portanto, uma concepção democrática participativa tratada em linhas gerais como um modelo que valoriza a participação direta nas decisões políticas, rompendo a dissociação entre Estado e Sociedade civil. A participação se amplia para além das instituições representativas, que por sua vez, precisam atender a perspectiva da vontade coletiva dos cidadãos. Essa referência conceitual é acompanhada, como veremos detalhadamente mais adiante, por mudanças institucionais em inovações distintas identificadas no Brasil e na América Latina (SERAFIM e MORONI, 2009).

Para Gomes (2008), o diagnóstico da designada crise da democracia liberal com os típicos movimentos que as acompanham, dentre elas a proposição de novas arquiteturas institucionais, gerou uma pluralidade de linhas de forças em teoria democrática (GOMES, 2008, p.13). Esse cenário gera um realinhamento no nível macroteórico e nos principais modelos – tradição liberal, tradição republicana e no recente modelo de democracia deliberativa.

É interessante notar, em uma primeira aproximação entre o debate sobre Democracia e Comunicação – tópico a ser aprofundado mais adiante – que a perspectiva impressa por cada modelo democrático organiza a política de comunicação e no caso específico, a comunicação pública do Estado.

Tomando como base Gomes (2008), é possível notar que a abordagem da democracia de tradição liberal preocupada com as liberdades individuais se preocupa com um sistema institucional que assegura tais direitos civis e políticos, protegendo os cidadãos privados, garantia de acesso igualitário a justiça e proteção contra eventuais investidas do Estado. A

liberdade de expressão, pluralidade de opiniões, a função de vigilância, a demanda por transparência, prestação de contas são funções atribuídas aos meios de comunicação nesse contexto.

A tradição republicana tem preocupação com a cidadania, representada pela inscrição dos sujeitos na sua comunidade política. O Estado tratado como coisa pública, ao contrário da tradição liberal, precisa ser controlado pela sociedade civil e a ao invés da intervenção negativa em relação aos indivíduos, o republicanismo busca igualdade de oportunidade para participação dos sujeitos políticos nas questões de interesse coletivo relacionadas às comunidades locais, estimulando um envolvimento nos negócios do Estado. Os meios de comunicação nesse contexto são responsáveis pela formação do capital social (MATOS, 2009b) – trabalhando para a articulação e mobilização de redes que permitam a construção de confiança e reciprocidade e cooperação na busca por um envolvimento cívico e de participação. Os meios são impedidos de desempenhar esse papel em situações onde não disponibilizam informações políticas para facilitar a participação e não realizam cobertura política qualificada causando falta de engajamento.

O deliberacionismo, para Gomes (2008), é o caçula da tríade dos principais das macroteorias ou modelos de democracia, e assumiu espaço nos anos 1990 ficando entre os modelos liberal e republicano, que se contrapunham no contexto da teoria democrática nos vinte anos precedentes.

Para o autor, os primeiros anos do século XXI esse modelo deliberacionista, que chama de democracia discursiva, é a principal novidade no contexto das teorias da democracia, sendo submetida a críticas, revisões e suplementações. Apesar das concepções que sustentam essa perspectiva deliberacionista6, o autor pontua que, essencialmente, esse modelo de democracia discursiva coloca que o centro de atenção democrática é uma arena discursiva que funciona como esfera intermediária entre a sociedade civil e o Estado, formando uma esfera pública política.

É nessa esfera que são discutidas em situações de igualdade para que os cidadãos argumentem racional e publicamente para a construção das decisões relativas a questões de

6 Gomes (2008) aponta uma tendência da democracia deliberativa apoiada no macromodelo liberal (John Rawls,

Amy Gutmann, Dennis Thompson); outra tendência (Habermas, Bohman, Dryzek, Benhabib) toma como base em diferentes níveis de distanciamento e engajamento teórico, na plataforma da democracia radical indo buscar em Marx o que os outros encontram em Locke e seus seguidores (GOMES, 2008, p.17). Nesse último grupo, enquanto a escola de Habermas tem um ponto de partido republicano, assimilando um conjunto de preocupações liberais ao seu modelo, outros (Dryzek, Fraser) têm intenções polêmicas em relação à democracia liberal.

interesse público em um contexto de não coerção, mas negociação permanente, uma vez que decisões políticas legítimas só são possíveis pelo debate esclarecido, racional e transparente.

Não vamos entrar aqui na questão sobre se o centro do sistema político dever ser ocupado diretamente pela esfera civil, como no ideal de democracia direta, ou se por representantes autorizados. Quem quer que decida, deve fazê-lo levando em consideração os fluxos de comunicação circulantes em arenas discursivas públicas, por meio das quais os problemas sociais são percebidos, formulados e discutidos, e questões sobre o estado da res publica são enunciados e examinados (GOMES, 2008, p. 17).

Os meios de comunicação nesse cenário seriam integrantes dessa esfera pública política na perspectiva de torná-la forte, extensa e solidamente atrelada à esfera civil por um lado, e com possibilidade de interferir no sistema político, garantindo que possa ser permeado pela vontade e opinião públicas, por outro. Isso por meio da promoção e contribuição com debate público qualificado, com a disponibilização de informações políticas relevantes.