• Nenhum resultado encontrado

1 DA DEMOCRACIA CLÁSSICA À DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

1.4 A democracia participativa

Pelo até agora exposto, o conceito de democracia como modelo político e os debates a seu respeito foram se transformando ao longo do tempo, caracterizando-se por um processo cujas discussões teóricas são de naturezas diversas.

E assim não foi diferente com a acepção do que se pretende expor sobre o que seja denominado de democracia representativa, pois as concepções de democracia, ora como mera forma, ora como direito substancial,76 são de fundamental importância para o entendimento de participação democrática, não sendo "[...] um método político, isto é, um certo tipo de arranjo institucional para se chegar a decisões políticas e administrativas".77

Quanto à democracia participativa, pode-se atribuir a Rousseau a formatação, por excelência, de sua teoria.78 Em sua obra O contrato Social, Rousseau (2010) traça as características da natureza de um sistema político, o qual entende ser o ideal, em que a participação democrática é o instrumento de maior relevância para o estabelecimento e a manutenção de uma democracia que queira realmente ser participativa.

Conforme Pateman (1992), correspondia o pensamento de Rousseau a uma teoria política que:

[...] apóia-se na participação individual de cada cidadão no processo político de tomada de decisões, e, em sua teoria, a participação é bem mais do que um complemento protetor de uma série de arranjos institucionais: ela segurando urna inter-relação contínua entre o funcionamento das instituições e as qualidades e atitudes psicológicas dos indivíduos que, interagem dentro delas.79

É esse realce, nesse aspecto da participação, e sua colocação no centro de seus pensamentos que constituem, em Rousseau, a contribuição qualificada dos teóricos da democracia participativa para a teoria democrática geral.

Porém, é fundamental para o entendimento das ideias de Rousseau, principalmente quanto à participação, conhecer aspectos do seu sistema político, com o intuito de evitar e até mesmo refutar conjecturas em contrário.

76 SANTOS, Boaventura de S.; AVRITZER, Leonardo. Introdução: para ampliar o cânone democrático. In: SANTOS, B. S. Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. p. 43.

77 SCHUMPETER, Joseph A. Capitalismo, socialismo e democracia. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961. p. 242.

78 PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 35.

Uma das premissas de seu sistema político seria uma igualdade econômica entre os membros da comunidade, fincada aquela em uma propriedade mínima.80 Essa igualdade, mesmo que não absoluta, garantida por aquela propriedade, asseguraria aos indivíduos uma “[...] independência em relação ao outro, pois a segurança e a independência que ela confere ao indivíduo constituem a base necessária sobre a qual repousam sua igualdade e sua independência política”.81

Tal independência, porém, não levava a um processo de isolamento dos indivíduos, pois propugnava Rousseau (2010) que a relação entre aqueles fosse de interdependência para preservar a igualdade e independência adquiridas. Assim, cada cidadão seria impotente para realização de algum objetivo sem a ajuda de outros ou da maioria, ou seja, haveria uma dependência por parte de cada indivíduo em relação à totalidade – esta seria vista como o soberano, sendo a participação independente o “[...] mecanismo pela qual essa interação é reforçada”.82

Compara-se tal igualdade em Rousseau à homogeneidade social de Heller, citado por Bercovici (2003), condição necessária à formação democrática da unidade política, dependo a sobrevivência da democracia de certo ajuste social, indo além de uma igualdade civil ou de uma igualdade política de caráter jurídico formal.83

É interessante destacar que a ideia de participação em Rousseau cria uma lógica que deve orientar a governabilidade dos homens, a qual foi criada por estes próprios, não permitindo que governos individuais se manifestem justamente pela pré-estabelecida independência, não sendo, portanto, viável que uma pessoa vote em assembleia por interesses contrários aos seus ou a de outros.

Rousseau (2010), enaltecendo a vontade geral, ao tratar da reciprocidade necessária no convívio e assunção de compromissos no corpo social, perguntava: “Por que é sempre reta a vontade geral e por que desejam a felicidade de cada um, se não pelo fato de

80 Ideia que se conclui a partir das afirmações de Carole Pateman (1992, p. 36), diante da leitura do seguinte parágrafo da obra de Rousseau (2010, p. 29): “Pode também acontecer que os homens comecem a unir-se antes de nada possuírem, e que, apropriando-se em seguida de um terreno suficiente para todos, o desfrutem em comum ou o dividam entre si, seja em iguais porções, seja segundo as proporções estabelecidas pela soberania. De qualquer modo que se faça tal aquisição, o direito de cada particular sobre sua parte do solo está sempre subordinado ao direito da comunidade sobre o todo, sem o que não haveria solidez no laço social nem força real no exercício da soberania”.

81 PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 36.

82 Ibid., loc. cit.

83 BERCOVICI, Gilberto. Entre o estado total e o estado social: atualidade do debate sobre direito, estado e economia na República de Weimar. 2003. Tese (Livre Docência em Direito Econômico) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/dispon iveis/livredocencia/2/tde-22092009-150501/>. Acesso em: 26 fev. 2012.

não haver quem não se aproprie do termo cada um e não pense em si mesmo ao votar por todos?”84

A resposta ele mesmo dava e levava em grande apreço a participação, pois era inadmissível a ideia de se trabalhar para outrem se não trabalhasse também para si. Ficava afastada em Rousseau a possibilidade de privilegiar o interesse de grupos, pois o interesse manifestado através do exercício da participação prejudicaria a vontade resultante da manifestação de tais grupos.

Porém, faz a ressalva de que, se houvesse um demasiado número de associações, não desiguais entre si, poderia ser esclarecida a vontade geral, o que não levaria o povo a um equívoco. Um processo de participação pensado para a sociedade como um todo poderia também ser usado no seio das associações para definir a estrutura interna do poder.

Com isso, ou seja, com um número elevado de associações, deve a ideia de participação individual ser reproduzida com os grupos, não podendo nenhum destes vencer ou se beneficiar em detrimento de outro, pois:

[...] quando uma dessas associações se apresenta tão grande a ponto de sobrepujar todas as outras, não mais tereis por resultado uma soma de pequenas diferenças, porém uma diferença única; deixa de haver então a vontade geral, e a opinião vencedora é só uma opinião particular.85

Em Pateman (1992), encontram-se dois pontos importantes para este estudo relativos ao sistema participativo de Rousseau: o primeiro é que a participação acontece na tomada de decisões; o segundo, que a constitui uma forma de proteção dos interesses privados e de assegurar um bom governo.86

Quanto ao segundo ponto, nota-se que Rousseau (2010) desenvolve sua teoria visando certa proteção da propriedade privada, porém deve o atuar político do cidadão ser responsável, considerando que existem interesses bem mais abrangentes do que os seus considerados individualmente.

Já quanto ao primeiro ponto, este é fundamental para a esta exposição, porque justamente se quer atribuir um importante papel ao processo que é o de fomentador de motivos, para que a decisão a ser tomada considere tais motivos, mesmo os afastando, embora os analisando no momento da emissão do ato que põe fim àquele procedimento qualificado.

84 ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do contrato social. 2. ed. São Paulo: CL Edijur, 2010. p. 36. 85 Ibid., p. 34.

86 PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 38.

Interessante é a asserção de Pateman (1992) de que Rousseau vislumbrava um caráter educativo da participação, pois o indivíduo é levado a deliberar de acordo com o seu senso de justiça, porém não desconsiderando a possibilidade de demandas não equitativas, aduzindo à participação na tomada de decisões um ensinamento que possibilitaria ao indivíduo aprender a ser um cidadão tanto público quanto privado.87

A teoria participativa de Rousseau (2010) leva também a um grande vínculo entre participação e liberdade, já que, a partir da aquisição do estado civil e do exercício do ato de participar das decisões públicas, é levado o indivíduo a uma plena liberdade, inclusive moral: “[...] a única que torna o homem verdadeiramente senhor de si mesmo, posto que o impulso só do apetite constitui a escravidão, e a obediência à lei a si mesmo prescrita é a liberdade”.88

Embora Rousseau (2010) entenda que essa liberdade seja forçada, tal noção é fundamental também como elemento de estabilidade social, pois tanto “[...] a sensação de liberdade do indivíduo quanto sua liberdade efetiva aumentam por sua participação na tomada de decisões, porque dá a ele um grau bem real de controle do curso da sua vida”,89 permitindo, também, um controle sobre o meio em que vive.

Pode-se concluir assim que a teoria da participação em Rousseau (2010), a partir da constatação de ela ser também educativa, leva a uma inter-relação entre as atitudes psicológicas dos indivíduos e a estrutura de autoridade das instituições, especialmente pelo fato de que a prática contínua do ato participativo, de forma justa e solidária, leva à estabilidade de toda sociedade.

O caráter educativo da teoria participativa de Rousseau (2010) indica que a participação leva o indivíduo a se desenvolver, transformando-o em cidadão na sua acepção mais ampla, como pessoa que se desenvolve e participa da vida de sua sociedade de forma equilibrada no convívio com outras pessoas.

Embora Rousseau (2010) entendesse que o modelo de democracia direta só seria possível em determinados contextos históricos, em Estados bastante pequenos, não fica afastada nele a ideia de que só existiria realmente democracia se houvesse liberdade na participação direta na formação da vontade pública, inclusive das leis.

Mas tal ideia de participação não seria exclusiva da democracia, pois a soberania consistiria no exercício da vontade geral, do interesse comum. Este é o entendimento de Iris Jordão Lessa (2010) sobre o modelo participativo de Rousseau, ao fazer a seguinte afirmação:

87 PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. p. 39.

88 ROUSSEAU, Jean-Jaques. Do contrato social. 2. ed. São Paulo: CL Edijur, 2010, p. 26. 89 PATEMAN, 1992, p. 40.

Contudo, no pensamento do autor, o exercício da soberania pelo povo, uma das bases do contrato social, deve prevalecer em qualquer forma de governo, ou organização do corpo político que venha se adotar, independentemente da forma de governo estabelecida. Para o mesmo, a soberania é o exercício da vontade geral, ou seja, o interesse comum.90

Tal modelo político não se firmou, conforme Santos e Avritzer (2002), por conta da “[...] emergência de formas complexas de administração estatal que levaram à consolidação de burocracias especializadas na maior parte das arenas geridas pelo Estado moderno”.91

Porém, não podem ser desconsiderados os aspectos da teoria participativa de Rousseau (2010), principalmente seu caráter educativo a partir da participação na tomada de decisões e a ênfase na liberdade do indivíduo, o qual, com sua pratica participativa, leva estabilidade às instituições criadas, integrando o indivíduo ao sistema político a partir de sua participação nas tomadas de decisões.