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CAPÍTULO 2 Candidatos cristãos-novos rejeitados no Santo Ofício

2.5 Demora, angústia e descrédito

Salvo os casos em que os tesoureiros das inquisições comunicavam aos pretendentes para a devolução do depósito feito por eles em razão da não realização das diligências, o Santo Ofício, via de regra, ao negar admissão a um candidato infamado – fosse interrompendo os trâmites do processo de habilitação ou emitindo despachos de escusa – não costumava informar aos pretendentes malsucedidos nada a respeito do óbice de suas candidaturas. Muitas vezes tal circunstância gerava imensa tensão entre os postulantes e aqueles com quem partilhavam a vida comunitária. Afinal, as investigações, ainda que secretas, mobilizavam depoentes que conheciam os habilitandos e opinavam sobre eles, gerando expectativa pelo desfecho do processo de habilitação na comunidade onde viviam.

Ilustra bem esta circunstância o caso do padre João Lopes Batista, arcediago da Sé do Porto que, diante da falta de efeito de sua petição, escrevera novamente para o Santo Ofício clamando pela provisão no posto de comissário para recuperar o crédito, “pois seus inimigos vendo a exclusão que ele suplicante padece, atribuem a causas que são grande prejuízo ao crédito e fama”. Como se nota, a demora dos resultados era, para a opinião pública, sinal de dúvidas e falta de clareza nas provanças, prenúncios de uma iminente rejeição do candidato, servindo como munição para seus desafetos, que viam aí a prova de seu deslustre. Episódios em que aspirantes classificados publicamente como judeus escreviam aos Estaus reclamando a demora e relatando os agravos resultantes dela recheariam a longa lista de candidaturas arruinadas.

Félix Feio de Azevedo, por exemplo, teve seu processo de habilitação abortado por ser reputado como descendente de uma cristã-nova penitenciada pela Inquisição por culpas de judaísmo, e escrevera desgostoso ao Conselho Geral em 1724 para queixar-se da espera de muitos anos para ser provido no posto. O candidato, aflito por não ter notícias sobre seu pedido de habilitação, alegara à Mesa que “na demora perece o crédito do suplicante e sua família, pois é presunção geral naquelas partes da sua oposição”108. Ficou desatendido.

Já Luís Borges de Castro era fidalgo cavaleiro da casa de Sua Majestade109 e escrevera para o Conselho Geral em 1735 reclamando que, tendo ele

o ardente desejo de servir esta santa casa na ocupação de familiar, fez petição a Vossa Eminência haverá cinco anos e deferindo-se lhe até o presente não tem resultado nada, talvez por falta de aplicação, e como desta demora resulta irrecuperável prejuízo do crédito do suplicante por ser uma pessoa de notória distinção por seus pais e avós110.

Mal sabia o fidalgo que a corrosão de sua honra acontecia em virtude de lhe imputarem fama de cristão-novo. Se nas diligências realizadas em Santarém, terra de seu pai, não houve qualquer notícia que prejudicasse suas pretensões, viria de Santa Maria de Adoufe, terra de sua mãe, a enxovalhante informação que paralisara os trâmites investigativos de seu processo. No parecer aos inquisidores o agente investigador informou:

Luís Borges de Castro é filho e neto de quem a comissão diz, e para eu dar esta informação não me necessitava informar-me além de que me entendo e é público; nesta e em mais partes o habilitando é infamado de cristão-novo por ser da família dos Marrones, tanto assim que Cipriano Machado, avô materno do habilitando, se meteu frade capucho e, ao depois de ter dez ou onze anos de hábito, o lançara[m] fora, e a terceira ou quarta avó chamava Anna Dias, e uns soldados a virão em Baiona de França em um painel retratada, e no painel umas letras que acabavam que padeceu martírio no tempo do tirano D. Veríssimo de Alencastro111, e como me dizem que a este

lato tribunal se tem já mandado árvores e geração desta família delas pode constar esta verdade112.

Nas margens deste parecer dado pelo comissário abade Manuel de Azevedo Dias, consta a anotação que, feita talvez pelos inquisidores que avaliaram as provanças, resumia as informações acerca da antepassada do candidato: “morreu queimada”. Ainda que no final de seu parecer o comissário informante tenha revisto a informação que dera antes, alegando que o candidato não era da tal família dos Marrones, terminaria aí o processo de habilitação de Luís Borges de Castro. No ano seguinte, por “padece[r] o crédito do suplicante irrecuperável

109 Luís Borges de Castro recebeu alvará de fidalgo no ano de 1717, com 1$600 por mês e um alqueire de cevada por dia. ANTT, Registo Geral de Mercês, Mercês de D. João V, liv. 9, f.203v.

110 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 3667.

111 D. Veríssimo de Lencastre – ou Alencastro – foi deputado do Conselho Geral, sumilher da cortina de D. Pedro I e inquisidor-geral. Tomou posse no cargo máximo do Conselho Geral em 9 de abril de 1677. Seria ao longo de sua gestão que o Santo Ofício entraria em sérios conflitos com Roma, justamente por conduzir a Inquisição com base em procedimentos considerados abusivos pelo papado. Foi neste contexto que o inquisidor- geral e os inquisidores das mesas foram suspensos pelo papa, por exemplo. Ver: MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA, José Pedro. Op. Cit. pp. 206, 207, et passin. O adjetivo “tirano” usado pelo comissário talvez indique que tenha sido esta a imagem que ficou de D. Veríssimo, por extrapolar o que se entendia como direito positivo e direito natural.

prejuízo”, escreveria ele mais uma vez ao Conselho Geral clamando desconsolado pela medalha de familiar e rogando pela intervenção do inquisidor-geral, pois “Vossa Eminência, como Príncipe e Católico, deve acudir”. O socorro não veio e o processo de habilitação de Borges de Castro não teve qualquer outro expediente, sendo dado por encerrado.

João Dias, mercador no Corpo Santo, em Lisboa, esperava ser familiar do Santo Ofício daquela Inquisição desde que fez petição em 1684, mas o fato de ser “infamado continuamente de ter raça de cristão-novo” jogou por terra sua pretensão. Narrando o drama familiar que a demora do provimento implicava, apelaria ao tribunal expondo

[...] a grande aflição que padece em se lhe dilatar o despacho de uma petição que tem feito ao tribunal do Santo Ofício para ser familiar dele, porquanto da dilação se segue confirmar-se o labéu que algumas pessoas por ódio inconstante lhe opõem e também um grande perigo de lhe lançarem fora uma neta que tem no mosteiro de Santa Anna da dita cidade para lhe dar o estado de religiosa dele por estar findo o tempo que lhe dera para apurar a sua limpeza113.

A pressa do mercador de alcançar a habilitação na Inquisição e provar a limpeza de sangue da família para salvar a vida conventual de sua sobrinha caiu por terra. Terminou rejeitado por despacho dos inquisidores no mesmo ano.

Caso análogo foi ainda o do suplicante à familiar Francisco Martins, morador nos arrabaldes de Guimarães, que em notório desespero enviaria nada menos que sete petições à Mesa do Conselho Geral entre os anos de 1718 e 1729. A nota de cristão-novo advinda de sua avó materna, que já lhe dificultava conseguir um bom casamento e que impedira um parente seu de alcançar ordens sacras, seria agora razão para seu óbice na carreira inquisitorial. Em 1721, em uma de suas súplicas ao inquisidor-geral, exporia o desastre que se anunciava:

[...] como até o presente não teve a felicidade de ser despachada a sua petição para o dito efeito de ser familiar, [...] se acha infamado no lugar que reside e juntamente a sua geração sendo sempre tida e havida por limpa e pura de mácula que inabilite para dita ocupação, e para o temor futuro lhe será ainda mais perniciosa a fama e rumor não sendo despachada.114

Casos como estes, em que os candidatos impedidos peticionavam repetidamente a ocupação almejada, implorando por urgência no provimento e expondo os danos sociais gerados em virtude da tardança de suas ansiadas nomeações, indicam o peso da reconhecida capacidade classificatória da Inquisição e o papel que o prestigioso lastro das habilitações

113 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 2496.

cumpria nos conflitos locais de poder. Sua busca era claramente motivada pela expectativa de mitigar tais embates e celeumas. Além disso, dão bem a medida do que representava a candidatura a um cargo do tribunal: chance de redenção, mas um grande risco à reputação, caso o processo de habilitação não corresse de forma breve e sem maiores instabilidades. Como se viu, o alargamento do tempo previsto para a aprovação e o repetir das investigações tendiam a gerar suspeitas de impedimento na comunidade onde o pleiteante vivia, alimentando rixas e contendas. Assim, esta ocorrência responde a uma pergunta que esta pesquisa se propôs elucidar: a rejeição no Santo Ofício tornava-se fama pública? Muitas vezes sim, e iria além: em casos em que os candidatos já eram infamados e buscavam na habilitação um instrumento para defender sua alegada boa estirpe e calar seus inimigos, a demora prestava-se como confirmação das maledicências proferidas pela voz pública. De tal modo, a rejeição na carreira inquisitorial, por vezes, consagrou infâmias e endossou estigmas.

2.6 Réplicas e explicações: as principais estratégias e contraditas dos reprovados para