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A indignação dos agentes inquisitoriais frente à larga fama de alguns candidatos

CAPÍTULO 2 Candidatos cristãos-novos rejeitados no Santo Ofício

2.2 A indignação dos agentes inquisitoriais frente à larga fama de alguns candidatos

A exigência regimental do Santo Ofício de ter de seus agentes sempre as mais claras e públicas provas de limpeza de sangue naturalmente suscitava a expectativa de que os postulantes a servi-lo atendessem plenamente tais premissas. Evaldo Cabral de Mello,

58 Trabalhos como os de Daniela Calainho, James Wadsworth, Aldair Carlos Rodrigues, Lucas Monteiro e o meu próprio buscaram avaliar o valor da familiatura e o perfil social dos familiares do Santo Ofício nos mais diversos recortes espaciais da América portuguesa. Ver: CALAINHO, Daniela. Agentes da Fé: Familiares da Inquisição Portuguesa no Brasil colonial. Bauru: Edusc ed., 2006. WADSWORTH. James E. Agents of Ortodoxy: Inquisitorial and prestige in colonial Pernambuco, Brazil. New York and Lanham, Maryland: Rowman and Littlefield Publishers, 2008. RODRIGUES, Aldair Carlos. Limpos de Sangue: familiares do Santo Ofício, Inquisição e sociedade em Minas Colonial. 1ª. ed. São Paulo: Alameda, 2011. MONTEIRO, Lucas M. A

Inquisição Não Está Aqui? A presença do tribunal do Santo Ofício no extremo sul da América portuguesa, 1680-

1821. Jundiaí: Paco Editorial, 2015. LOPES, L. F. R. Vigilância, Distinção e Honra: Inquisição e dinâmica dos poderes locais nos sertões das Minas setecentistas. Curitiba: Ed. Prismas, 2014. Para Portugal, dentre os trabalhos mais recentes, vale destacar a dissertação de mestrado de Bruno Lopes publicada em livro em 2013, na qual o autor analisa a atuação da Inquisição em Arraiolos, na região do Alentejo. LOPES, Bruno. A Inquisição

em Terra de Cristãos-Novos. Arraiolos 1570-1773. Lisboa: Apenas Livros, 2013.

59 MARCOCCI, Giuseppe; PAIVA. José Pedro. Op. Cit. p. 245. Ver também: RODRIGUES, Aldair C. Igreja e

inclusive, argumentaria que a candidatura aos cargos da Inquisição, como estratégia para promover a depuração da honra, seria esforço empreendido por aquelas famílias que se acreditavam injustamente infamadas, “pois as que estavam a par das suas verdadeiras origens não se atreveriam a tanto”60. As páginas seguintes mostrarão que, muitas vezes, a condição

dos que escreviam ao palácio dos Estaus peticionando insígnias inquisitoriais contrariaram esta assertiva. Algumas candidaturas geraram fúria e constrangimento aos agentes responsáveis pelos trâmites processuais, que, por vezes, deixaram transparecer em seus registros o escândalo causado por aquilo que consideravam insolência de alguns candidatos notoriamente desqualificados para tal pretensão. Haveria muita gente mau reputada que desejosa de ser representante do tribunal gerou indignação nos membros da instituição. Dentre estes casos, a chegada de petições de cristãos-novos de larga e notória fama pública foi a circunstância mais corrente, o que manifesta o ambiente beligerante e conflituoso marcado pela fissura social que os estatutos de limpeza de sangue imprimiam, e expressa bem o papel desempenhado pelas habilitações inquisitoriais nos meandros da classificação social.

Em 1732, Antônio Luís de Abreu, que se declarara escrivão dos cavaleiros das três ordens militares, residente na corte, enviaria petição à Inquisição de Lisboa almejando a nomeação no posto de familiar. Seu processo de habilitação teve então início, mas seria encerrado seis meses depois, diante de tamanha fama desfavorável encontrada nas provanças. O comissário responsável pelas investigações em São Martinho de Gândara, no Minho, terra natal do peticionante, relatou à Mesa do tribunal lisboeta que, ao buscar informação sobre o passado geracional do mesmo com um reverendo da localidade, este logo lhe disse que até “as crianças pequenas da sobredita freguesia me anunciariam a grande fama que sempre tiveram de judias não só a avó materna como paterna do pretendente, quanto mais todos os velhos [...]”61. Depois de interrogar diversas testemunhas sobre a origem familiar do candidato, o

investigador, desconcertado com o que ouvira nos depoimentos, escreveria à Mesa em seu parecer: “não buli nem continuei mais com o desfecho; por ver me ardia mal”. Os trâmites investigativos foram encerrados e terminaram aí as ambições de Antônio Luís de Abreu de ingressar na carreira inquisitorial.

A candidatura frustrada de Antônio Ribeiro de Anta, natural e morador na freguesia de São Clemente, termo da vila de Basto, norte de Portugal, teve enredo bastante semelhante: o comissário investigador informou à Mesa da Inquisição de Coimbra que achou ser o

60 MELLO, Evaldo Cabral de. O Nome e o sangue: uma parábola familiar no Pernambuco colonial. 2ª edição. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. p. 129.

peticionante “publicamente infamado de ser cristão-novo pela parte de seu pai [...]”, e que “é fama tão vulgar que [mesmo] tendo fazendas [...], não há quem queira casar com ele. E por ser [a fama] tão notória, não entrei a averiguar a raiz dela porque me parece incapaz da honra que pretende”62. A interrupção das investigações inquisitoriais em virtude da larga nota

pública fundamentaria o parecer negativo dos inquisidores de Coimbra às pretensões do candidato emitido em 1734.

Já o processo de habilitação ao posto de comissário do padre João Gonçalves da Costa seria abortado e ficaria sem despacho depois que o agente nomeado para investigar a qualidade de seu sangue no Vale da Porca, bispado de Miranda, escrevera aos inquisidores da Mesa da Inquisição coimbrã, em março de 1745, recusando-se a fazer a diligência. Em um misto de constrangimento pelo risco de se indispor com o investigado, com quem partilhava laços pessoais, e de honestidade corporativa para com a instituição que servia, alegaria aos inquisidores que “é tão vulgar e constante a fama que padece de parte de cristão-novo de seu avô paterno o pretendente João Gonçalves Costa, e eu tanto que seu amigo, que tomara de ver a vossas senhorias quisessem eleger outro comissário para averiguação dela”63.

Antônio Dias Forçado, natural e morador na vila de Montalvão, comarca e bispado da cidade de Portalegre, se lançou pretendente a familiar do Santo Ofício no ano de 1698. A candidatura do postulante gerou incredulidade no comissário responsável pelas diligências naquela vila, como o mesmo mostra em seu parecer para os inquisidores da Mesa do tribunal de Évora:

Desvanecimento me parece possuir este em ter semelhante atrevimento, porque não há muitos anos que um irmão do sobredito intentou semelhante e até presente não saiu com nada, e foi notório que viera a esta vila um comissário a fazer informações secretas pelo sobredito Manuel Antunes Furtado, seu irmão, e dizerem a muitas pessoas porque além de não concorrerem os requisitos necessários no tocante aos procedimentos do sobredito por se carregar de vinho e pagar muito mal a quem o serve, e juntamente ser notado de cristão-novo geralmente em toda esta comarca [...].64

O agente designado para realizar as investigações no alto Alentejo exasperou-se com o que julgou ser atrevimento de um aspirante a familiar com públicos entraves para se candidatar. Além de ter fama de ser cristão-novo, Antônio Dias Forçado era ainda casado com Maria Rodrigues, que carregava a mesma nota de impureza por parte de seu avô. Diante

62 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 700. 63 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 2607. 64 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 8.

destes impeditivos, teve seu pedido de habilitação sumariamente escusado no Conselho Geral em fevereiro de 1699.

A indignação e o mal-estar que tais candidaturas suscitaram permitem dimensionar algumas facetas do embate social que transparece na avaliação das petições: indicam, primeiramente, a força dos ímpetos hierárquicos e normativos em que esta sociedade estava imersa. A ânsia por reafirmar e defender as regras da estratificação social, assentada em princípios de honra e no medo de uma sociedade impura65, fomentariam violências diversas

contra os párias que ousavam ambicionar alguma acomodação nas camadas privilegiadas. Por outro lado, as candidaturas dos reputados como maculados e indignos indicam, por si só, o inconformismo frente ao estigma que carregavam, bem como a avidez pela mudança de estatuto social, estimuladora de um claro anseio de reescrever o passado geracional e assegurar a auto conservação neste universo belicoso.

Assim como as candidaturas de homens notoriamente infamados por ter ascendência judia, chegariam ao Conselho Geral ainda muitas petições de pessoas com o passado familiar estigmatizado pela própria ação repressora do tribunal.

2.3 Inequívoca escusa: candidatos com antepassados penitenciados por culpa de