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O exame dos fundamentos: como o mulatismo era tratado pelo Santo Ofício

CAPÍTULO 3 Cor, sangue e procedimento: os rejeitados no Santo Ofício em razão do

3.2 O exame dos fundamentos: como o mulatismo era tratado pelo Santo Ofício

Nesta parte do estudo, a abordagem qualitativa será privilegiada, já que aqui o interesse maior está em compreender os critérios e fundamentos debatidos e empreendidos pelas mesas inquisitoriais para consumar a escusa – ou não – de um candidato notado por sangue africano, assim como em reconstituir o perfil social destes candidatos na ocasião da rejeição. A pergunta central que este capítulo buscará responder é: com base em quais critérios o tribunal da Inquisição fundamentou a negação da habilitação a candidatos alegadamente descendentes de africanos? Como já foi dito, a maneira que o Santo Ofício enfrentou a incidência de mulatismo mostrar-se-ia um tanto particularizada e, por vezes, inconstante. É o que buscarei expor nas páginas seguintes.

207 Idem. p. 702.

a) A experiência colonial e a incorporação tardia do mulatismo no rol dos “defeitos”odiosos

A nota de sangue negro ou mulato tornar-se-ia oficialmente execrável e indesejada em circunstâncias políticas bastante diferentes das que fomentaram a exclusão institucionalizada de pessoas com antepassados judeus ou mouros. Os estatutos de limpeza de sangue que surgiram em Castela no século XV e em Portugal no século XVI, marcadamente ligados aos ímpetos de promoção de uma desejada unidade católica e à crescente intolerância religiosa nos reinos ibéricos, não faziam qualquer tipo de referência à nota de sangue africano como óbice ao acesso a cargos e postos públicos. A situação mudaria de figura na segunda metade dos Seiscentos, com o avanço do processo de exploração dos territórios ultramarinos e com o crescimento vertiginoso do tráfico atlântico de escravizados. Segundo Larissa Viana, foi no século XVII que a mulatice se tornou estigma e objeto de legislação restritiva no reino e nas conquistas portuguesas e também em outras nações209. No caso lusitano, a lei promulgada em agosto de 1671, na regência de D. Pedro II, estabeleceria que “toda pessoa, antes de entrar em algum ofício, se lhe mandem fazer informações à parte onde foi natural [...] procurando se tem parte de cristão-novo, mouro ou mulato, se é de boa vidas e costumes e se é casado com mulher que tenha algum destes defeitos[...]”210. Segundo Viana, as políticas de segregação de

negros e mulatos também ocorreram nas áreas de colonização espanhola, inglesa e francesa da América escravista ao longo desta centúria, caracterizando assim o século XVII como marco do ingresso e reforço das leis referentes aos africanos e seus descendentes nas legislações das nações colonizadoras. De tal maneira, a autora argumenta que a incorporação do sangue mulato no rol dos “infectos” estava relacionada à intenção do poder central de regular as pretensões dos mestiços no que dizia respeito ao acesso às posições sociais mais prestigiadas nos contextos coloniais. Em suas palavras, “os cristãos-novos seguiam sendo o alvo preferencial da discriminação institucionalizada, mas a menção aos mulatos começava a expressar as tensões próprias das colônias no ultramar, onde alforria e mestiçagem suscitavam a criação de novos critérios discriminatórios”211. Assim, foi a experiência colonial que

estimulou o alargamento legislativo da exclusão em Portugal e em outras nações.

No regimento do Conselho Geral do Santo Ofício publicado em 1570, encontra-se a primeira referência à obrigatoriedade de os membros do órgão – isto é, o inquisidor geral e os

209 VIANA, Larissa. O idioma da mestiçagem. Campinas: Editora Unicamp, 2007. p. 50. 210 Idem. p. 61. Grifo meu.

deputados – terem sangue limpo, sendo este pré-requisito estendido a todos os outros agentes inquisitoriais oito anos depois. No entanto, nunca houve, em nenhum dos regimentos que regularam os procedimentos normativos da instituição, qualquer referência explícita sobre o impedimento aos notados de sangue africano. O regimento de 1640, que foi o mais longevo, vigorando até o ano de 1774, não trata da matéria em momento algum, dispondo unicamente sobre a incontornável necessidade de os ministros e oficiais inquisitoriais serem “cristãos- velhos, sem raça de mouro, judeus, ou gente novamente convertida a nossa Santa Fé, e sem fama em contrário”212. Apesar da ausência de clara condenação da ascendência mulata nos

regimentos, a prática procedimental do tribunal incorporaria esta preocupação, como se pode constatar pela presença frequente do termo mulato na lista dos impuros referenciados nos papéis das encomendas de diligências investigativas típicas dos processos de habilitação para agentes inquisitoriais213 – e isto pelo menos desde o último terço dos Seiscentos. Dessa forma, a política de exclusão frente à candidatura daqueles marcados pelo ascendência e descendência africana foi efetiva, e sua matéria seria largamente discutida entre os inquisidores das mesas dos tribunais do Santo Ofício em Portugal ao longo do tempo.

b) O desvanecimento no decorrer das renovações geracionais

Talvez a mais importante diferença no trato jurídico do mulatismo como nódoa condenável tenha sido o entendimento de que esta mancha poderia se dissipar no avançar do tempo e das renovações geracionais, ao contrário da pecha de sangue judeu ou mouro, que eram perpétuas. Para a averiguação da permanência ou da extinção da mácula em um indivíduo, estabeleceu-se um determinado grau de ancestralidade como baliza: se em seu passado genealógico, a ocorrência de sangue mulato recaísse dentro do 4° grau geracional – isto é, viesse de um antepassado colateralmente abaixo dos bisavós -, o habilitando era considerado portador da nódoa, e deveria ser impedido de ocupar postos inquisitoriais por carregar o estigma de pertencer à “raças infectas”, para usar o termo recorrente na documentação. Se fosse confirmado que a ascendência mulata estava fora do referido grau de consanguinidade, o defeito era considerado desvanecido e, no caso do Santo Ofício, os

212 Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado por mandato do ilustríssimo e reverendíssimo senhor Bispo Dom Francisco de Castro, Inquisidor-Geral do Conselho de Estado de Sua Majestade – 1640. Livro I, Título I, Parágrafo 2°. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Ano 157, n. 392. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1996. p. 693.

213 A exata expressão que aparece no texto das diligências inquisitoriais é: “[...] se foram sempre pessoas cristãs- velhas, limpas e de limpo sangue e geração, sem raça alguma de Judeu, Cristão-novo, Mouro, Mourisco, Negro,

trâmites do processo de habilitação poderiam avançar sem este impedimento. Na maior parte dos casos de candidatos rejeitados pelo Santo Ofício em virtude da ascendência mulata, a preocupação em constatar qual o exato grau de distância geracional foi constante, a exemplo do caso da filha ilegítima do senhor de engenho do Recife, relatado anteriormente. No entanto, o simples fato de a origem da mácula estar fora do 4° grau de ancestralidade estaria longe de significar caminho aberto para o provimento da habilitação. Como se verá, outras variáveis acerca deste estigma entrariam no equacionamento da questão.

c) A condenação moral do cativeiro

Outra singularidade fundamental da interpretação feita pela Inquisição a respeito da nota de mulatismo seriam as orientações de fundamento deontológico atinentes às apreciações destas candidaturas. O veto de aspirantes a agentes inquisitoriais tocados pela nota de sangue africano também seria assentado em percepções de cunho moral ou de costumes. Uma das mais importantes medidas deste tipo levadas à cabo pelo Santo Ofício foi averiguar se no passado familiar do postulante infamado por nota de mulatismo havia algum ascendente escravizado. Se fosse encontrada notícia de cativeiro no passado geracional do habilitando, a rejeição era iminente. Este seria um dos mais importantes critérios empreendidos pela instituição na avaliação de candidaturas, indo ao encontro do já referido esforço de regulação das pretensões dos mestiços, promovido pelo poder régio a partir de meados do século XVII. Tal princípio dimensiona como a condenação moral do trabalho servil foi preceito estruturante no discurso normativo da época, que entendia que a condição de escravo destruía a grandeza e dignidade do homem214 e consagrava o desprezo pelo trabalho manual e o “viver à lei da nobreza” como paradigmas norteadores da bem-aventurança social. Como destacou Ronald Raminelli, “no Antigo Regime não era incomum conceber a cor preta como sinônimo de cativeiro”215. À luz desta orientação, a confirmação da presença de cativeiro no histórico

familiar implicaria na exclusão argumentada como “falta de qualidade”, ao invés de defeito

214 CARNEIRO, Manuel Borges. Direito civil de Portugal. Contendo três livros, I das pessoas, II das cousas, III das obrigações e acções - por Manuel Borges Carneiro. Lisboa: Typ. Maria da Madre de Deus, 1858. 4 volumes. livro I. Apud: HESPANHA, António Manuel. Imbecillitas: as bem-aventuranças da inferioridade nas sociedades de Antigo Regime. São Paulo: Annablume, 2010.

sanguíneo, como têm demonstrado os estudos de Francis Dutra216. As instituições nobilitantes e ligadas ao poder central asseveravam e reproduziam esta premissa doutrinária.

O histórico de servidão no passado familiar seria infortúnio para o licenciado Domingos Gonçalves de Barros, morador em Lisboa. Em 1702, ele atuava como advogado na mais alta corte de justiça do império português, a Casa de Suplicação de Lisboa, e intentou servir ao Santo Ofício na função de familiar. Em sua petição informava ter na família muitos parentes religiosos e que tinham servido de guardas do Santo Ofício, mas não citava seus nomes. O fracasso de seu ingresso na carreira inquisitorial ficou iminente depois que as inquirições em Évora, seu local de nascimento, revelaram que sua avó, natural da mesma cidade, “[...] foi cativa, e dizem as testemunhas que seu avô a forrara para casar com ela, e outros dizem que a comprara na praça pública desta cidade”217. Em seu parecer sobre o

candidato e sua família, o agente investigador no Alentejo reiterou a seus superiores “serem mulatos por esta parte de todos os descendentes”, pois no tempo em que ele comissário estudara em Évora, morou na rua de frente onde residia a dita família, e já naquele tempo tinha ciência de tal fama. A marca de escravidão na família e a constante fama pública endossada pelo informante inquisitorial foram decisivos para os inquisidores da Mesa de Lisboa indeferirem o pedido de habilitação ao advogado.

Natural e morador no Funchal, na Ilha da Madeira, André Lopes e Abreu escreveu para o palácio dos Estaus no ano de 1703 peticionando a carta de familiar do Santo Ofício218. Não alcançou o cargo desejado em razão da fama relatada por alguns conhecidos de sua família, que davam conta de que o aspirante teria casta de mulato, advinda de sua terceira avó ou terceiro avô, que teria sido escravizado. O andamento do processo de habilitação do pleiteante foi abortado pela Inquisição ainda nesta etapa.

O mestre entalhador Domingos Martins Figueira, residente em Lisboa em 1697, acumulava óbices que lhe impediram alcançar a familiatura. Além de ser considerado vário, inconstante e de pouco asseio, teria ainda sangue mulato. Segundo as diligências realizadas, descobriu-se que o pleiteante “é mulato por via de sua mãe e avós maternos, e que se diria publicamente que Inês Dias, sua avó materna, fora cativa”219. A Mesa da Inquisição de Lisboa

julgou inadequada sua nomeação e sua petição foi escusada no despacho do Conselho Geral no mesmo ano.

216 DUTRA, Francis. “Ser mulato nos primórdios da modernidade portuguesa”. Tempo, Niterói, v. 30, p. 101- 114, 2011.

217 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 1335. 218 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 138. 219 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 1379.

Estes dois casos relatados não só apontam que a identificação da cor, como bem salientou Raminelli, era tida quase como sinônimo de cativeiro, como também indicam ainda que a informação da ocorrência de servidão no passado geracional seria usado como argumento definitivo para se efetuar a rejeição em virtude da “falta de qualidade”.

A mácula moral que o cativeiro imputara à imagem dos descendentes de escravizados representaria um inconveniente muito caro àqueles que almejaram servir ao Santo Ofício. A associação da ascendência africana com o trabalho compulsório seria, ao longo do tempo, juízo cada vez mais instintivo e naturalizado. Nesta sociedade escravista, a Inquisição enquanto instituição rigorosamente atenta à dimensão da honra e da imagem pública, trataria a incidência de servidão no histórico familiar como óbice abominável.

d) O aspecto visual: a descrição física como fundamento de análise

Retomando mais uma vez o caso da candidatura do senhor de engenho do Recife retratado no início deste capítulo, vale destacar a atenção dada na investigação aos elementos que compunham as características físicas da mulher com quem o habilitando teria experenciado tratos ilícitos, bem como os da filha gerada nesta relação. Segundo suas descrições, os traços de ascendência africana já não eram percebidos em ambas, pois tinham

cabelo corredio e a tez da filha seria mesmo alva. Estas circunstâncias fundamentariam a

posição do inquisidor João Álvares Soares, que foi favorável à admissão do candidato, enquanto seu colega deliberaria pela rejeição do pleiteante apegado ao expresso cumprimento da lei, à letra fria. A posição do inquisidor mais velho da Mesa seria fundamentada no fato de que a mulatice já não era percebida nos traços físicos da filha do habilitando, não havendo fama sobre o dito defeito. Diante destas condições, este inquisidor entendia que a incontornável boa imagem do tribunal frente à sociedade correria pouco risco caso o senhor de engenho fosse habilitado para servir no cargo de familiar. Este enredo sugere que a preocupação com a fisionomia dos pleiteantes notados por mulatismo era central no processo avaliativo, uma vez que a presença de qualquer indício que denunciasse a ocorrência de tal mácula poderia arranhar a credibilidade da Inquisição.

De tal maneira, no empenho de verificar a incidência de sangue mulato apontado pela voz pública nas provanças inquisitoriais, o Tribunal do Santo Ofício buscaria delimitar certos parâmetros para diagnosticá-la. O esforço de descrição dos fatores fisionômicos dos candidatos infamados foi uma das estratégias mais frequentes do tribunal para a verificação do rumor. Os comissários responsáveis pela condução das investigações buscavam realizar

descrições detalhadas em seus relatórios dirigidos às mesas dos tribunais distritais no intuito de identificar supostos traços físicos resultantes da mestiçagem, fazendo uso destas referências fenotípicas para qualificar a veracidade dos rumores acerca da nota de mulatismo e fundamentar satisfatoriamente a decisão a ser tomada. Esta busca por pistas externas e sinais visíveis era pautada principalmente pela observação e descrição da tonalidade da pele, da espessura dos lábios, das características do cabelo e do nariz e algumas vezes do tom de voz. Na prática, essa descrição funcionaria como indício quase sempre irrefutável da incidência de sangue africano. Como já destacado, conceder habilitação a um candidato que manifestasse sinais de sangue infecto poderia representar sério risco ao ideal de pureza que o Santo Ofício buscava expressar. O critério do exame das características fenotípicas seria então elementar no diagnóstico da mácula e na resolução da questão.

O enredo do processo de habilitação do contratador de panos de linho Antônio Francisco da Silva revela em boa medida o esforço da Inquisição para proceder a verificação exterior da incidência de mulatismo que os rumores delatavam. Morador em Santa Maria da Feira, bispado do Porto, o mercador candidatou-se ao cargo de colaborador laico do tribunal no ano de 1704, alegando não haver quem prestasse serviço nesta ocupação na freguesia e nas imediações de onde morava. Apesar de colocar-se como apto a servir no posto, as inquirições do Santo Ofício sobre sua ascendência lhes foram radicalmente desfavoráveis: pela boca de seus conterrâneos, vieram à tona as acusações de que “descendia da raça de negro”, mesmo sendo a origem desta fama muito incerta por parte dos que a reproduziam220. As investigações empreendidas revelariam o repertório de constrangimentos que a fama de sangue mulato trazia ao candidato e seus consanguíneos. Uma depoente afirmaria que lhe imputavam esta mácula em razão de um primo seu ter sido expulso de uma ordem religiosa havia três ou quatro anos por causa da dita fama; outra pessoa a testemunhar na diligência disse que “há dez ou doze anos o mercador carregava tal fama, e por esta razão não se casara com uma parenta dele depoente, e também sabia se falhara outro casamento para o habilitando que pela mesma razão a moça não quisera”. Houve quem relatasse ainda que o mercador tivera uma dívida com um homem e que este lhe dissera em meio a insultos: “eu não sou da casta de negro!”. Ao consultar o abade local para averiguar o nível de propagação da fama e verificar quais eram as feições do candidato, o comissário delegado para conduzir as inquirições tomou conhecimento de que o rumor era mesmo constante e que o mercador tinha “lábios grossos,

pelo crespo e fala falsetada”. O processo de habilitação do pretendente ficou permanentemente estacionado após tais informações.

Em Évora, o mercador Manuel de Azevedo Cardoso requereu servir à Inquisição como familiar, mas seria outro a frustrar-se em sua pretensão. Os inquisidores que compunham a Mesa da Inquisição eborense no dia 11 de julho de 1701 recomendaram, em parecer ao Conselho Geral, a rejeição do candidato porque nas provanças sanguíneas imputavam a seu pai, abade da igreja de São Martinho da Aliviada, região de Amarante, a fama de que “tinha raça de mulato por via de sua mãe Conceição de Magalhães, que não sabia o grau de mulatice, que o dito abade era amulatado de cor morena, e que da mesma foram outros filhos que lá teve” 221.

Caetano Álvares da Silva, homem natural do reino que afirmava ter estado nas partes do Brasil, onde fez fortuna, solicitou servir no cargo de familiar em 1735222. No entanto, nas diligências ordenadas pela Inquisição, o comissário responsável pelas investigações averiguou que a família do pleiteante tinha larga fama de ter sangue africano:

[...] por parte de João André, pai do dito Caetano, tinha fama de mulato, e que por algum modo se mostra na cor da cara. O mesmo algumas pessoas [...] disseram que o dito Caetano Álvares da Silva tem fama de mulato por via de sua mãe Maria Alvares, e que isso se mostra na cor da cara dele e de seus irmãos e irmãs, de sorte que se não pode negar como também na cor da cara de um sobrinho Manuel, filho de seu cunhado Manuel Pereira e de sua irmã Isabel Álvares, o qual é estudante e dizem que ele por isso se não há de ordenar223.

As informações acerca da descrição física dos candidatos, recorrentes em muitos dos processos de habilitação indeferidos por incidência de sangue mulato, são a clara demonstração de como o Santo Ofício preocupava-se em averiguar se a figura pública do pleiteante inspirava autoridade frente àquelas sociedades. Em seu parecer sobre as diligências realizadas, o comissário responsável afirmara que “o dito Caetano Alvares Silva é pessoa de boa vida e costumes e bom procedimento, mas algumas pessoas disseram que ele não parece capaz de servir ao Santo Oficio no cargo de familiar, assim pela estatura do corpo, como pela cor da cara”; e ainda que “se trata de modo que algumas vezes usa de tamancos”224. O esforço

221 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 3867. 222 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 1058. 223 Idem.

224 Idem. O uso de tamancos - que Bluteau referencia apenas como “calçados com solas de pau” - era costume popularmente difundido entre os mais humildes na região do Douro e do Minho, ao norte de Portugal do século XVIII, sendo tradicionalmente associado aos trabalhadores da lida agrária, com fins de proteção na realização de

para realizar a caracterização física que emerge destas notas investigativas sugere ainda que o candidato poderia ver na busca de um cargo de agente inquisitorial a possibilidade de angariar para si ares de autoridade para assim melhorar sua imagem pública, ostentando uma respeitosa insígnia de honra e poder de mando, para assim refutar as hostilidades de que era