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Inequívoca escusa: candidatos com antepassados penitenciados por culpa de judaísmo

CAPÍTULO 2 Candidatos cristãos-novos rejeitados no Santo Ofício

2.3 Inequívoca escusa: candidatos com antepassados penitenciados por culpa de judaísmo

Dentre os candidatos a agentes inquisitoriais em que recaía o rumor de ascendência mosaica foram habituais as petições de aspirantes com antepassados punidos pelo Santo Ofício por culpas de judaísmo. Na mesma medida, foi também vulgar seus indeferimentos. Tal circunstância foi práxis indubitável para a Inquisição negar provimento, deixando poucas dúvidas aos inquisidores das mesas distritais e ao Conselho Geral quanto à rejeição. Afinal, além da proibição da habilitação àqueles a que se imputasse publicamente “nota da raça de judeus”, os regimentos inquisitoriais vetavam a nomeação de candidatos que tivessem ascendentes presos e penitenciados pelo tribunal. Ao cabo, a ocorrência deste enredo tendeu a municiar o Santo Oficio com o argumento que justificava sua atuação na vigilância da fé e no apuro da classificação social: o alegado potencial de dissimulação dos cristãos-novos, tanto como pertinazes apóstatas da fé, quanto como audaciosos postulantes à cargos inquisitoriais, motivados pela ânsia de livrarem-se da infâmia.

O médico Manuel Vieira Miguéis, formado pela Universidade de Coimbra em 169366, era natural de Avis e residente em Estremoz no ano de 1705 quando peticionou a familiatura. O candidato seria reprovado depois que a Inquisição de Évora descobriu que ele era reputado por cristão-novo, e que sua avó paterna, Maria Vieira, que “tinha 1/4 cristã-nova, se apresentou por culpas de judaísmo em 8 de julho de 1651 e foi reconciliada na Mesa em 16 de fevereiro de 1652”67. A dita avó do aspirante a familiar foi mesmo processada68, e não seria a

única da família: o pai69 do candidato, um tio70 e um irmão71, todos de Avis, viriam a ser

presos e penitenciados pelo Santo Ofício por culpas de judaísmo dez anos depois da rejeição do médico, como indicam os processos localizados.

O padre Francisco Álvares Pereira, natural e morador da vila de Freixo de Espada à Cinta, fronteira portuguesa ao norte com o reino de Castela, era infamado de ter parte de nação hebreia, sendo que seu irmão e seu pai eram assim chamados “na cara”72. Sobre seu pai, aliás, a infâmia tornou-se mais robusta depois de ele ter sido preso pela Inquisição de Lherena ou de Cuenca, no reino vizinho, ainda que tivesse saído livre da instância e a nódoa de seu sangue não tenha sido confirmada durante o processo. A fama pública e principalmente a prisão por parte do Santo Ofício espanhol foram fatais à honra da família e o padre Francisco amargaria a desaprovação de sua candidatura a comissário em 1687.

Mesmo roteiro teria o pleito do reinol Caetano José de Azevedo, morador no bispado de Lamego, que postulou servir o Santo Ofício no cargo de familiar em data não esclarecida em sua petição, mas muito provavelmente em meados do século XVIII73. O andamento de seu processo de habilitação foi logo suspenso, antes mesmo de a Inquisição proceder às diligências judiciais para esquadrinhar seu passado. É que o tribunal constatou que seu tio- avô, Diogo Correia Homem, advogado na mesma localidade, tinha parte de cristão-novo tanto por via materna quanto paterna, e havia sido preso pela Inquisição de Coimbra em 1673 por culpas de judaísmo, tendo abjurado em forma no Auto da Fé ocorrido naquela cidade no ano de 168274.

66 Arquivo da Universidade de Coimbra (AUC), Índice dos alunos da Universidade de Coimbra, Letra M, 008075 – Manuel Vieira Miguéis.

67 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 4724.

68 ANTT, TSO, Inquisição de Évora, processo 6215 – Maria Vieira.

69 ANTT, TSO, Inquisição de Évora, processo 7288 – João Fernandes Migueis. 70 ANTT, TSO, Inquisição de Évora, processo 1090 – Sebastião Vieira Migueis. 71 ANTT, TSO, Inquisição de Évora, processo 4098 – André Vieira Migueis. 72 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 1598.

73 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 1068.

O carpinteiro residente na freguesia de Anjos, Antônio da Costa, enviara petição à Inquisição de Lisboa para ser familiar do Santo Ofício em 176275. Iniciadas as averiguações para apurar a qualidade sanguínea de sua parentela, revelou-se a pecha judaica que recaía sobre seu costado paterno, situação um tanto reveladora do quanto era cara àquela sociedade a limpeza de sangue: seu bisavô, Manuel Fernandes Aleixo, casou-se com a cristã-nova Leonor Rodrigues, bisavó do habilitando, com tamanho escândalo “que por este casamento se enojaram os parentes, e a mãe do dito bisavô endoideceu de desgosto”76. As famílias se

entroncariam ainda por via de outro matrimônio, tendo um irmão do dito Manuel Fernandes Aleixo se casado com uma irmã da referida Leonor. Deste último enlace, nasceria Maria da Costa, “a Costinha”, como era popularmente conhecida em Vila Cova-a-Coelheira a prima do peticionante. Para o infortúnio e estigma ainda maior da linhagem, “a Costinha” seria presa pela Inquisição de Coimbra por culpas de judaísmo, heresia e apostasia no ano de 172477, bem como um primo desta, Faustino José Vitória, também preso na mesma ocasião78 pelos mesmos desvios de fé. Segundo um dos comissários a realizar as provanças, a fama de cristãos-novos que tocava a família paterna do candidato era grande e constante, mas ficaria “mais qualificada” após as prisões, tendo aí prova incontornável da mácula mosaica que sobre ela incidia. Como se vê, a prisão de infamados serviria de prova inequívoca da origem marrana aos olhos da população e, naturalmente, também do Santo Ofício.

Ciente do embaraço que enfrentaria para se habilitar, o carpinteiro até tentou persuadir a Inquisição alegando, em uma nova petição enviada em 1766, que a dita mulher penitenciada não procedera de sua bisavó paterna, mas a estratégia falharia. Os inquisidores do tribunal lisboeta levantaram nos arquivos da instituição o processo da prima do candidato a fim de averiguar a genealogia, e nela confirmaram que os avós da penitenciada eram comuns aos do pretendente. Antônio da Costa terminaria então reprovado em sua pretensão e não pode superar a fama pública que acometia sua família.

Manuel Ribeiro de Miranda, natural e morador em Faro, teve a candidatura para familiar obstruída em 1697 depois que as investigações apontaram que ele “tinha uma avó paterna que foi presa pelo Santo Ofício nas prisões grandes que se fizeram em a dita cidade no ano de 1630 ou 1629, e saiu penitenciada”79. Já Miguel de Sousa e Melo Freire veria seu

requerimento para ser provido à agente laico obstruído pela Mesa da Inquisição de Coimbra

75 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 294. 76 Idem.

77 ANTT, TSO, Inquisição de Coimbra, processo 9668 – Maria da Costa. 78 ANTT, TSO, Inquisição de Coimbra, processo 3332 – Faustino José Vitória. 79 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 4515.

no ano de 1746 em razão do irmão de seu bisavô ter abjurado De Veemente por culpas de judaísmo pela Inquisição de Lisboa em 162680.

O pleito de Manuel Martins de Oliveira engendrou trama um tanto complexa, mas as dúvidas suscitadas ao longo das provanças teriam desfecho deliberado após o revirar dos arquivos inquisitoriais. Escrivão da Almotaçaria da vila de Borba, arcebispado de Évora, e na altura dos seus quarenta e poucos anos, o candidato fez petição para alcançar a familiatura em 176081. As investigações levantariam que o pretendente era “geralmente infamado de judeu

por via de sua mãe, Maria Bispa, e que este avô materno e três irmãos do mesmo tinham sido penitenciados pelo Santo Ofício e que saíram sambenitados, [...] e que ainda hoje corre esta fama pública entre quase todo o povo da vila de Borba”.

De fato, a memória coletiva da comunidade perpetuaria a infâmia sobre a família do referido escrivão. Dizia-se na vila, por exemplo, que um irmão do candidato, quando tentara se habilitar para religioso de Santo Agostinho dos descalços, não conseguiu em virtude da falta de limpeza de sangue, uma vez que “havia pessoas que se lembravam de ver o avô materno do mesmo sambenitado”.

Segundo a apuração das diligências inquisitoriais, a hesitação na veracidade da nódoa hebreia seria um problema de homonímia de troncos parentais da localidade: haveria na vila os Bispo Gomes, limpos de sangue, e os Bispo Lopes, cristãos-novos de quem descendia o habilitando. Este enredo ilustra bem a famosa anedota espanhola consagrada pela estratégia bastante costumeira nas sociedades assentadas na lógica do bom nascimento de alegar a coincidência de sobrenomes para assim defender a estirpe e advogar contra as dúvidas levantadas acerca da reputação familiar: “estos son otros Lopez”. E, segundo os relatos, teria sido esta confusão a oportunidade ideal para se empreender uma falsificação genealógica:

Estes [os Bispo Lopes], por intervenção e respeito do capitão-mor Diogo de Sande Vasconcelos, alcançaram a sua mão os livros dos assentos de batismo da paroquial de São Bartolomeu e viciaram uns assentos mudando alguns nomes para efeito de se entroncarem com a família dos Bispo Gomes e facilitarem a habilitação do referido ordinário82.

A motivação para promover tal embuste era muito clara: tentar pôr em xeque o rumor público perpetuado pela memória social e que corroía a honra da família. E, de fato, parece ter sido este o seu efeito. Haveria um depoente que acreditava na inautenticidade da fama: um

80 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 4917. 81 ANTT, TSO, CG, Habilitações Incompletas, doc. 4338. 82 Idem.

padre da localidade alegaria que, em virtude de uma justificação de testemunhas que ele viu pessoalmente, tirada no juízo geral da vila a favor do candidato e de seus irmãos, passou a considerar como falsa a voz pública que recaía sobre a família. Inclusive, o comissário investigador relataria à mesa

que perguntando o reverendo prior da matriz da dita vila às testemunhas para informação secreta e diligência De Genere a favor do ordinário, sobrinho do habilitando, em alguma testemunha lhe falando na referida infâmia de judeu, lhe mostrava logo o dito prior a dita justificação De Genere, dizendo-lhe “como pode ser isto assim, se aqui se mostra por sentença serem de limpo sangue?”83.

Frente a esta incerteza e à acusação de que o requerente tinha ascendentes punidos pelo tribunal, os inquisidores da Mesa de Évora mandariam investigar os reportórios daquela Inquisição e, para infortúnio de Manuel Martins de Oliveira, foram localizados os processos de seus antepassados: seu avô João Lopes Bispo84, recebido pela Inquisição de Lisboa em

1667, e o irmão deste, Bento Lopes Bispo85, detido pelo tribunal de Évora 1668, haviam

mesmo sido presos e penitenciados por culpas de judaísmo. João Lopes Bispo, aliás, foi, de fato, como alegava a fama pública que corria, visto pela comunidade de Borba vestido com o ultrajante sambenito dos penitenciados em Auto da Fé, uma vez que foi sentenciado a usar perpetuamente o hábito por cima de suas vestes, como se nota em seu processo. Naturalmente, depois de “confirmada” a ascendência mosaica de sua família, Manuel Martins de Oliveira foi rejeitado no cargo de familiar ao qual se candidatara.

Como já ressaltado, o fato de terem antepassados cristãos-novos penitenciados pelo Santo Ofício, sob a acusação de judaizarem, serviria à Inquisição como prova contundente do defeito de sangue e passado apóstata da progênie de muitos candidatos, alimentando a persistente convicção do tribunal de que conversos e seus descendentes tendiam sempre a prevaricar a nova fé, colocando-os sempre como suspeitos de permanecerem praticando ocultamente sua crença original. Por outro lado, tal circunstância ilustra como os descendentes das vítimas preferenciais da Inquisição empreendiam esforços para terem suas genealogias aprovadas pelo próprio Santo Ofício na esperança de limpar o passado genealógico e livrar a família do estigma social. Se acreditavam que com o passar das décadas e gerações o tribunal “esqueceria” de seus antepassados penitenciados, tal expectativa tendia a ser vigorosamente frustrada diante de um elemento central no processo constitutivo das

83 Idem.

84 ANTT, TSO, Inquisição de Lisboa, processo 907 – João Lopes. 85 ANTT, TSO, Inquisição de Évora, processo 1863 – Bento Lopes Bispo.

hierarquias típicas daquelas sociedades pautadas na lógica do bom nascimento: a implacável memória social que desenterrava escândalos e tragédias familiares, movida pelo furor de reafirmar as regras da estratificação pactuada a fim de não os permitir adentrar o restrito espaço de bem-aventurança e normatividade. Neste hostil cenário de luta social, a vontade de esquecimento dos marginalizados confrontaria a sanha reguladora dos grupos privilegiados que buscavam valorizar seus espaços de distinção acionando reminiscências desqualificadoras para assim reafirmar a desigualdade. Como peça influente no tabuleiro da mobilidade social, o Tribunal do Santo Ofício fundamentaria seu procedimento de apreciação das candidaturas no que a reputação e a voz pública reverberava sobre seus postulantes. Com base nesta “justiça social”, sustentada pela honra pública e vigiada pela memória coletiva, a política de recrutamento da Inquisição muitas vezes endossaria infâmias recônditas no tempo, mas perpetuadas na e pela tradição oral, como nos casos analisados até aqui. Neste sentido, os arquivos do Santo Ofício representavam elementos fundamentais na resolução de dúvidas genealógicas e enredos familiares controversos, cumprindo assim o papel de fazer da memória institucional uma certificação insuspeita que muitas vezes se articulava de modo perverso com a memória comunitária, gerando efeitos ruinosos para as expectativas de esquecimento dos candidatos infamados. Como se verá em outro momento deste capítulo, muitos destes rejeitados em virtude da nódoa de sangue converso estariam, como a família do escrivão de Borba, dispostos a corromper e manipular para superar a vexação pública.

Haveria ainda outro roteiro de impugnação de habilitações de candidatos com rumor de ascendência cristã-nova menos incontestável do que antepassados penitenciados por culpas de judaísmo, embora mais frequente: a rejeição com base na ocorrência da fama pública, sendo ela fundamentada ou não.