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Dentes de cachorro e cascos de cavalo: memórias sobre caboclas

Apesar de manifestar certa visão fatalista em relação ao desaparecimento da população indígena da Capitania do Rio Grande do Norte após as Guerras dos Bárbaros, Câmara Cascudo nos forneceu uma importante chave para a compreensão das mestiçagens entre os nativos e os conquistadores. Escrevendo na década de 1950, afirmou que “Inúmeras famílias-troncos do Seridó e oeste norte-riograndense tiveram avó-indígena, caçada a casco de cavalo, preferida pelo fazendeiro, mãe do filho favorito, vaqueiro exímio, multiplicador de fazendas”.51

Ao que nos parece, trata-se da primeira referência, na historiografia clássica norte-rio-grandense, acerca dessas misturas que aconteceram nos primeiros tempos da implantação da pecuária, das quais resultaram filhos mestiços que tomaram conta do gado que

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MONTEIRO, John Manuel. Negros da terra: índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 137.

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Assim sendo, provavelmente a documentação do Cartório e Matriz de Pombal deve guardar algum registro da viúva Antonia Ferreira, de seus filhos ou dos escravos.

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passou a pastar nas ribeiras do Seridó e seus afluentes a partir do momento de montagem das fazendas – após a cessação, em definitivo, dos conflitos com os silvícolas.

Essa avó-indígena de que falava Câmara Cascudo corresponde à figura da cabocla-

braba, pega a dente de cachorro e casco de cavalo, que é rememorada com frequência nas

memórias de família quando se indaga, aos atuais moradores do Seridó, acerca de sua genealogia. Escrevendo sobre a vida cotidiana nos primeiros tempos do povoamento da ribeira do Acauã, na altura do que seria, futuramente, a Povoação do Acari, Jayme da Nóbrega Santa Rosa assinalou que “alguns silvícolas” ainda se faziam presentes – provavelmente, na opinião do autor, mulheres e crianças que deixavam os recônditos das serras e das grutas. Valendo-se da memória, Jayme Santa Rosa afirmou que “Muitas histórias se contaram de moças das selvas que foram apanhadas, em correrias a cavalo, nas serras do Bico, da Rajada e da Formiga”.52 Uma dessas “moças”, segundo história que circulava entre os descendentes dos Nóbrega, foi encontrada na chã da Serra da Formiga e constituía, na opinião desse historiador, o princípio de um ramo dessa família. As informações fornecidas pela historiografia regional, todavia, sequer mencionam essa indígena, apontando, como tronco da família, o casal Manuel Alves da Nóbrega e Maria José de Medeiros, da ribeira do Sabugi.53

Existem diversos significados para o termo caboclo54, que não consta, por exemplo, nos dicionários de Rafael Bluteau (1712), Morais e Silva (1789) e Silva Pinto (1832). Na

Informação Geral da Capitania de Pernambuco, de 1749, são mencionadas, no âmbito da

Capitania do Rio Grande, as aldeias de Guajiru, Mipibu, Guaraíras, Gramació e Apodi. As três últimas eram habitadas por “Cabocollos da Lingua Geral”, denominação que se referia aos remanescentes dos Potiguara. Em Guajiru habitavam caboclos e “Tapuyos de nassão

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SANTA ROSA, Jayme da Nóbrega. Acari: fundação, história e desenvolvimento. Rio de Janeiro: Pongetti, 1974. p. 26.

53

AUGUSTO, José. Seridó. Rio de Janeiro: Borsoi, 1954. p. 189.

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Câmara Cascudo, a exemplo, considerava caboclo ou curiboca como sendo o resultante da mistura entre negros e índios (CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte, p. 37). O uso do termo acentuou-se no decorrer do século XIX, quando diversos povos indígenas das províncias nortistas tiveram suas terras tomadas por posseiros e oligarcas regionais, em decorrência dos efeitos causados pela Lei de Terras de 1850 (e, em última instância, da extinção dos antigos aldeamentos e sua elevação a vilas dirigidas por um poder temporal, na metade do século XVIII). Caboclos eram, assim, na opinião de Edson Silva, os índios sem terra própria, que pouco a pouco iam sendo “confundidos com o restante da população”, como afirmavam as autoridades provinciais (SILVA, Edson. Resistência indígena no Nordeste nos 500 anos de colonização. In: BRANDÃO, Sylvana (org.). Brasil 500 anos: reflexões. Recife: EDUFPE, 2000. v. 1. p. 94-129). Os recenseamentos oficiais do Império (1872) e República (1890), assim, trouxeram a população brasileira classificada em brancos, negros, pardos e caboclos, acrescentando-se a categoria de mestiços em 1890 (OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Pardos, mestiços ou caboclos: os índios nos Censos Nacionais do Brasil (1872-1980). Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 3, n. 6, p. 60-83, out. 1997).

Payacûs” e, em Apodi, apenas tapuias.55

Partindo de reflexão sobre fontes coloniais como esta, Pedro Puntoni, ao discutir a bipolaridade entre o universo tapuia e o tupi, distinguiu

caboclo como sendo o índio que morava na costa e falava a chamada língua geral, em

oposição à língua travada falada pelos povos do sertão56. Reconstituindo a etimologia do termo, Teodoro Sampaio asseverou sua procedência do tupi (de caá-boc, ou seja, tirado ou

procedente do mato), corroborando a ideia de índio integrado ao processo civilizatório.57 Manuel Diégues Júnior, quando enfocou os resultados da mestiçagem no âmbito do Brasil, considerou que dois foram os tipos principais de mestiços que surgiram: o mulato, proveniente do intercurso entre brancos e negros no mundo do engenho e o mameluco, fruto das relações entre brancos e indígenas na fazenda de criação. Todavia, o autor não ignorou outras possibilidades de mistura – além do mulato e do mameluco –, já que afirmou ser possível “(...) encontrar vários graus de mestiçagem, dependendo quase sempre da maior ou menor preponderância de um dos grupos principais, por vezes, se diversificando de acordo com as peculiaridades regionais”. Dentre as outras gradações para os rebentos oriundos dos contatos entre povos, Manuel Diégues Júnior assegurou que o caboclo era fruto do intercurso de índios com índios.58 Caboclo como sinônimo de índio59: é este o significado que mais se aproxima do uso do termo na expressão cabocla-braba, pega a dente de cachorro e casco de

cavalo.60

Como caboclas-brabas ficaram conhecidas, na memória familiar dos habitantes do Seridó, as índias61 que sobreviveram à dizimação durante a Guerra dos Bárbaros ou à

55

INFORMAÇÃO Geral da Capitania de Pernambuco [1749]. Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 28 (1906), p.420, 1908.

56

PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: povos indígenas e a colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. p. 46.

57

SAMPAIO, Teodoro. O Tupi na geografia nacional. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1987. p. 152; 210.

58

DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. Etnias e culturas no Brasil. 5.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1976. p. 118-9.

59

Ao descrever o movimento de entrada dos luso-brasílicos no sertão que seria chamado, posteriormente, de Seridó, Oswaldo Lamartine de Faria evidencia esse sentido da palavra caboclo: “A marcha, é de se imaginar, era empalhada a cada légua: carnes rasgadas pela flecha do caboclo-brabo (...)” (LAMARTINE, Oswaldo. Sertões do Seridó. Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1980. p. 53).

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É preciso atentar, todavia, que esse nome tem outras denotações na contemporaneidade: é uma das categorias de classificação social dos povos amazônicos (RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. 2.ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 307-38) e, ainda, no senso comum, pode remeter à adjetivação de indivíduos de tez morena das áreas rurais do sertão nordestino.

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A partir de agora estaremos nos referindo às caboclas-brabas, no sexo feminino, pelo fato da maior incidência de relatos coletados entre os moradores do Seridó mencionarem mulheres índias que foram raptadas e amansadas. Isso não quer dizer que não hajam, também, relatos sobre caboclos-brabos (ver, por exemplo, SOARES, Gilberd; PEREIRA, Veranilson. Os caboclos brabos: memória de família e imaginário seridoense. 2000. 39f. Dissertação (Disciplina História do Rio Grande do Norte I – Curso de História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Caicó, 2000, onde os autores analisam testemunhos sobre índios que foram capturados). É possível, inclusive, que houvesse interesse em utilizar caboclos como mão-de-obra escrava nas

escravização posterior62. Escondidas nos pés-de-serra ou nas suas chãs e homiziadas nas furnas e grotas, andando sozinhas ou em pequenos grupos, fugindo a todo tempo do alastramento da fronteira pastorícia, foram literalmente caçadas pelos conquistadores luso- brasílicos, que, montados em cavalos e com a ajuda de cães de caça, conseguiram domar a sua brabeza. Em alguns casos essas caboclas capturadas tornaram-se (de maneira forçada, ou não) esposas ou concubinas dos primeiros colonizadores luso-brasílicos, donde nasceram os filhos mestiços que, por vezes, chegaram a tomar conta de suas fazendas na época do couro.63 A fuga para espaços ainda não apropriados totalmente pelos homens da pecuária, no fundo, manifestava uma atitude de resistência dos indígenas contra a ocidentalização, sendo prática comum ainda nas duas primeiras décadas do século XVIII, segundo a opinião de Sinval Costa.64 É ele quem nos fala, a propósito, que

(...) o aldeamento dos índios continuaram, depois da Guerra dos Bárbaros, localizavam-se proximos a grandes poços: Luíza, Acari, e Poço de Santana. E os caboclos foram participando da colonização contra a vontade dos Sesmeiros, com a proteção parcial dos vaqueiros que geralmente, amavam as caboclas. Os bravos escondiam-se nas serras, e daí pegadas a “casco de cavalos e dente de cachorro” e amarrados em troncos bem enfincados, até amansar.65

Segundo os estudos pioneiros de Julie Cavignac, longe de serem classificadas como narrativas de natureza folclórica, as memórias sobre essas índias roubadas podem ser fazendas de gado, visto a carência do elemento negro no sertão e mesmo o alto custo para adquiri-lo no começo do século XVIII.

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Na ribeira do Jaguaribe, situada na vizinha Capitania do Ceará, o roubo de mulheres nativas era comum nos primeiros anos do século XVIII – roubo que era feito, inclusive, de índias que já tinham companheiros. Tal ato foi denunciado ao rei D. João V pelo desembargador Cristóvão Soares Reimão em carta de 13 de fevereiro de 1708. Reclamava a El-rei o desembargador que “Nessa Capitania do Searâ estão varios moradores com indias furtadas a seus maridos ha quatro, des, quinze anos sem lhas quererem Largar”, o que considerava matéria de “escandallo". Cf. PORTUGAL. Lisboa. AHU – Capitania do Ceará (CCE). Cx. 1, Doc. 55. Carta do desembargador Cristóvão Soares Reimão ao rei [D. João V], sobre a vexação por que passam alguns índios da capitania do Ceará pelo fato de certos moradores terem furtado suas mulheres e não as quererem devolver – 1708. (Documento manuscrito microfilmado, digitalizado e integrando CD-ROM – Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco). Esse e outros aspectos da violência contra o índio, no cotidiano da Capitania do Ceará, são analisados por VIEIRA JÚNIOR, Antonio Otaviano. Entre paredes e bacamartes: história da família no sertão (1780-1850). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha; São Paulo: Hucitec, 2004. p. 31- 3.

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A época do couro, segundo Capistrano de Abreu, é o período em que as primeiras fazendas de gado no vasto sertão das capitanias do norte estavam sendo montadas, em sua grande maioria com o concurso dos vaqueiros ou prepostos dos donos das sesmarias – ainda instalados ou ocupados com a lavoura canavieira no litoral. Tempos “de vida bem apertada” em relação ao uso dos recursos naturais oferecidos pelo sertão, em que se fazia usufruto do couro e seus derivados para diversas práticas cotidianas (ABREU, Capistrano de. Capítulos de história colonial e Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. Brasília: UnB, 1982. p. 133).

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COSTA, Sinval. Os Álvares do Seridó e suas ramificações. Recife: ed. do autor, 1999. p. 11.

65

COSTA, Sinval. Correspondência pessoal. Recife, 03 fev 1996. Destinatário: Helder Alexandre Medeiros de Macedo. Acervo particular de Helder Alexandre Medeiros de Macedo. (Manuscrita).

encaradas como representações do passado colonial que os moradores do Seridó dos dias de hoje construíram com base na rememoração de sua história familiar. Ao reconstruírem o caminho que agrega a errância das caboclas pelo sertão, seu apresamento pelos vaqueiros e a violência do estupro, os seridoenses estariam estabelecendo uma versão mestiça da história de sua comunidade – diferente da história oficial, quase sempre triunfalista e deificadora de um conquistador luso-brasílico.66

Se atentarmos para o fato de que as memórias sobre as caboclas-brabas remetem à época da colonização da ribeira do Seridó, podemos inferir que uma das razões para a procura das índias tenha sido a escassez do elemento feminino no começo do século XVIII. Como apontam documentos coevos,67 a presença feminina nos primeiros tempos da conquista era pouca ou mesmo rara. Basta observar, por exemplo, que as fazendas de gado mais antigas do Seridó e que, segundo Olavo de Medeiros Filho, tiveram perpetuidade genealógica, somente foram edificadas após a década de 1720.68 É de se considerar, também, que algumas das esposas desses fazendeiros já chegaram à Ribeira do Seridó casadas – ou, ao menos, tendo morado no litoral do Rio Grande, da Paraíba ou em Pernambuco.

Em busca de maiores informações sobre as histórias que narram o apresamento das caboclas-brabas, entramos em contato com narrativas que colhemos com seus descendentes nos municípios seridoenses de Acari, Carnaúba dos Dantas, Caicó, Cruzeta, Currais Novos,

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CAVIGNAC, Julie. A índia roubada: estudo comparativo da história e das representações das populações indígenas no Sertão do Rio Grande do Norte. Caderno de História – UFRN, Natal, n. 2, v. 2, p. 83-92, jul/dez. 1995. Um exame sobre as premissas metodológicas acerca do uso de narrativas orais e escritas em trabalhos com memória pode ser obtido em CAVIGNAC, Julie Antoinette. Vozes da tradição: reflexões preliminares sobre o tratamento do texto narrativo em Antropologia. Mneme – Revista de Humanidades, Caicó, v. 1, n. 2, out./nov.2000. Nesse texto, a autora parte de diversos exemplos fornecidos por narrativas orais, dentre eles, aqueles ligados às histórias de caboclas-brabas.

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Numa carta enviada pelo padre Domingos Ferreira Chaves – missionário e visitador geral das missões do sertão da parte do norte no Ceará –, que gerou uma consulta do Conselho Ultramarino a El-rei em 1720, a situação de violência contra os nativos era tamanha que os capitães-mores obrigavam estes a trabalharem sem estipêndio para seu sustento, ocupando os índios em atividades de pesca, agricultura, condução de madeiras e fiação de algodão, enquanto os soldados dos presídios e demais moradores continuamente roubavam suas mulheres e filhas – ato que o padre considerava de “devassidão”. A carta do padre Domingos foi baseada numa exposição feita pelo padre Antonio de Souza Leal, que “expos Largamente em hu papel as grandes violencias e injustas guerras com que são perseguidos e tiranizados os Indios do Piagui (sic), Ceará, e Rio grande, cappitanias continuas e em q. asistio (...)”. O texto desse depoimento ilustra, assim, na opinião do religioso, as expropriações cometidas contra os indígenas das Capitanias do Norte, dentre as quais o roubo das mulheres e o seu cativar. Cf. PORTUGAL. Lisboa. AHU –CCE. Cx. 1, Doc. 67. CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei [D. João V], sobre a carta do padre Domingos Ferreira Chaves, missionário-geral e visitador-geral das missões do sertão da parte do norte no Ceará, e exposição do padre António de Sousa Leal, missionário e clérigo do hábito de São Pedro, sobre as violências e injustas guerras com que são perseguidos e tiranizados os índios do Piauí, Ceará e Rio Grande – 1720. (Documento manuscrito microfilmado, digitalizado e integrando CD-ROM – Projeto Resgate de Documentação Histórica Barão do Rio Branco).

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MEDEIROS FILHO, Olavo de. Velhas famílias do Seridó, p. 3-4. A exceção é a fazenda da Cacimba da Velha, na ribeira do Quipauá, que já era habitada pelo casal Pedro Ferreira das Neves e a índia Custódia de Amorim Valcácer em cerca de 1714.

Jardim do Seridó, Lagoa Nova, Ouro Branco, Parelhas, São José do Seridó, São João do Sabugi e Serra Negra do Norte.69 De maneira geral, essas narrativas relembram o estado de “vida selvagem” em que estavam as caboclas, perambulando pelo mato, cozinhando em panelas de barro, colhendo mel de abelha e usando-o como alimento acessório junto à caça e aos frutos da caatinga e falando língua difícil de compreensão pelos “brancos”.70 O processo de encontro dessas índias com vaqueiros e/ou fazendeiros, narram seus descendentes, geralmente ocorria nas proximidades de fontes d‟água (olhos d‟água, lagoas, poços) ou de serras71, caracterizado, em quase todos os casos, pelo uso da violência para a “captura” das mulheres – daí o uso corrente, nas narrativas contemporâneas, da expressão “dente de cachorro e casco de cavalo” – e “domesticação”. As nativas deixavam de comer “insosso” e passavam a fazer parte da sociedade colonial e cristã – casando, em algumas vezes, com os vaqueiros que lhes capturaram, ou vivendo como amásias dos fazendeiros que ordenaram a “pega” no mato.

Nas memórias colhidas em Carnaúba dos Dantas, Acari, Jardim do Seridó e Cruzeta uma personagem foi recorrente: uma índia pega nos arredores da Serra da Rajada, nominada,

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As narrativas (9) dos moradores de Carnaúba dos Dantas foram tomadas em entrevistas informais entre 1994 e 2003. As demais, relativas aos moradores de outros municípios (49), foram colhidas por alunos das disciplinas História do Rio Grande do Norte I e Seminário de História da América Latina I do Curso de História da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, entre 2004 e 2005, quando lecionávamos no Campus de Caicó (ver relação completa dos narradores no item Fontes).

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Dona Beatriz Alexandrina da Costa alude à “fala embuluada” que a cabocla-braba, sua ancestral, tinha ao ser encontrada pelos vaqueiros, da mesma forma que dona Josefa Rita de Araújo Azevêdo e seu Francisco Castilho de Medeiros. Cf. COSTA, Beatriz Alexandrina da. Entrevista [Parelhas-RN, 18 maio 2004]. Entrevistadoras: Ana Carla da Trindade Pereira e Elisângela da Silva Azevêdo. In: PEREIRA, Ana Carla da Trindade; AZEVÊDO, Elisângela da Silva; FERNANDES, Jacknamar Flávio. Caboclas brabas: memória sobre a história indígena do sertão do Rio Grande do Norte (relatório de pesquisa). Caicó: UFRN/CERES, 2004. 1 fita cassete. Acervo sob guarda do LABORDOC; AZEVÊDO, Josefa Rita de Araújo. Entrevista [Parelhas-RN, 08 jan 2005]. Entrevistadora: Luciana de Souza Pereira. In: SILVA, Andréia Cristina Aniceto da; SILVA, Hugo Romero Cândido da; PEREIRA, Luciana de Souza. As caboclas brabas. Caicó: UFRN/CERES, 2005. 1 fita cassete. Acervo sob guarda do LABORDOC; MEDEIROS, Francisco Castilho de. Entrevista [Lagoa Nova-RN, ca.nov. 2004]. Entrevistador: Francisco Ônio de Lima. In: LIMA, Francisco Ônio de. Trabalho de pesquisa dos caboclos brabos. Caicó: UFRN/CERES, 2004. 1 fita cassete. Acervo sob guarda do LABORDOC. Seu Manuel das Caboclas (Manuel Jorge da Silva Filho) também rememora a “fala arrastada” e o “jeito invocado” que tinha sua ancestral índia. Cf. SILVA FILHO, Manuel Jorge da. Entrevista [Jardim do Seridó-RN, 22 dez 2004]. Entrevistadores: Diego Marinho de Góis, Anselmo Azevedo do Nascimento e Rilawilson José de Azevedo. In: NASCIMENTO, Anselmo Azevedo do. et al. Cabocla braba: memória sobre os índios no sertão do Rio Grande do Norte. Caicó: UFRN/CERES, 2004. 1 fita cassete. Acervo sob guarda do LABORDOC. É possível que se trate, nesses casos, de uma reverberação da linguagem falada pelos tapuias: a língua travada, que pronunciavam “tremendo o papo” (SOUZA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1988. p. 338-9).

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Os principais espaços lembrados pelos narradores como sendo os lugares da “pega” das caboclas foram: Serra de São Bernardo (antiga Serra de Samanaú), Serra da Rajada, Cacimba da Velha (nas serras de Santa Luzia), Totoró, Serra de João do Vale, Poço da Quixaba e Poço Salgado. Curiosamente, esses espaços são mencionados nos textos das sesmarias da primeira metade do século XVIII.

pela maioria dos narradores, de Micaela.72 Chamou-nos atenção, também, o fato de que essa índia aparece em várias fontes escritas e bibliográficas que tratam da história e da genealogia da família Dantas. Essas narrativas noticiam que o coronel Caetano Dantas Corrêa (1710- 1797) teria pego a dente de cachorro e a casco de cavalo uma cabocla-braba que batizara posteriormente como Micaela, a qual estava desgarrada nas cercanias da Serra da Rajada (hoje, essa serra fica localizada entre os municípios de Carnaúba dos Dantas, Acari, Parelhas e Jardim do Seridó). Contam que a mesma, por ser muito arredia, foi trancada e amarrada em um quarto e que, ao receber a comida em um prato, cuspia-o e o arremessava de volta. Teria sido amansada por Caetano Dantas, com quem casara depois e tivera filhos, dos quais descendem os Dantas que povoaram a ribeira do Seridó73.

A história oficial, no entanto, discorda dessa versão. Historiadores e genealogistas que escreveram sobre a família Dantas na ribeira do Seridó afirmam que Caetano Dantas Corrêa