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Capítulo 4. Barrocal do Douro: etnografia de um bairro

4.4. Dentro de casa, fora de casa

Naquele tempo, cada um organizava a casa de seu modo. A HIDOURO fornecia as condições básicas: aquecimento, salário, subsídios.

A principal diferença entre as casas definitivas e as casas provisórias residia no nível de privacidade. Nas casas de madeira ouvia-se o barulho das que lhes eram contíguas. O bairro definitivo tinha mais conforto graças aos materiais e à sua disposição no terreno. As edificações destinadas ao pessoal dirigente, acima de todas as outras eram as mais resguardadas.

Enquanto os homens estavam no estaleiro, as mulheres cuidavam dos assuntos domésticos: a escola dos filhos, a casa, as compras. Não frequentavam o Clube do Pessoal.

Obra e estaleiro eram um assunto do foro masculino, a casa e filhos uma competência feminina. Havia poucas mulheres a trabalhar no bairro. Uma médica, algumas enfermeiras, as professoras. As mulheres dos trabalhadores podiam ocupar-se de trabalhos de costura para as mulheres de condição social mais elevada. As mulheres podiam colaborar na ajuda às famílias mais carenciadas, muitas vezes em cooperação com a Ordem de São Vicente de Paula.

As ocasiões de maior sociabilidade eram as festas e a missa de domingo.

Os acontecimentos do dia-a-dia ligavam-se às questões do trabalho. Se havia um acidente, todo o bairro sabia. Se havia uma dissidência conjugal, comentava-se.

Para Conceição, que já vinha seguindo a construção de barragens desde o Cávado, onde o pai trabalhou antes de rumar a Picote, a referência era a sua família. Quando conheceu João, tudo aquilo era estranho e difícil. Ela gostou logo dele, porque falava bem, e era diferente das outras pessoas. Mas o facto de estar perto da família era o mais importante. A mãe ajudava-a nas tarefas domésticas, o pai, a quem estava muito ligada, estava perto.

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Durante a sua permanência em Picote, um dos seus irmãos conheceu também a sua atual mulher, originária de Vila Chã. Havia casamentos entre os trabalhadores da obra e as mulheres das aldeias limítrofes. Picote representava um ponto de encontro de sensibilidades, hábitos e rotinas.

Confiava-se muito nos médicos e enfermeiros da empresa, eles chegaram a atender e cuidar de pessoas que não pertenciam à obra. Nessa época os filhos nasciam em casa, assistidos por uma parteira: os partos eram mais trabalhosos e arriscados. Depois, os bebés passaram a nascer no hospital de Miranda.

O trabalho assume aqui importância. Se a mulher trabalhava, como era o caso de Maria Fernanda, as contradições sociais eram vividas de uma forma mais direta.

Conceição não trabalhava quando casou, apesar de já ter trabalhado na Póvoa de Varzim, seu local de origem onde aprendeu costura. Depois de casar, trabalhou como costureira para as mulheres dos engenheiros. Referiu-me as mudanças ocorridas com o 25 de Abril. Foi aí que a sua consciência despertou de forma mais assumida pela participação em organizações representativas dos trabalhadores.

Na barragem havia situações de perigo, quando os homens iam pescar para a albufeira, ou quando nadavam nas margens. Sabia de acidentes ocorridos nessas circunstâncias. O marido ia quase todas as noites ao Clube do Pessoal. Jogava xadrez, participava em torneios, dedicava-se a outras atividades. As mulheres temiam pelos seus homens. Se não eram os perigos no estaleiro, podia ser um mergulho mal calculado, uma escorregadela fatal na pescaria. Ela e o marido davam grandes passeios pelo bairro, namorando. As ruas dos engenheiros eram lugar onde muitos passeavam, mas ninguém partilhava privacidade. Como eles, muitos outros casais namoravam, casavam, tinham filhos. Como Justiniano comentou em entrevista:

‒Ali não havia nada para fazer, faziam-se filhos!

Na realidade, as famílias barragistas tinham um número elevado de filhos, podiam ter 12 filhos, e esta realidade era transversal às classes sociais. Quando os trabalhadores falam da sua infância, o seu referente é o universo da obra, ora representando uma ligação ao pai (Henrique Pinto, Orlando, Nelson) ora indicando uma mudança no estilo de vida (de pastor a trabalhador de pá e pica, como Lázaro). Se o lugar na hierarquia é mais elevado, as recordações podem reportar-se às vivências na piscina e aos encontros entre rapazes e raparigas, a vivências na escola (Jorge Castro). As brincadeiras de criança realizavam-se depois da saída da escola. Com os bichos, os ferros e as pessoas. De acordo com a rua, a casa, as memórias são as dessas diferentes representações da obra e do lugar.

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Dentro de casa, as famílias. Fora de casa, nas casernas, os homens.

O território, marcado pela divisão do trabalho é também vivido na confluência de costumes e valores. Entrando e saindo das casas, os engenheiros, o padre Telmo.

Toda a gente o estimava e lhe abria a porta, principalmente os mais pobres. Era ele que frequentemente conseguia os acordos com os engenheiros – fornecimento de telhas, cobertores, dinheiro, subsídios, comida. Não esperava que alguém lhe contasse sobre as doenças ou sobre a fome; ele próprio via e agia, contra a opinião, contra a hierarquia. Por esse motivo, a vida do bairro não pode ser compreendida sem a sua ação permanente: a mesma razão que leva os entrevistados a comover-se quando se lhe referem. Todos contaram um ou vários episódios que aconteceram com colegas seus, ou com os próprios. Submetendo-os ou testemunhando alguns ritos de passagem da biografia de um indivíduo: casamentos, batizados e ainda ouvir, reivindicar a Cristo e à administração da HIDOURO.

O padre Telmo sabia a importância das festas e dos convívios nas rotinas do bairro. Por esse motivo, e ainda antes de ser construída a capela do bairro moderno, celebrava a missa de domingo num barracão provisório após a qual se criava uma festa convívio. Era nesse convívio que uns e outros partilhavam as suas diferenças, e as suas dificuldades. Contou- me que os trabalhadores procuravam sempre que o seu período de férias coincidisse com as festas da terra de que eram originários. De certa forma, as pessoas traziam um pouco da sua origem consigo, mas dadas as circunstâncias, havia que criar situações comuns e vivências coletivas.

Havia as festas das aldeias próximas do Barrocal, as festas dos locais de origem dos trabalhadores, e as festas constituídas no bairro, por iniciativa do Clube de Pessoal da HIDOURO. Pedia-se para ir às festas da Senhora da Agonia, às festas do Tabuleiro, de Nossa Senhora dos Remédios. Para além destas, havia as festas de Urrós, Sendim, Bemposta, Duas Igrejas. (PINTO, 2012:53)

As atividades organizadas pelo Clube de Pessoal eram muito participadas. Havia variedades, ilusionismo, bailes, cinema. O ilusionista era conhecido pela alcunha Conde d’Aguilar. A festa de Fermoselle, em Espanha era de difícil acesso. Por vezes nadava-se até à outra margem do rio com a roupa amarrada no cimo da cabeça, mas era arriscado atravessar a fronteira.

A obra inaugura a vida e o sentido constrói-se na colisão dos costumes, da linguagem, e dos efeitos que a migração tem nas famílias e nas relações. Vai-se porque se quer uma vida melhor, e o encontro marcado na obra convive de forma contraditória com o medo e

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a desconfiança em relação ao outro, às suas expressões e equívocos de linguagem, aos seus hábitos e rotinas.