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Capítulo 4. Barrocal do Douro: etnografia de um bairro

4.5. O comer e as festas

Para além das festas da região de origem dos trabalhadores e daquelas nas aldeias mais próximas, havia as ocasiões de convívio do pessoal da obra. Organizavam-se desafios de futebol, campeonatos de xadrez, torneios de pingue-pongue, consoante a época do ano e os intervenientes. A HIDOURO apoiava as iniciativas envolvendo outras concessionárias, como a Hidroelétrica do Cávado (HICA) e a Hidroelétrica do Zêzere (HEZ). Havia equipas de futebol: a da HIDOURO, para os funcionários da obra, a da ETELLI, para os do empreiteiro e a da União Operária, para todos os outros. Existiam ainda equipas constituídas por secção profissional, que eram as mais participadas. Recordam-se episódios cómicos: trocar mercurocromo por vinho tinto, levantar um jogador lesionado com a grua manual. Mas a que todo o barragista conhece, registada por H. Pinto (2012: 44) é a da disputa da bola entre um operário e um engenheiro, em que depois de tomar a bola, o operário pára e diz:

‒ Chute chute, senhor engenheiro!

Os livros de memórias evidenciam os episódios mais caricatos ou expressivos das diversas personalidades dos jogadores, ora evidenciando o talento para jogar, ora evidenciando as diferenças de classe nas rotinas. Mais importante do que a equipa, era o indivíduo e as suas particularidades. As festas permitiam à população da obra estabelecer diferentes patamares de laços identitários: as pessoas do Minho ou do Algarve, as pessoas de Picote ou de Duas Igrejas, as pessoas da obra, quer se fosse engenheiro ou operário. Para a Guida, uma das festas mais bonitas do Barrocal era a o do baile da Pinhata. Tinha sido trazida de fora:

E havia o baile da Pinhata! Não havia em lado nenhum baile da Pinhata como aqui! Isso era na Páscoa. Arranjavam 25 pares, de pessoas, era rapaz e rapariga, e arranjavam a pinha, uma pinha assim, de abrir, não sei se ouviu falar nisso, e ela tinha uma parte aqui, outra, tinha três partes. Uma levava as garrafas de champanhe e as garrafas para beber. A segunda levava bolos, e a terceira levava pombas. E depois levava muitos fiinhos, muitos fiinhos, e

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havia uma que estava agarrada ao meio. E então começavam a fazer aquele sorteio, e o rei, faziam mesmo assim, umas coroas… aquilo era lindíssimo! E vinham pessoas de Bragança, tinha uma fama, aqui o Barrocal do Douro, o baile da Pinhata, foi a coisa mais linda que se aqui organizou. E então a pinha estava no teto, começavam então os rapazes, dançavam, o par número um, a fitinha marcada, número dois, e tudo, punham lá o dedo, um, dois, três, trc! aquele que ficasse lá entalado era o que era o rei. Uma capinha abria, os pombos fugiam, os bolos saíam, eram postos em cima de uma mesa, e as garrafas de champanhe, olhe, aquilo era lindo, lindo, lindo, lindo. Olhe, eu digo-lhe uma coisa, em muitos lados fazem o baile da Pinhata e nunca o fizeram como aqui… ainda é do meu tempo, isso. Na Páscoa. Na semana da Páscoa, na Semana Santa. Falavam muito, ui! … Na Semana Santa baile… não faz mal nenhum, é no Sábado de Aleluia, outras vezes eles faziam no Sábado Aleluia, e no outro Sábado, ou / … /. Que eles costumavam fazer. Ah, não faz mal, isto já estamos próximos de lá, não faz mal, diziam, a rapaziada nova, a havia muuuuita! rapaziada nova… agora por acaso, alguns foram para a França, outros foram emigrar para Lisboa, outros foram para isto, outros foram para aquilo, … outros foram para a Suíça, …

‒ Esse baile da Pinhata existiu sempre cá? ‒ perguntei.

‒Não. Isso foi um senhor que lhe chamavam o Zé Manel, que trouxe de Setúbal para cá. Ele veio para cá trabalhar e é que começou a falar do baile da Pinhata, e ele começou a orientar. Depois começou a fazer-se em Miranda, e tudo, que pronto, toda a gente achava muito bonito, o baile da Pinhata, e começaram a fazer o baile da Pinhata em Miranda, mas mais tarde depois daqui.78

Se para a Guida esta era a festa mais bonita, para Henrique Pinto eram os jogos as ocasiões mais significativas. Para A. M., as festas eram ocasião para colocar as populações em harmonia. Quando ele foi para a barragem do Carrapatelo organizou uma procissão por ocasião das festas de Santa Bárbara (padroeira dos mineiros) porque a população estava desconfiada dos barragistas. Segundo contou, isso relacionava-se com os tempos da

78Entrevista gravada no adro da capela de Picote, Margarida Vale, Guida do Neca, Barrocal do Douro, 27

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construção do caminho-de-ferro, ocasião em que algumas raparigas tinham ficado grávidas de trabalhadores.79 A festa quebrava essa desconfiança.

Aos domingos havia bailes. Ao princípio pagava-se a um músico, e era ali que se conheciam raparigas, que se conversava, que se armavam as brigas, quase sempre resultantes do consumo do vinho.

As rotinas devidas às refeições eram determinantes na estruturação do tempo e do espaço. O almoço gerava grande movimentação não só no estaleiro, como em toda a obra. Justiniano, que como se sabe, era pincho levava uma taleiga às costas com a merenda. Lázaro ia a casa comer o caldo de batata. Para ele, a sopa do refeitório, que tinha toucinho, não era pior. Em muitos casos, as mulheres percorriam a pé a distância até à obra para levar o almoço aos maridos ou outros familiares. Nuns casos almoçavam então juntos. Nem todos podiam pagar as refeições servidas no refeitório.

Todos os testemunhos recolhidos coincidem: havia gente sofrendo de fome. A muitos valia-lhes o padre Telmo, com leite em pó e outros alimentos. Guida lembrava-se de nunca ter comido queijo e querer um pouco do que o padre Telmo distribuía.

Eu vou-lhe dizer uma coisa, eu tinha para aí oito ou nove anos, estava aqui o padre Telmo, e davam queijo, e davam leite em pó, às pessoas mais pobres. E eu também era pobre. Os meus pais também não viviam muito bem, mas vivíamos sempre com a sopa e com o pão, e nunca nos faltou essa comida. Mas havia muitas pessoas que então não tinham nem sopa! … e então iam lá buscar o queijo e o leite. E sabe que eu, que um dia deu-me umas saudades e eu, e digo, ‒ eu também gosto de queijo, e nunca tinha comido queijo… e diz assim a minha mãe, diz assim uma moça minha amiga, ‒ …Vamos lá acima buscar, eu vou lá acima buscar, que a minha mãe mandou-me, - … então vou contigo. Cheguei lá e disse assim: ‒ Olhe, também queria assim um bocadinho de queijo, muito pouquinho, que eu gosto, mas queria pouquinho… Ele corta-me assim uma tirinha de queijo, que era daquele de barra, e deu-me dentro de um saquinho de plástico. Eu cheguei a casa, com um bocadinho de pão, muito pouquinho, que eu disse-lhe que queria pouquinho, cheguei a casa com aquilo, e diz a minha mãe: ‒ Ah!, onde é que foste buscar isso?! Digo assim: ‒, Ó mãe, foi ao senhor Luís Esteves, e trouxe este bocadinho de pão também! ‒ Vai já levar isso imediatamente! Porque há pessoas pobres e nós temos a sopinha e o pão para comer!, Vais lá levar isso! Sabe o que é que eu fiz? Fui-me pôr debaixo de uma

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giesta, por detrás de uma giesta, comi o queijo, comi o queijinho todo, o pão botei-o ao chão, assim para a terra, cheguei a casa e diz a minha mãe: ‒ Foste lá? ‒ Fui, sim senhora. E eu sempre a dizer, é que eu gosto muito de queijo, nunca tinha comido. E é por isso que eu hoje sou uma gulosa por queijo, sabe? Qualquer queijo que não seja salgado me serve bem. Eu adoro queijo. Naquele tempo, eu gosto daquilo, eu nunca tinha provado queijo.80

Havia diferenças entre quem não tinha nada. Comer um caldo com o que havia na horta (as couves, as batatas), era melhor do que passar fome. A fome operária não era igual à pobreza da população local, que dispunha de terra e dos animais. Talvez por este motivo o padre Telmo afirmava serem as aldeias mirandesas fartas. A sua hesitação sobre o que se conseguiu com a construção da barragem, é a hesitação entre a pobreza local e o operariado que se constitui para modernizar o país. Para ele, que vinha de uma aldeia mirandesa, não há uma resposta para o que seria melhor para as populações. Os lameiros e a vinha, o azeite e o centeio, ou a eletricidade. Voltando a Justiniano:

O meu pai, por exemplo, trabalhava aqui na carpintaria da HIDOURO e vinha a minha mãe ou a minha irmã trazer-lhe o comer. Eu, durante muito tempo, trazia a taleigazinha com a merenda, para comer ao meio-dia, bacalhau frito, ou o que havia na altura, e depois ao meio-dia comíamos aquilo, vínhamos com a taleigazita às costas. E então era um corrupio de pessoas à hora do jantar, da aldeia de Picote e Vila Chã, para aqui, à hora do almoço, principalmente, a estrada nunca estava sem ninguém!, de pessoas que vinham aqui à obra trazer o comer. Inicialmente era assim. O refeitório era só para o pessoal da HIDOURO, só para o pessoal da empresa. E as pessoas que traziam o comer tinham que vir até uma certa hora, porque senão depois não podiam passar.81

80Entrevista gravada no adro da Capela de Picote, Margarida Vale, Guida do Neca, Barrocal do Douro, 27

de julho de 2010, 7’08’’.

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Para Justiniano as diferenças de classe também se viam nas refeições: muita gente levava a merenda – tudo o que se ganhava, especialmente se se trabalhasse para o empreiteiro, era para a família. E a Guida contou como gostava de pataniscas:

A minha mãe (cozinhava) era arroz, e … o que é que não era com carne! Arroz, e havia aqueles bacalhauzinhos que havia o quilo a sete e quinhentos, a minha mãe com aquelas postitas, coitadita! Fazíamos aquelas fritas que lhe chamam as pataniscas. Eu muito gosto daquilo! Ainda hoje eu gosto daquilo! Com um bocadinho desfiado, com um bocadinho de cebola, ai! E gosto delas sem ovo, só com aquela farinha, como se fazia antigamente.

‒ Antigamente não levava ovo? Era só o bacalhau desfiado?

‒ Não, não. Poderia levar quem tivesse mais nota. Mas na casa da minha mãe era só a farinha. Farinha, salsa, cebola, e a água, e os ovos não levava, e o bacalhau. Fritava-se aquilo bem fritinho, era tão bom! Era uma maravilha …82

Maria Fernanda emocionava-se:

No serviço social passavam-se uns maus bocados! … Criou-se a cantina escolar, o último grande edifício, a escola de um lado, um grande edifício ao meio, a cantina escolar. Portanto, quem requisitava as refeições era eu. Todos os dias faltavam muitos miúdos, porque eram cento e tal crianças, e faltavam miúdos. Acontece que as tigelas eram tigelas de alumínio, de um litro. A criança não comia uma tigela de um litro, era pouco mais de meio, algumas comiam, outras nem isso. (…) Passavam-se semanas que eu não ia à cantina. Chegámos à sexta-feira, era a altura de eu fazer a requisição, para a Legião Portuguesa, porque eram as cantinas dos trabalhadores eram geridas pela Legião Portuguesa. E a páginas tantas, começa a Maria Ermelinda a dizer: ‒ Maria Fernanda, tem de requisitar mais sopa. E eu disse: ‒ Não pode ser! Então, se nesta semana faltaram… - ai, faltaram, a sopa não chegou. E eu fui ver à listagem … Então faltaram tantas pessoas e a sopa não chegou?! ‒ Não pode ser! E não requisitava mais. – Esta tem que chegar! … Muitas crianças que… sopa que ficava nas panelas, nós ainda dávamos às pessoas, porque à volta dos bairros havia uma … uma… multidão periférica, em bairros de lata

82Entrevista gravada no adro da capela de Picote, Margarida Vale, Guida do Neca, Barrocal do Douro, 27

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que era uma coisa, era uma miséria medonha, e era … havia muitos miúdos que iam lá buscar … acontece que, um belo dia, a Dª. Lurdes, que era a senhora que estava lá, vem, a Maria de Jesus, a sopa não chegava. E vem a Dª. Lurdes: ‒ Senhora Dª. Maria Fernanda pode ir lá porque a Dª. Maria de Jesus diz … a sopa não chega. Que ainda faltam tantos miúdos …. – Os miúdos já começaram a comer? – Não. – Então, sopa toda para dentro das panelas! Eu já lá vou. E fui. E peguei numa tigela, e resolvi medir a sopa. E faltavam, nas duas panelas, quase 80 litros de sopa! Cada panela levava à volta de 100. E pronto e eu passei a escrever nas requisições, para a sede, para a Legião Portuguesa, anotações… falta isto, falta aquilo… e quando chegou essa hora, faltou isto, tanto… a Legião pagava em função daquilo que era consumido. 83

(…) Eu medi a sopa e disse: ‒ Faltam tantos litros. Ah, não lhe pagaram aqueles litros que faltaram. (…)

- Ah, mas alguém tem que pagar… e eu disse, pois, alguém tem que pagar, eu sei quem não paga, com a minha assinatura, a HICA não paga. E ele vira-se para mim, diz ele: ‒ Eu sei que a senhora (ele era da PIDE, e eu sabia) … Eu sei que a senhora usa de má-fé com a Legião Portuguesa.

‒ Ponha-se imediatamente lá fora! Eu sei que o senhor não cumpriu as suas obrigações!… Imediatamente para fora do meu gabinete! E pronto, quando isto se soube, na pousada à noite, eram todos … a senhora… eram os que comiam na minha mesa, eram seis pessoas na direção. Ai, vai de gancho! … Amanhã vai para Montalegre de certeza absoluta! … E um, eu levo uns chocolatinhos!…e outro, ela não aprecia muito chocolatinhos … o Joaquim Carvalho: ‒ Eu levo-lhe umas violetas! (risos) … mas não há dúvida nenhuma que o homem não recebeu. Eu recusei-me terminantemente. 84

Depois o engenheiro Machado de Lima ria-se e então? E o Flávio? … Eu já não sei o nome dele, era um homem que explorava alta e poderosamente os trabalhadores, na cantina. Pronto, e à hora de almoço vem uma multidão de

83Entrevista ao engenheiro Pereira dos Santos 17 de maio 2010, em sua casa, acompanhado de sua

mulher, Maria Fernanda, 44’52’’.

84Entrevista ao engenheiro Pereira dos Santos 17 de maio 2010, em sua casa, acompanhado de sua

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homens, direitos ao gabinete do serviço social, mais de 40 ou de 50, eu cheguei, abri, eu vim à porta e disse: ‒ Entram dois. Todos exaltados… – Então o que é que se passa? – Senhora Dª. Maria Fernanda, na cantina a sopa não se pode comer, é um cheiro a podre, uma coisa, pois, ele pôs ossos podres. E eu fiquei horrorizada, disse assim: ‒ Vamos lá ver isso! E vinha o carro buscar-me para me levar para a pousada e eu fui para a cantina e depois o motorista foi-me lá buscar. Quando cheguei, era um cheiro nauseabundo. Ele tinha lá ossos de vaca e não sei quê, e meteu tudo para a … era uma coisa horrorosa. – Ah, isso, eles queixam-se por qualquer coisa. – Não, não é qualquer coisa, este cheiro é nauseabundo! Eu quando entrei aqui deu-me vontade de vomitar! Não é ninguém, nem os animais comem uma coisa destas! … E os trabalhadores: ‒ Ai, em calhando, dão-nos na mesma! - Ai não dão não, não dá que eu venho cá! E assim foi. À hora de jantar o motorista foi-me buscar à pousada e eu fui, vim cá abaixo, e então fui recebida com uma salva de palmas dos trabalhadores: ‒ Dª Fernanda se fosse assim sempre, isto era uma maravilha! Não sei quê não sei que mais, e eu disse: – Como vê, a razão dos homens, eles tinham toda a razão! Tanto disseram o que estava mal, como dizem o que está bom, portanto se o senhor fizer o que fez agora, não tem razões de queixa. O homem não podia comigo nem por nada! 85

Os relatos de Maria Fernanda respeitantes ao seu serviço na HICA, repetiam-se em Picote, embora aqui sem a sua supervisão. É o padre Telmo que descreve no seu livro o modo como os restos eram deixados para os mais pobres.

Sempre que possível, traziam-se produtos da terra, para consumir nas festas ou simplesmente para matar a saudade.

O consumo alimentar marca diferenças entre indivíduos e entre os grupos sociais. Aqui tratava-se dum choque de universos divergentes. De um lado uma economia doméstica baseada na subsistência familiar. Por outro o desvirtuar da gestão alimentar baseada numa economia de escala.

Acima das injustiças parece ter estado a “Gabriela”, em Sendim. Todo o barragista por lá terá passado em alguma ocasião, para comer a posta mirandesa. Alimentados nos lameiros, os animais davam uma carne muito apreciada. Era grelhada em brasas provenientes das raízes de videiras velhas e das podas anuais. A posta era acompanhada

85Entrevista ao engenheiro Pereira dos Santos 17 de maio 2010, em sua casa, acompanhado de sua

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de azeite, vinagre, batatas, pão e vinho. Gabriela tinha estado em Paris e era a dona dum café e pensão. É descrita nos livros de memórias como uma mulher “com uma barba de fazer inveja a muito homem, sempre pronta a dizer palavrões” (CASTRO, 2008:67). Muita gente ali passou antes de rumar a Picote e ao estaleiro, em mulas, burros, que naquele tempo não havia outra forma de transportar as pessoas que estavam no estaleiro. Visitei a pensão da Gabriela em 2014. Quando cheguei a Sendim, foi fácil encontra-la. Havia dois edifícios, um mais antigo e outro mais recente onde agora está o restaurante. Mal entrei, vi a Gabriela, reproduzida num retrato que se encontrava por cima da lareira da sala.

O restaurante apresentava ícones da memória barragista, que estavam também assim construídos para dar conta da figura da Gabriela como roteiro turístico gastronómico. Pude assim compreender que existem vários motivos para parar naquele restaurante. A posta mirandesa é um prato servido em outros restaurantes na zona e a senhora que me atendeu assim o confirmou. Ela tinha um discurso

preparado sobre a confeção do prato. Mas eu queria dizer-lhe que sabia a história daquele retrato, e, ao fazê-lo, a atitude da senhora mudou. Compreendeu que eu estava percorrendo os lugares da memória barragista. Talvez por esse motivo, explicou-me que era neta da Gabriela e mostrou-me as panelas da avó, cuidadosamente guardadas na cozinha, que já não era a original.

As panelas estavam expostas e eu perguntei se ainda usavam as raízes de videira para fazer os grelhados. Disse que sim, fazia-se tudo como naquele tempo. A avó nunca tinha aprendido a mexer num fogão a gás, e deixou aos filhos e netos esse legado: a posta mirandesa, tal como Henrique Pinto referiu no seu livro.

Figura 77 : Gabriela. Sendim, 2014. Fotografia da autora.

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A sala está também decorada com uma aguarela representando os filhos de Gabriela. A neta contou-me que a avó morreu há 47 anos.

Depois do almoço, quis ver o edifício original da pensão onde agora existe um café que vende navalhas de Palaçoulo. Aí me sentei para tomar um café, no lugar por onde tanta gente passou em busca de trabalho. Aí ouvi também um:

‒ Donde bens tu, caramonico?

A criança entrou no café e foi a mãe que respondeu ao homem que a interpelou: ‒ Bem intxado. Intxasteo-o tu?, ‒ disse ainda o homem, mas a mãe já tinha entrado, atrás do seu “caramonico”. Lá dentro também se falava mirandês.

A HIDOURO responsabilizou-se pelo transporte dos trabalhadores a partir de certa altura, sobretudo depois de Picote, quando os trabalhadores se deslocaram para outras obras. A família e os filhos que entretanto aumentavam, determinavam muitas vezes que o trabalhador permanecesse numa delas, como residente e trabalhasse noutra (Bemposta, Miranda). Naquele tempo a posta era servida numa sala com uma grande lareira, em mesas com bancos corridos. Um grande pão de trigo, um jarro de vinho e uma tigela de azeitonas iniciavam a refeição. Todos os barragistas se lembram de Gabriela e do prazer dessa refeição.

Figura 80 Café onde era a antiga pensão. Sendim, 2014, fotografia da autora.

Figura 79 Lareira da pensão Gabriela, pormenor. Sendim, 2014, fotografia da autora.

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Sendim era o lugar onde se descarregava o cimento para a obra. Vinha em camiões Volvo, depois de ter chegado de comboio até ao Pocinho. As brigadas de trabalhadores que permaneciam nesta tarefa lidavam com o clima do lugar: temperaturas muito quentes no verão, muito frias no inverno. Existe uma delegação da AREP em Sendim, que realiza encontros e promove atividades.

Ao dar um passeio pelo largo, reparei numa loja, resolvi entrar. Dentro havia de tudo um pouco: toalhas de mesa, ferramentas, garrafões de água mineral com azeitonas lá dentro. A dona da loja exortou-me a comprar: que havia ali lindas toalhas de renda. Mas eu quis dizer-lhe que vinha em busca de um passado, e perguntei-lhe pela feira em Picote, nos