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Capítulo 2. O rio Douro

2.4. Uma construção política da paisagem

Os critérios para a escolha dos locais de implantação dos aproveitamentos do Douro internacional foram de ordem geológica, topográfica e económica. As albufeiras deste troço estão encaixadas num desfiladeiro, conhecido por canhão Luso-Leonês (APROVEITAMENTO, 1986:41), com margens pedregosas e muito escarpado, separando as zonas planálticas de Mogadouro e de Miranda das de Zamora. Em virtude da sua localização, estes aproveitamentos obrigaram à ampliação e beneficiação das estradas nacionais na área envolvente. O coroamento das barragens de Miranda e de Bemposta permitiram fácil acesso a Espanha.

A construção das barragens do Douro internacional modificou o ecossistema fluvial transformando-o num de lago. Existem duas ordens de espécies piscícolas, as sedentárias, constituídas por bogas, escalos e barbos, e as migradoras, como o sável, a savelha, a tainha, a enguia, a lampreia e o esturjão. Este último encontra-se extinto. As espécies sedentárias sofrem modificações importantes apenas no Douro nacional.

As espécies migradoras exigem a construção de eclusas para permitir a circulação das espécies. São incorporadas nestas barragens as eclusas Borland, usadas na Escócia, mas também em aproveitamentos europeus e americanos. São constituídas por uma câmara inferior e outra superior, ligadas por um poço vertical, com um sistema de comportas. Uma eclusada, ou ciclo completo de funcionamento, consiste numa primeira fase de pescagem (entrada dos peixes na câmara inferior), seguida do enchimento (ligação à albufeira), e finalmente a saída para a albufeira e esvaziamento (regresso à situação inicial). A pesca fluvial envolve muitos agregados familiares, em especial em Afurada, Foz do Douro, Porto, Valbom e Areínho.

Os meios mobilizados para a construção de uma barragem implicam vários tipos de ações: acesso às frentes de trabalho; abastecimento de água e energia; transporte de materiais e equipamento; alojamento de pessoal e seus familiares, com a respetiva assistência social; abastecimento de energia elétrica. Implica também uma derivação provisória do rio, para parte do seu leito, operação efetuada através da ensecadeira. No Douro internacional, a

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derivação fez-se através de galeria em forma de ferradura, escavada na rocha, numa das margens. Deste modo, foi possível pôr a seco de uma só vez todo o leito do rio:

Em Picote e Miranda as ensecadeiras de montante, com uma altura máxima de 30 metros, eram constituídas por abóbadas delgadas de betão, galgáveis, fundadas sobre socos maciços de enrocamento consolidados por meio de injeções. Previamente era cortada a corrente do rio por meio de um dique de gabions obrigando-o a seguir pela galeria de desvio provisório, então já construída; a montante deste dique eram lançados enrocamentos para permitir a cravação de cortinas de estacas pranchas que, conjuntamente com o enrocamento consolidado pelas referidas injeções, constituíam o solo ou infraestrutura da abóbada (APROVEITAMENTO, 1986:77).

Se na época do Marquês de Pombal a prioridade da navegabilidade era o comércio do vinho, nos anos 80 a navegabilidade do Douro ficou associada à produção de energia. Quem regularizou o rio? Quem entregou esta força indomável ao conforto dos lares e da evolução da indústria? O Bebe Água, motorista da Hidroelétrica do Douro; o Zé Pequeno, que transportava as pessoas de Sendim até Miranda do Douro. Mas também o Manga

Lavada, o Canetas, o Pardal sem Rabo, o Cavalinho de Luxo: motoristas,

administrativos, eletricistas e outros. Parte de um todo que constituía a obra, não precisavam de conhecer as opções estratégicas do país para se considerarem elementos essenciais de progresso e bem-estar. A eletricidade tinha entrado nas suas vidas em momentos de frio agreste, nos bairros pré-fabricados da obra, pela central elétrica de Castro, em Espanha. Ali ninguém tinha frio nas noites geladas e brancas do planalto mirandês. As casernas, bem como as casas desmontáveis, eram aquecidas. Para eles, o progresso estava dentro de casa, na obra, no talento dos engenheiros e das suas ordens. Uma equipa, como muitos entrevistados referiram, uma família, como alguns caracterizaram os barragistas.

Desta gente não nomeada nos discursos de inauguração ninguém falava. Só se depara com um parágrafo de uma publicação posterior da EDP, reportando-se ao livro que se tornou referência para todos os barragistas “O lodo e as estrelas”. Nele se afirma que a barragem começou com fúria.

Perguntei ao padre Telmo, se as barragens trouxeram progresso às aldeias. As aldeias mirandesas eram fartas, e as pessoas viviam felizes, contou-me mais do que uma vez. Se

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as barragens traziam esse progresso, sim, traziam, mas com elas vinha a fome dos que não conseguiam trabalho, as famílias desenraizadas do seu lugar de origem, a doença, a prostituição. Em volta desses protagonistas anónimos, as suas orações interpelavam Cristo, perguntava-se, num diálogo interior, que Cristo era este. Foi ele que celebrou a missa de inauguração da barragem de Picote. Provavelmente com o mesmo alheamento com que celebrou a missa em sua homenagem, ocorrida 60 anos depois, na sua aldeia natal.

O Zeca vomitou sangue. Um sangue vivo. Quase encheu um tacho! (…) Temos os mesmos nomes e a mesma vida, no nosso pequeno mundo – uma barragem. (FERRAZ,1985:11)

-Num queremos la corta… num queremos acá la barraige.

O Ismael tirou o boné. Começou a tremer-lhe o queixo. Os homens tiraram os chapéus e ficaram em sentido. As mulheres aconchegaram-se. E todos à uma, fascinados pela velha, exclamaram: - Num queremos la corta! Num queremos acá la barraige! (FERRAZ,1985:15).

O rio vai dourado; areia miudinha, barro e lodo, maravalhas limadas e, dizem, ouro diluído.

Cresceu, cresce e segue cada vez mais enfurecido. Enfurecido consigo próprio, com as rochas e os arbustos.

As arribas sufocam-no! Ele ruge e baba-se! Leão com raiva!

Quando as arribas, medrosas, se encolhem, ele espraia-se, descansa e perde- se em carícias pelas margens como um cordeirinho manso!

Os homens e a técnica fizeram um buraco enorme na margem direita.

Sentiu-se ferido. Desconfiou das cordas de aço, dos tubos, de tanto motor a rugir, de tantos homens e do tiroteio infernal, que a todo o momento lhe faz tremer a espinha.

Tomou peito, olhou as margens, galgou as ensecadeiras e… engoliu o buraco! Vingou-se. Quis mostrar. Deu uma lição.

Vi-o! Não o censurei. Tirei a boina e fiquei silencioso, a rever no seu dorso o pão de muita gente. Embora muito desse pão seja duro como as rochas que o apertam e enraivam (FERRAZ, 1985:25-26).

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