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Capítulo 4. Barrocal do Douro: etnografia de um bairro

4.2. No bairro

Dizia-me Lázaro que havia gente fugida no estaleiro da barragem. Não se sabia bem o que lhes acontecia, só que de vez em quando desapareciam.

Figura 73 Pormenor do bairro dos engenheiros, abandonado, 2013.

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Num território onde as pessoas se habituavam ao convívio com a diversidade de costumes, rotinas e trajetos pessoais, o silêncio resultante de prudência perpetua-se até aos relatos recolhidos atualmente.

Havia um posto da Guarda Republicana instalado perto do refeitório, recorda. Sabia-se que por vezes chamavam os trabalhadores, os interrogavam, acontecendo serem presos, ou torturados, algumas vezes voltavam à obra. João também mo confirmou, evocando como o seu amigo se “safou” num interrogatório em que lhe perguntaram se lia o “Avante!”, o jornal clandestino do Partido Comunista. Ele trocou o nome do jornal, “fez- se de parvo.” João sabia que havia no bairro um comunista que foi preso e torturado, seria quem tinha o jornal, e também fazia recolha de fundos para os presos políticos. Havia uma lista de quem contribuía, mas quando foram todos chamados a depor, deixou de existir essa lista. 66 A única revolta de que Lázaro se lembra foi quando levaram um trabalhador para o quartele se juntou ali uma multidão furiosa. Contou que essa revolta juntou a GNR de Moncorvo, Mogadouro, Miranda, Vimioso, Bragança, os capitães de Bragança:

Aquilo pareciam bailarinas, assim, de mãos no ar… na altura havia uma rádio, chamada Moscovo onde falavam os revolucionários. No dia seguinte essa revolução aqui já estava falada, consideraram aquilo uma revolução … uma revolta. Muito pessoal foi embora, e quem cá ficou baixou as orelhas. Entravam nas casernas de metralhadoras em punho, quem estivesse a espreitar pelas janelas todo o mundo saltava, despido ou como estivesse e toca lá para baixo a acompanhar a GNR… foi a revolução maior que houve aqui.67

Não se recordou do motivo que levou a esse tumulto, porque a maior parte das vezes os conflitos que aconteciam no bairro não se deviam a razões políticas, mas sim ao vinho. Naquele tempo as pessoas que vinham de fora viviam mal e estavam habituadas ao vinho verde, menos alcoólico do que o palheto. Aos domingos havia bailarico, e era em geral nessa ocasião que a bebida criava situações de conflito que depois se generalizavam. Conforme conta Justiniano, as desavenças resultavam quase sempre da diversidade de hábitos e de modos de falar. As pessoas vinham de muitos locais, e a forma de viver de cada região refletia-se aqui. O alentejano dizia palavrões mais ligeiros do que o

66João Nuno Pequito, entrevista realizada em sua casa, junho 2010, 44’35’’.

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transmontano, e isso era mal interpretado. Além disso havia as questões da fidelidade conjugal, outras vezes o vinho, ou simplesmente o ócio, davam origem a esses conflitos.68 Lázaro recorda conflitos entre gente de Picote e trabalhadores da barragem. Uns iam para um lado, outros para outro e depois brigavam, com o que estava à mão, como forquilhas, roçadouras, até chegar alguém que acalmasse os ânimos. Em regra era gente da empresa que chamava a GNR, ou simplesmente apartava as partes em conflito.

Na opinião de Lázaro, as pessoas de Picote davam-se bem, mas a concorrência pelo trabalho criava animosidades com os de fora. De uma vez em que o conflito atingiu maiores proporções, um dado domingo, houve um enfrentamento em que os “coitaditos” de Picote passaram a “selvagens”. Os desacatos começaram pela tarde, e prolongaram-se até à noite, depois de os mediadores terem abandonado o local. Referiu um episódio ocorrido com um colega que ao regressar da taberna se viu envolvido numa luta, mesmo no estado já ébrio em que se encontrava. Chamavam o Mil e Dez para acabar com a briga, antes de existir GNR. Os envolvidos neste caso foram despedidos. A partir daí é que a GNR se instalou no bairro.69

Os moradores atuais do bairro vão frequentemente a Sendim ou a Miranda do Douro. As suas rotinas estão ligadas às dos filhos e netos. As suas posições na empresa foram melhorando ao longo do tempo, onde se mantiveram até à reforma e acabaram donos das casas em que vivem. As suas vidas foram melhorando desde aqueles anos 50. Lázaro reformou-se como telefonista, Justiniano como escriturário, Guida tem a pensão do marido falecido. Não tiveram filhos e o vencimento do marido chegava para os dois. Para estas pessoas, o bairro é o seu universo. Narram a sua história cada vez que chega gente da cidade. Os especialistas, os maiorais, são a prova de que o passado se presentifica em cada entrevista, em cada visita de estudo.

Nenhum destes residentes participa na festa anual dos barragistas que tem lugar em julho. Dizem que essa festa é dos mais novos, que foram embora, e que voltam todos os anos, por ocasião das festas de Santa Bárbara.

Quando se percorre o bairro, cada um dos moradores evidencia uma lembrança. Para Lázaro, era o trabalho de pá e pica e depois o lugar onde se encontravam as casernas onde foi plantão, que constituem o cerne das suas histórias. Mais tarde, quando perdeu a visão e a empresa lhe financiou o curso, tornou-se telefonista, e aí surgiram muitos episódios decorrentes dessa sua função. Tinha facilidade em decorar números, o equipamento que

68Entrevista gravada em 26 de julho de 2010, a Justiniano Pinto, Barrocal do Douro, em sua casa, 12’47’’. 69Entrevista gravada em 27 de julho de 2010, a Lázaro, Barrocal do Douro, em sua casa, 1h 09’32’’.

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foi posto ao seu dispor era moderno, foi um trabalho de que gostou muito. Disse-me com orgulho que o telefonista é a primeira cara de uma empresa. O rigor no trabalho foi o que mais vezes recordou, lembrando que se um trabalhador não fazia bem o seu trabalho era despedido. Pelo contrário, se fazia bem o que lhe estava destinado, podia progredir na empresa.

Guida contou muitas histórias de desentendimentos com familiares, mas os lugares que mais gosta de lembrar são aqueles onde decorriam os bailes.

As recordações de Justiniano centram-se nos diversos trabalhos que fez, desde pincho a empregado administrativo.