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Capítulo 4. Barrocal do Douro: etnografia de um bairro

4.1 Do Porto ao Barrocal: uma utopia realizada

O grupo de responsável pelo projeto do Barrocal do Douro era constituído por três arquitetos ao serviço da Hidroelétrica do Douro: João Archer de Carvalho (1928-), Manuel Nunes de Almeida (1924-) e

Rogério Ramos (1927-1976). Ainda na qualidade de estudantes participaram nas

ações da ODAM (Organização de

Arquitetos Modernos). Esta organização constituía o núcleo do movimento moderno na arquitetura, pautado pelas questões da produção em série, da nova tecnologia, da urbanística (CANNATÀ, 1997:25). Para estes arquitetos, apresentava-se aqui uma oportunidade de concretizar esse sonho

num lugar despovoado e inóspito. Abriram-se estradas, construíram as casas provisórias em basamento de granito, e depois a estação de tratamento de água.

O planeamento do bairro definitivo incluía estudo de espécies arbóreas compatíveis e outro para os percursos automóveis e pedonais. Incluía escolas, centro comercial, piscina, capela, pousada e habitações de três tipos: para o pessoal dirigente, para o pessoal especializado e para os trabalhadores.

As salas dos geradores foram desenhadas na dimensão estética de uma catedral românica. Entre 1954 e 1959, Luís Archer, já ao serviço da HIDOURO desde o ano anterior, fez as infraestruturas, com a equipa referida. O Movimento Moderno, mediado pela experiência brasileira e pelo racionalismo italiano encontrou aqui um território onde tradição e modernidade se fundiam, num diálogo entre os materiais antigos e novos, cumprindo o sonho futurista: a eletricidade como símbolo do progresso.

O cimento, o ferro e o vidro, convivendo com o granito, a ardósia, a madeira. Fora dos centros urbanos, neste lugar longínquo, os jovens arquitetos inspirados em Le Corbusier

62http://www.youtube.com/watch?v=hqLfpAOBnpk . Página acedida em 3 nov. 2013.

Figura 69 Vista do centro comercial. As colunas não eram assim na origem: foram colocadas recentemente, contra o gosto da Guida. Barrocal, 2014. Fotografia da autora.

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e W. Gropius, construíram a “cidade ideal”. A expressão que a Guida usava para descrever o bairro do Barrocal e que vinha da tese de mestrado anteriormente referida, adquiria aqui plena significação. Um ideal, uma cidade no meio de nada.

Não é imediatamente percetível essa vontade de utopia, quando se chega ao bairro. A capela, que é a primeira edificação para quem vem de Picote, está bem preservada, mantida pela Guida, que vai vendo quem chega para visitar o bairro e cuida da igreja. É uma construção minimalista, branca, contrastando com as casas nos arredores. A torre da capela, retangular, é visível de todos os pontos do bairro.

No interior, as esculturas de Salvador Barata Feyo: uma Nossa Senhora, um “Cristo magrinho”. Assim o designavam os trabalhadores, que viam aquela magreza pouco digna da personagem representada. Contava-se que era o “cristo magrinho da FNAT”, uma alusão à miséria em que muitos viviam. A capela faz parte do conjunto urbanístico planeado para trabalhadores e técnicos.

Antes a missa era rezada pelo padre Telmo, num barracão improvisado.

Depois da capela, o visitante tem três percursos possíveis: pela esquerda subirá até à pousada definitiva e ao bairro do pessoal dirigente. Se seguir em frente, percorrerá uma descida até à central de comando e à barragem. Do lado direito, um pouco abaixo da capela, está o que resta do bairro moderno.

Michelle Cannatà e Fátima Fernandes coordenaram a edição de um livro fundamental para se compreender a arquitetura das centrais hidroelétricas do Douro (CANNATÀ e FERNANDES, 1997).O espírito de vanguarda na arquitetura não pode separar-se da estratégia pensada por alguns setores para modernizar o país. Embora influenciada, desde os anos 1920 pelo espírito do modernismo, a arquitetura fez parte da estratégia de obras públicas protagonizada pelo Estado, onde Duarte Pacheco (1900-1943) teve um papel decisivo. O bairro construído para a barragem de Picote apresentava algumas especificidades que o constituem ainda hoje como referência do modernismo em

Figura 70 Vista da capela. Barrocal, 2014. Fotografia da autora.

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Portugal.63 Em 1997, quando o bairro foi redescoberto, já nada se parecia com o que aconteceu naquele tempo. O centro comercial, as casas do pessoal dirigente, a escola, estavam abandonadas, entregues aos caprichos do tempo. No que foi o referido centro comercial funciona agora uma pousada de juventude gerida pelo município. Na antiga escola existe hoje o bar do Clube de Pessoal da EDP, onde os moradores do Barrocal vão ao fim da tarde ou depois de jantar. Uma das salas de aula da escola tem uma mesa de

snooker e o quadro de ardósia permanece na parede, com escritos diversos.

A pousada e a piscina eram só para os “cartomantes”, para os “maiorais”.64 Guida

recorda-se que houve um período em que a pousada era de livre acesso, mas depois

fechou, e quando começou a ser

vandalizada, foi protegida até à sua recuperação. Na altura comentou que aquilo já não seria para eles:

‒ Os de baixo, os que não têm escada para subir …‒ Na realidade, assim aconteceu. A pousada encontra-se vedada ao público.

O conjunto planeado pelos arquitetos incluía a barragem, os equipamentos técnicos e a área residencial. Era um sistema autossuficiente. A utopia tecnológica era assumida nos terrenos selvagens e inóspitos, construindo uma realidade nova, urbana, civilizada e ordenada de acordo com uma postura vista como moderna. O arquiteto criava sem continuidade com o que já existia. Tratava-se dum artifício assumido que pretendia suscitar algo verdadeiramente novo.

As grandes naves subterrâneas, que alojam os geradores, foram concebidas sob uma ótica idêntica à que presidiu ao mobiliário da pousada: artificiais, belos.

A escolha dos sítios e o controlo das escalas na volumetria dos edifícios harmonizavam- se com a dimensão e características do território. Havia uma obsessão com o detalhe, usavam-se materiais caraterizadores do moderno: betão, reboco pintado, materiais cerâmicos, ferro.

63Vídeos sobre o Moderno Escondido: http://www.youtube.com/watch?v=mTndv_orq2s e http://www.youtube.com/watch?v=AiZEiKcJ_UU&feature=relmfu, in Ruínas de Portugal, imagem de Manuel Barreto e edição de Rui Gonçalves, 2011.

64Esta expressão, utilizada de forma recorrente pela Guida, designa os poderosos, os dirigentes. Tem

provavelmente origem nos westerns que passavam no cinema, durante a construção.

Figura 71 Pormenor do centro comercial (zona da padaria) agora com uma chaminé para churrascos. Barrocal, 2014, fotografia da autora.

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Encontrei nas arquiteturas das barragens do Alto Douro a mais radical manifestação da Modernidade que até hoje vi em Portugal (…) Primeiro a própria barragem, depois os equipamentos técnicos e finalmente as áreas residenciais. Todo este sistema se constitui de forma totalmente autossuficiente. Separa-se ostensivamente dos povoamentos existentes e dos terrenos lavrados, recusando qualquer relação funcional ou formal com essa realidade. Procura terrenos selvagens, agrestes ou pedregosos para sobre eles implantar o seu novo mundo de utopia tecnológica. Não se adivinham benefícios diretos para as populações, não se vislumbram reflexos de qualquer desenvolvimento local, nem é isso que importa. Trata-se de uma sociedade marginal, aposta, não sobreposta, moderna, civilizada, urbana, hierarquizada, de operários, técnicos e engenheiros de outras terras (COSTA, CANNATÀ, 1997:10).

O grupo de arquitetos do Porto inspirava-se no movimento Moderno. Aliando razão, paisagem e poesia, o plano urbanístico do Barrocal seguia os 5 sentidos corbusianos:nas casas dos engenheiros e na pousada podem observar-se alguns destes princípios. Os pilares (pilotis) elevam o edifício do chão, permitindo a passagem por baixo. As janelas

em fita aumentam a valia da paisagem. Agindo nesta matriz de inspiração, os arquitetos

planearam com os engenheiros os detalhes das construções, tendo em conta o terreno. A originalidade do conjunto do Barrocal ficou a dever-se ao talento destes arquitetos e engenheiros que concretizaram estas inspirações num diálogo permanente com a força e imponência da paisagem.

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Michele CANNATÀ (1997:23) refere o protagonismo dos arquitetos neste projeto, chamando a atenção para o diálogo que o conjunto de Picote evidencia, entre inspiração académica, atenção ao lugar, e preocupação social. Na realidade, aquele projeto é realizado para uma população migrante cuja realidade cultural é atravessada pelos lugares de origem e pela criação de identidades novas no contexto da obra. Pela primeira vez, a construção do parque de linhas é pensada em função do conjunto urbanístico planeado. E escolhe- se a zona planáltica que melhor dialoga com a paisagem, para construir o bairro. Na dissertação de mestrado em arquitetura de

Lídia Falcão (2009) 65 a autora chamou a atenção para o abandono em que se encontrava este conjunto e para a necessidade de o preservar:

O confronto entre a Cidade ideal que foi e a Aldeia Atual que é, mostra-nos a necessidade de sensibilizar aqueles a quem de direito e, acima de tudo, de dever, de forma a mover esforços que atuem sobre esta obra que se encontra parcialmente abandonada (FALCÃO, 2009:131).

Assumindo o progresso como criação do novo, materiais e estruturas misturam-se colocando o conhecimento da engenharia ao serviço da opção estética, partilhada pela equipa contratada pela HIDOURO.

65 Esta tese de mestrado analisa a política do Estado Novo no que diz respeito às obras públicas e ao debate

entre a ruralidade e a industrialização, contextualizando a intervenção arquitetónica no Barrocal do Douro.

Figura 72 Espreitadela para o interior da pousada: o mobiliário de origem. Barrocal, 2014, fotografia da autora.

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Os ritmos locais (a cadência das colheitas, as rotinas do pasto e dos lameiros), são anulados numa nova construção da paisagem, onde a técnica se constitui como o elemento de progresso protagonizado pelos novos deuses, os engenheiros. Desta forma, a pretexto do alojamento da população da obra, constrói-se a “cidade ideal”, pontuada pelas necessidades da eletrificação sonhada. O bairro inaugura um

começo do país que Ferreira Dias sonhou e Ezequiel de Campos visitou ainda: “… discretamente só, no seu automóvel de cor grená e a sua perinha branca por testemunha.” (PINTO, 2012:111) Feita a obra, os engenheiros e os arquitetos seguem o seu rumo. Para as grandes cidades, ou para as colónias.

O território do bairro constituiu-se como um lugar de memória. O planeamento e a concretização do ideal moderno, ligado ao sonho de industrialização e progresso, permaneceu na urbanização construída, mas não nas sociabilidades.

O visitante encontra agora as janelas das casas tapadas por guarda-sóis, o espaço doméstico adaptado às vivências de quem ficou: pequenos recantos de dálias, brinquedos de netos, sapatos. As casas são propriedade de trabalhadores da EDP que ali ficaram a residir. E cada um, de sua forma, conta como tudo foi acontecendo ou como era a vida naquele bairro.

Em cada casa, em cada aula ou visita de estudo, arquitetos e engenheiros recuperam a memória dessa utopia, desse bairro sem topos, porque o lugar da “cidade ideal” apenas existe na memória, nas fotografias a preto e branco. Na cor, na ruína há o desamparo que resultou da projetada cidade ideal.