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3.2 Primeiro bloco: a descoberta do corpo sexuado

3.2.2 Descoberta e uso do corpo sexuado

O segundo encontro foi realizado em 4 aulas de 45 minutos cada. Os elementos textuais que direcionaram as discussões foram: o conto “O Primeiro Beijo”, de Clarice Lispector (Anexo C), a tela Dânae de Gustav Klimt (Anexo D) , o poema “Danaé”, de Maria Lúcia Dal Farra (Anexo E) e “Ejaculação Precoce”, de Paulo Azevedo Chaves (Anexo F). O intuito foi refletir, para além dos aspectos biológicos presentes na iniciação sexual, sobre algumas cobranças sociais e culturais no que se refere ao início da vida sexual, problematizando juízos de valores desiguais atribuídos a homens e mulheres na sociedade.

No primeiro momento foi exibida uma cena32 de um episódio da série animada “Simpsons”, que ilustra uma compilação de alguns dos beijos mais famosos do cinema. Logo após foi entregue um pedaço de papel colorido a cada aluno/a e pedido que, sem a obrigatoriedade de identificação, escrevessem com uma palavra ou frase, algo relacionado ao seu primeiro beijo ou a um beijo especial do qual se recordassem, como sensações, sentimentos, estranhamentos ou qualquer memória trazida. Caso essa experiência ainda não tenha sido vivida, aconselhamos que o estudante escreva o que espera desse momento. Durante esse momento foi reproduzido o clipe da música33 “Beijo Bom” da cantora Paula Fernandes, uma vez que o estilo sertanejo/forró romântico foi um dos preferidos dos estudantes de acordo com o questionário aplicado. A música teve o intuito de proporcionar um momento de relaxamento e inspiração para a participação dos estudantes na escrita, como também marcar o tempo da atividade.

31 https://www.youtube.com/watch?v=cTsbN5n9N9w 32 https://www.youtube.com/watch?v=pB5gMmic_fM 33 https://www.youtube.com/watch?v=CtNNhXUYUZA

Ao término da reprodução da música, os papéis foram recolhidos e redistribuídos aleatoriamente entre os estudantes, de modo que cada um lesse o que o outro escreveu. Das respostas dadas pelos estudantes, 56% demonstraram a experiência do primeiro beijo como positivas, 17% descreveram a experiência do beijo como negativa e 27% não esboçaram julgamentos, apenas descreveram a situação. As respostas dadas pelos estudantes podem ser lidas no Quadro 4.

Quadro 4 – Respostas dadas pelos estudantes sobre a atividade referente à descrição do primeiro beijo.

RESPOSTAS POSITIVAS

“Foi atrás da minha casa, foi uma experiência boa, eu acho!” “Foi maravilhoso, me senti nas nuvens”

“Em uma brincadeira de salada mista, com uma pessoa bem especial” “Foi ótimo, maravilhoso!”

“Eu disse que não gostei, mas foi mágico, porque foi com alguém que eu gostava e que gostava de mim. Quando é com alguém que a gente gosta, não importa o jeito e nem o local, a gente se entrega naquele momento mágico”

“(...) foi muito engraçado. Foi com uma pessoa que eu gostava. A gente estava no parque de diversão e foi ótimo”

“Foi uma festa, foi muito bom” “Bom”

“Foi com 8 anos, foi muito engraçado. O menino bateu dente a dente e mim babou todinha. Eu tava me sentindo em uma praia kkk”

“Foi através de uma brincadeira

RESPOSTAS NEGATIVAS

“Horrível e emocionante, pois eu não sabia beijar”

“Foi em uma praça e foi bem estranho e tinha vários amigos olhando e gritando”

“Foi estranho”

“O meu primeiro beijo foi meio frustrante, molhado! Não foi bom!”

“O meu primeiro beijo não foi muito bom, porque como era o primeiro, eu não sabia beijar”

RESPOSTAS NEUTRAS “Foi um beijo normal e bem rápido”

“primeiro beijo foi debaixo de um pé de árvore e as formigas me mordendo” “Foi um beijo normal e bem rápido”

Fonte: Quadro produzido pela autora da pesquisa

Foi iniciada uma conversa informal sobre o significado do beijo nos relacionamentos interpessoais, o que permitiu aos estudantes um resgate de um dos momentos que marcam a descoberta do erotismo – o primeiro beijo. De um modo geral, a descrição sobre o primeiro beijo oscilou entre ser um momento mágico e, ao mesmo tempo, de estranhamentos devido à

falta de experiência. Os depoimentos sinalizaram uma descoberta prazerosa permeada de romantismo, curiosidade e emoção.

Esta atividade foi utilizada como motivação para a leitura do conto “Primeiro beijo”, de Clarice Lispector. Trata-se da narrativa de um adolescente que beija uma estátua e ao se dar conta disto, sente-se mais homem, devido a ereção que acontece durante o beijo. O conto versa de forma poética sobre a descoberta da sexualidade e a iniciação sexual através do beijo, o que permitiu, além de uma discussão sobre a descoberta da libido (perda da inocência) através do despertar para as questões do erotismo, um diálogo sobre as representações de masculinidade. Acreditamos que, por ser o primeiro texto mais longo da sequência didática proposta, alguns estudantes sentiram dificuldade de compreender toda a história do conto, sendo necessária uma explicação para elucidar dúvidas sobre alguns pontos da história.

Sobre as discussões na fase de interpretação, os estudantes apresentaram uma visão pouco essencialista, reconhecendo a descoberta da sexualidade como sendo algo mais aprendido do que inato ou biológico. Os estudantes entendem a existência de um desejo, enquanto necessidade ou algo mais instintivo (o que a Biologia explica como mediação hormonal), porém reconheceram que alguns comportamentos nessa descoberta partem de curiosidades e/ou imaginações ou repetições de comportamentos observados no meio social desde a infância, na família, na mídia ou em seus grupos sociais. Conforme Weeks (2000, p. 38), “embora o corpo biológico seja o local da sexualidade, estabelecendo os limites daquilo que é sexualmente possível, a sexualidade é mais do que simplesmente o corpo”. Para o autor, a sexualidade, além do nosso corpo físico, tem a ver com nossas crenças, ideologias e imaginações.

Após releituras de alguns trechos do conto “O Primeiro beijo”, os estudantes perceberam a metáfora entre as sensações de sede do protagonista e as sensações provocadas numa experiência sexual, e, embora tenham citado a palavra “ereção” para a elucidação do desfecho do texto, relataram que esta palavra lhes causava estranhamento por não ser utilizada com frequência ou naturalidade em seu cotidiano. Aproveitamos para discutir algumas questões acerca da linguagem adotada para a abordagem da sexualidade, uma vez que observamos algumas barreiras no uso de uma linguagem mais científica acerca da anatomia e fisiologia do

corpo nas questões sobre o aparelho sexual34, indicando possivelmente uma ausência dessas discussões, não só na escola, mas nas vivências pessoais em outros ambientes. A ausência do diálogo sobre o corpo e questões sexuais, com o passar do tempo, pode transformar-se em tabus que geram distanciamentos, medos e interdições, pois, como lembra Weeks (2000, p. 70), “a sexualidade é tanto um produto da linguagem e da cultura, quanto da natureza” (WEEKS, 2000, p. 70)

Um outro ponto que merece destaque refere-se às interpretações sobre a construção de masculinidade no conto. Na narrativa, fica subtendido que a masculinidade está ligada a questões de funcionamento biológico do sistema sexual, no caso a ereção. O fato de a autora mencionar que o protagonista se tornou homem depois da ereção, dividiu opiniões entre os estudantes sobre o que é ser homem. Alguns concordaram com a ideia de que a iniciação sexual poderia definir esta identidade, mas gradativamente foram atribuindo outras questões relacionadas ao convívio social, como a consciência de uma responsabilidade para com o outro, a iniciação do exercício do trabalho e posturas mais solidárias e maduras nos relacionamentos interpessoais. Na ocasião, as discussões também se encaminharam para as pressões sociais sofridas pelos homens, ao associar a masculinidade a uma virilidade obrigatória e incessante, em que precisam estar sempre dispostos ao sexo.

As discussões sobre as construções de gênero a partir do conto foram bastante positivas e permitiram uma reflexão sobre as influências históricas e culturais acerca da construção das nossas identidades, entendendo a não obrigatoriedade de seguir padrões normativos que em nada contribui para uma boa relação com o corpo e, consequentemente, para um bom convívio social. Sobre tais questões, Louro (2000) apresenta a ideia de que

[...] todos os machos e fêmeas biológicos devem ser submetidos a um processo de socialização sexual no qual noções culturalmente específicas de masculinidade e feminilidade são modeladas ao longo da vida (...). É através desse processo de socialização sexual que os indivíduos aprendem os desejos, sentimentos, papéis e práticas sexuais típicas de seus grupos de idade ou de status dentro da sociedade, bem como, as alternativa sexuais que suas culturas lhes possibilitam. (LOURO, 2000, p. 135)

Num segundo momento, com o intuito de ampliar as discussões sobre a descoberta da sexualidade, considerando que a masturbação constitui uma possibilidade para experiências

34 A autora Guacira Lopes sugere o uso do termo “aparelho sexual”, pois possibilita uma ampliação de sentidos e

a concepção da sexualidade numa dimensão prazerosa, de gratificação sentimental e física, onde a procriação deve ser uma consequência e um direito de escolha.

mais concretas com relação à iniciação sexual e redescoberta do corpo, foi projetada a tela Dânae de Gustav Klimt, que retrata a masturbação feminina. O quadro pode ser visualizado na figura Após uma rápida interpretação da imagem, foi lido por um dos estudantes o poema de mesmo nome, escrito pela autora Maria Lucia Dal Farra.

Figura 2 – Tela Dânae do pintor simbolista austríaco Gustav Klimt

Fonte: https://santhatela.com.br/gustav-klimt/klimt-danae-1907/

A partir do diálogo da tela com o poema, obtivemos interpretações sobre as expressões que compõem a pintura e suas relações com o prazer feminino também descritos nos versos do poema. Para alguns estudantes, a masturbação feminina foi entendida enquanto ato a ser realizado e/ou descoberto com o/a parceiro/o, enquanto, para outros, foi percebida como uma possibilidade de descoberta individual do seu corpo e erotismo.

Algumas interdições sobre a masturbação para mulheres foram exemplificadas através de situações vivenciadas pelas próprias estudantes, como a não aceitação dos maridos e/ou parceiros do ato da masturbação quando realizadas por elas, pois a entendiam como vergonhoso, promíscuo e associado à prostituição e ao pecado. Foi relatado por uma das alunas sua experiência pessoal sobre a educação diferenciada que recebeu com relação aos irmãos do sexo masculino, sobre a proibição de visualizar vídeos e/ou filmes com conteúdo sexual e/ou pornográficos, permitido apenas aos meninos.

Neste momento foi sugerida uma reflexão no que se refere a atitudes de dominação e controle sobre o corpo feminino, especialmente por parte dos companheiros e/ou dos pais.

Desde a infância, percebemos algumas regulações sociais associadas à existência de um modelo correto e adequado para a menina sentar-se, portar-se, vestir-se e até mesmo proibições sobre o tocar-se enquanto ato de autoconhecimento:

De todas as possíveis formas de atuação, cada sociedade elege algumas que constituem seu modelo e que vão se formando e transmitindo ao longo de sua história, ficando rigidamente estabelecidas como normas ou modelos de conduta. Esses padrões ou modelos não são os mesmos para todos os indivíduos, existem uns para o sexo feminino e outro para o sexo masculino, claramente diferenciados. (MORENO, 1999, p.29)

Destarte, os estudantes demonstraram entender a prática da masturbação enquanto comportamento natural, saudável e positivo, reconhecendo o corpo enquanto espaço de conhecimento, descoberta do prazer, satisfação pessoal e mecanismo potencializador da autoestima.

Após essa primeira discussão sobre a masturbação feminina, foi exibido a primeira cena (do minuto 2:07 a 6:14) do episódio 1 da série Sex Education, disponível na Netflix. Na cena, o personagem principal acorda de manhã, retira da mesinha de cabeceira um frasco de lubrificante, uma revista de nudez e um pacote de lenços, dispondo-os sobre a cama, indicando a pretensão de masturbar-se, quando é bruscamente interrompido pelo namorado da sua mãe que abre a porta do quarto por engano. A cena dialoga com o poema lido anteriormente, dando ênfase, agora, à masturbação masculina, ampliando a percepção sobre a diferença comportamental e sua relação com os significados atribuídos a homens e mulheres pela sociedade, suas regulações e implicações.

As opiniões se dividiram atravessados por um marcador de gênero. De um lado, mulheres que julgaram negativo o consumo da nudez feminina em revistas e/ou vídeos, e, do outro, homens que julgaram esta ser uma prática condicionada à fase da adolescência e, portanto, natural. Com relação à nudez masculina em revistas, as mulheres mencionaram achar sem graça e serem destinadas ao púbico gay. Após algumas falas, logo veio à tona o motivo da não utilização de material pornográfico para mulheres. Algumas alunas relataram o receio de haver um preconceito e repreensão dos parceiros, caso utilizassem este recurso em suas experiências sexuais, mencionando não se tratar de uma atitude de “mulher direita”. Assim, percebe-se uma nítida assimetria no que se refere à liberdade sexual em meninos e meninas, homens e mulheres permeando os relacionamentos e as práticas sexuais.

Encerrando este encontro, como motivação anterior à leitura do poema “Ejaculação Precoce”, de Paulo Azevedo Chaves , foi realizado o jogo da forca35, com intuito de brincar um pouco com o título do poema. Assim, a palavra que os estudantes tentaram descobrir foi ejaculação. O jogo permitiu um diálogo sobre alguns aspectos da fisiologia humana relacionados ao comportamento sexual humano, como a ejaculação e a masturbação, despertando interesse e dúvidas sobre estes processos em homens e em mulheres.

Logo em seguida foi lido o poema que apresenta um diálogo sobre a experiência de um/uma profissional do sexo que se depara com um cliente que ejacula logo no início do programa, enquanto praticavam sexo oral. Ela é fortemente repreendida pelo/pela companheiro/a de trabalho por ter deixado tal coisa acontecer e correr o risco de não receber o seu pagamento. A leitura do poema provocou risadas e um momento de descontração, devido à presença de alguns termos populares no texto, tais como “mona burra”, “pinto mole” e “bofe”.

A leitura assumiu duas vias, a de expandir conhecimentos biológicos e termos científicos ligados ao sistema sexual e, para além disso, a de conduzir reflexões de cunho mais social e cultural sobre a prostituição. Os versos permitiram aos estudantes transitarem sobre a identidade do eu lírico no poema, gerando curiosidades sobre sua orientação sexual e configuração de gênero. Foi pertinente, a partir das dúvidas e necessidade dos estudantes em conhecer a voz que experencia esse lugar de prostituição no enredo do poema, debater sobre minorias invisibilizadas que, por não conseguirem espaço social, acabam assumindo profissões marginalizadas, como a prostituição. Através do debate e encontro desse leitor com outras realidades, propiciamos a construção de novos sentidos para com a realidade descrita no texto no que se refere à multiplicidade de identidades sexuais, nesse caso, estabelecendo paralelos entre a identidade dessas pessoas, sua posição na hierarquia social e a necessidade de sua valorização e visibilização, uma vez que

[...] combater as hierarquias de gênero não significa apagar todas as diferenças. Igualdade entre as pessoas não é anular as nuances e as diferenças

35 O jogo da forca é um jogo em que o jogador tem que acertar qual é a palavra proposta, tendo como dica o número

de letras e o tema ligado à palavra. A cada letra errada, é desenhada uma parte do corpo do enforcado. O jogo termina ou com o acerto da palavra ou com o término do preenchimento das partes corpóreas do enforcado. Para começar o jogo se desenha uma base e um risco correspondente ao lugar de cada letra. O jogador que tenta adivinhar a palavra deve ir dizendo as letras que podem existir na palavra. Cada letra que ele acerta é escrita no espaço correspondente. Caso a letra não exista nessa palavra, desenha-se uma parte do corpo (iniciando pela cabeça, tronco, braços…) O jogador (que está tentando adivinhar a palavra) pode escolher entre falar uma letra ou fazer uma tentativa perigosa de tentar adivinhar a palavra falando a palavra que pensa que é.

existentes entre elas, mas garantir que tais variações não sejam usadas para se estabelecer relações de poder, hierarquia, violências e injustiças. (LINS et al., 20016, p. 24).

O poema Ejaculação Precoce permitiu uma aproximação dos estudantes com a poesia por meio de uma linguagem popular na qual se descreve uma situação presente em seus cotidianos e/ou imaginações. Além disso, as discussões se encaminharam para uma análise sobre uma prática cultural ainda vista atualmente e presente no contexto dos estudantes – a iniciação sexual em prostíbulos, especialmente para meninos. Alguns estudantes associaram o incentivo à prostituição envolvendo menores ao fato de alguns pais sentirem necessidade de uma afirmação da masculinidade do filho e, muitas vezes, forçarem uma experiência dos filhos com prostitutas, por temerem a possibilidade de uma identidade homossexual. A esse respeito Louro (2003, p.134) explica que “processa-se uma naturalização – tanto da família como da heterossexualidade – que significa, por sua vez, representar como não natural, como anormal ou desviante todos os outros arranjos familiares e todas as outras formas de exercer a sexualidade. Por outro lado, no que diz respeito às mulheres, a cobrança sobre a construção da identidade sexual, conforme constatado entre as estudantes, ocorre em sentido oposto, ou seja, de interdição e resguardo sobre as questões do sexo e de seus corpos.