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3.2 Primeiro bloco: a descoberta do corpo sexuado

3.2.3 Virgindade e primeiras experiências sexuais

O terceiro encontro, realizado em 4 aulas de 45 minutos, teve como elementos textuais o conto “Primeiras Vezes”, de Natália Borges Polesso (Anexo G), a crônica “Antes à tarde do que nunca”, de Paulo Prata (Anexo H), e a canção “Amor e Sexo”, de Rita Lee (Anexo I), que dialogaram com os encontros anteriores adentrando em discussões sobre virgindade, identidades sexuais não normativas e possíveis interdições marcadas pelo gênero, de modo a ampliar as discussões sobre o corpo e sexualidade .

Num primeiro momento, como motivação para a leitura do conto, foi exibida a reportagem36 (14 min e 09s) sobre Catarina Migliorini – a brasileira que leiloou sua virgindade. A finalidade foi perceber que discursos e tabus permeiam as concepções dos estudantes sobre

a função social do sexo, partindo de uma vivência real e não convencional, protagonizada por uma mulher.

A intenção do vídeo não foi incentivar atitudes como a de Catarina ou mesmo tentar convergir ideias para um modelo ideal de iniciação sexual, mas fazer os estudantes refletirem sobre a multiplicidade de construções identitárias existentes, a diversidade de percepções sobre o corpo, o sexo e sexualidade e, consequentemente, fomentar uma constatação de que as diferenças, sejam quais forem, devem ser valorizadas e não hierarquizadas ou classificadas.

Nas discussões subsequentes, observamos entre os estudantes algumas falas permeadas de preceitos morais, e, em alguns casos, de cunho religioso, que não podem ser considerados unívocos, uma vez que contribuem para padronizar as vivências e os modos de ser dos indivíduos. As primeiras impressões dos estudantes sobre a atitude de leiloar a virgindade da protagonista do vídeo variaram desde sentimentos repulsivos, como dito pela estudante I, ao falar a palavra “nojo” no final do vídeo, ou do julgamento da aluna N que disse não passar de puro exibicionismo a atitude de Catarina, até entendimentos mais amplos como e existência de uma motivação financeira ou um desejo de projeção na mídia.

Vale salientar que as vozes femininas entre os estudantes foram as mais repressoras no julgamento da atitude de Catarina Migliorini, obviamente por serem maioria na sala, mas também por consequência de todas as interdições contidas nos vários discursos, seja o médico, o religioso ou o familiar, e que influenciam na formação de uma opinião pública mais tradicional e repressora com relação à liberdade sexual feminina. Ainda é recorrente o pensamento de que o sexo, quando não praticado convencionalmente dentro de uma relação estável, é algo perigoso e corruptor, especialmente para as mulheres.

Por isso, um trabalho de educação sexual deve permitir a discussão sobre os vários juízos de valor atribuídos ao sexo, problematizando concepções unilaterais sobre sua função e importância para uma vida saudável e prazerosa. Segundo Focault (2017, p.27),

[...] deve-se falar do sexo, e falar publicamente, de uma maneira que não seja ordenada em função da demarcação entre o lícito e o ilícito, mesmo se o locutor preservar para si a distinção (...); cumpre falar do sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo. O sexo não se julga apenas, administra-se (...).

Alguns estudantes do sexo masculino julgaram a atitude de leiloar a virgindade, como original e legítima, justificando que as mulheres também podem fazer do corpo o que julgarem

necessário, assim como é comum no universo masculino. Porém, devemos lembrar que, para alguns homens, a atitude das mulheres em vender o corpo para fins sexuais é uma prática presente há muitos séculos na cultura brasileira e outras culturas, e também, amplamente aceita no universo masculino. É possível que, por serem as ofertas de serviços sexuais femininos, na maioria das vezes, destinadas aos homens, exista uma percepção menos repressora no que se refere ao leilão da virgindade protagonizado por uma mulher no vídeo exibido, pois, apesar de a jovem mencionar na reportagem que aceitaria lances tanto de homens quanto de mulheres, a maioria das ofertas foram do público masculino.

Dando prosseguimento aos debates, as alunas Q e T mencionaram proibições advindas dos pais e/ou namorados no que diz respeito ao controle da vida sexual delas e de/em seus relacionamentos interpessoais, justificadas pelas figuras masculinas, segundo as alunas, como um cuidado e preservação de um estado de pureza e docilidade dirigidas a elas. A aluna Q mencionou ser proibida de sair de casa por seu pai na adolescência, enquanto a aluna T disse que seu marido não a deixava sair desacompanhada por medo de que algo a acontecesse. Esse pensamento dos homens nos remete a uma concepção essencialista de que à mulher cabe o domínio do privado e de controle. De acordo com as ideias de Scholz (1996), ocorreu um processo científico de “controle da natureza” como tendência em domesticar a mulher como “ente natural”, ou seja, fazer com que a mulher como representante da natureza levasse uma ida serena, doméstica e controlada pelo patriarcado.

Voltando às discussões sobre o vídeo, foi sugerida uma reflexão sobre a diferença de valor dada entre o corpo feminino e masculino quando tratados como objetos vendáveis, como no caso dos leilões de virgindade e/ou prostituição. Embora não percebido/comentado pelos estudantes, o valor inferior oferecido como lance ao jovem do sexo masculino em comparação ao oferecido às meninas, mencionado durante a reportagem, nos leva à conclusão de que, aos olhos da sociedade, a mulher representa um “produto” mais vendável e de maior interesse nesse tipo de negociação.

Corroborando a ideia de classificação do corpo feminino como um objeto de maior valor, e, por isso, de um corpo mais sujeito ao controle e à objetificação, os estudantes julgaram vergonhoso o fato de mulheres procurarem por sexo e justificaram o fato do homem tornar-se um “produto” menos vendável pela pouca procura feminina e pelas questões já discutidas anteriormente sobre o status de pureza relacionado ao corpo feminino. As posições assumidas no que se refere ao valor atribuído ao masculino e ao feminino, seja no âmbito do senso comum

ou legitimada pela linguagem científica ou por diferentes matrizes religiosas, nos contextos mais conservadores, são justificadas pela biologia e fundamentalmente pelo sexo anatômico (LOURO, 2012).

Após as discussões realizadas acima, iniciamos a leitura do conto “Primeiras vezes” de Natália Borges Polesso. O conto relata duas experiências sexuais da personagem principal, uma com um homem e a outra com uma mulher. Sem deixar muito claro ou dar ênfase sobre a orientação sexual da personagem, a autora concentra a narrativa em problematizar a iniciação sexual e/ou sua cobrança por parte da sociedade.

Ela descreve as sensações, emoções e frustrações da personagem, fazendo um paralelo entre suas expectativas e a realidade vivida em ambas as experiências.

O texto conduz a uma reflexão sobre a construção das nossas identidades, inclusive sobre a nossa orientação sexual e constitui um terreno muito fértil para reflexões sobre as oposições e/ou entrelaçamentos entre as concepções biológicas e as construções culturais nas explicações do comportamento humano, visto que, “através de processos culturais, definimos o que é - ou não - natural; produzimos e transformamos a natureza e a biologia e, consequentemente, as tornamos históricas”. (LOURO, 2000, p.11)

No momento da leitura do conto foi reproduzida a canção “What´s up”37 (Anexo J) da banda 4 Non Blondes, mencionada nas imaginações da personagem principal do conto ao relatar como teria sido sua primeira vez. A canção teve o intuito inicial de criar uma atmosfera agradável e envolvente durante a leitura e fomentar ideias sobre as discussões realizadas a partir do conto. De acordo com Colomer (2007), é preciso criar espaços de leitura compartilhada nas classes, enquanto lugares privilegiados para apreciar com os demais e construir sentidos para o texto. Segundo a autora, esse tipo de procedimento incentiva o sentimento de pertencer a uma “comunidade interpretativa”, que constitui um mecanismo básico para aprender a desfrutar de formas literárias consideradas mais elaboradas, pelas instâncias de legitimação crítica.

Na medida que prosseguirmos com a leitura, a canção foi pausada a partir do trecho: “Ele não tinha rádio. No rádio não tocava 4 Non Blondes (...)” presente na quarta página do conto (correspondente à página 17 do livro Amora). Após a leitura deste parágrafo, a canção foi reiniciada e novamente pausada no trecho adiante: “O Voyage não tinha rádio, por isso, não tocava 4 Non blondes” presente na sexta página do conto (correspondente à página 19 do livro

Amora). Esse recurso despertou no leitor a sensação de quebra do romantismo idealizado no imaginário popular para a “primeira vez” e proposto pela autora no enredo do conto, e viabilizou a discussão sobre as expectativas e/ou frustações que envolvem a iniciação sexual.

Após a leitura, o primeiro ponto discutido foi o fato de a protagonista ter mentido sobre sua virgindade, escondendo sobre nunca ter tido uma experiência sexual. As colocações dos estudantes convergiram para a ideia de que a idade da personagem (17 anos) já estaria muito avançada para ainda ser virgem, o que pareceu contraditório, dado o perfil conservador da maioria dos estudantes, visto até este momento. Aliado a este fato, alguns estudantes julgaram ser incômodos os comentários de amigos/as, parentes e terceiros sobre suas vidas sexuais, traduzidos em cobranças sobre a necessidade da iniciação sexual.

Os estudantes mencionaram que em suas comunidades e no ambiente escolar já haviam sofrido pressões no que se refere à construção de uma identidade heteronormativa, sendo “chamados” de gays e lésbicas pelo fato de não serem vistos com namoradas/os, o que aponta que a prioridade exigida pela sociedade não seria apenas a perda da virgindade, mas a afirmação de uma identidade heterossexual. Esse quadro expõe dois problemas graves. Primeiramente, o fato de a homossexualidade ser considerada um mal e, por isso, ser usada como motivo de chacota e ofensa e, em segundo lugar, o fato de haver uma cobrança excessiva sobre o início da atividade sexual a qualquer custo, sem considerar as especificidades, vontades e necessidades de cada um/uma. Louro (2000, p. 27) complementa o contexto dizendo que

[...] as coisas se complicam ainda mais para aqueles e aquelas que se percebem com interesses ou desejos distintos da norma heterossexual. A esses restam poucas alterativas o silêncio, a dissimulação ou a segregação. A produção da heterossexualidade é acompanhada pela rejeição da homossexualidade. Uma rejeição que se expressa, muitas vezes, por declarada homofobia.

Quando perguntado sobre a orientação sexual da personagem, alguns estudantes julgaram como equivalentes as duas experiências sexuais da personagem – a heterossexual e a homossexual, entendendo-as como uma curiosidade ou fator que pode ser despertado ao longo das vidas e que teria como causa muito mais a reprodução de modelos comportamentais que presenciaram, do que a possível existência de uma orientação para a bissexualidade. No entanto, alguns estudantes tentaram propor uma origem para o comportamento lesbiano da personagem. A aluna P disseque poderia ter sido fruto de uma decepção amorosa anterior com homens e a

aluna N levantou a hipótese de que a personagem sentisse a necessidade de um relacionamento mais carinhoso e afetivo que não havia sido satisfeito com homens.

Esse resultado sugere uma tentativa de negação para a existência das identidades homossexual e/ou bissexual, uma vez que os estudantes sentiram a necessidade de buscar uma “causa” ou “origem” para essas orientações sexuais como se não fossem legítimas ou naturais. Esse entendimento nos remete à ideia concebida até o final do século de que a homossexualidade seria uma patologia, tanto que o termo utilizado até então pelos médicos era “homossexualismo”, palavra que teria uma conotação de doença ou algo a ser tratado ou curado.

Num terceiro momento, foi reproduzida a canção “Amor e Sexo”, da cantora Rita Lee, que teve duas finalidades, a de propiciar um momento de relaxamento e a de reflexão sobre as ideias que permeiam o imaginário dos estudantes sobre o amor e sobre o sexo. Alguns estudantes mencionaram a impossibilidade do sexo sem o amor, já outros mencionaram poder haver uma perfeita divisão entre os dois aspectos da sexualidade, classificando o sexo no âmbito de uma necessidade fisiológica e o amor no âmbito da subjetividade e da carência emocional. O intuito sobre a análise da letra foi o de conversar sobre as múltiplas possibilidades para as relações interpessoais, sugerindo que o importante para a iniciação sexual é a nossa relação individual com o corpo e o entendimento de que todas as formas de relacionamento precisam ter como princípio o respeito a si e ao outro, o que as torna legítimas e saudáveis.

Num quarto momento foi feita a leitura da crônica “Antes à tarde do que nunca”38, de Paulo Prata. O texto proporcionou uma leitura agradável através de uma mensagem positiva e de quebra de tabus sobre o sexo. A crônica discorre de forma natural e bem humorada sobre uma experiência de iniciação sexual. O narrador demonstra uma certa aflição por não conseguir perder a virgindade e utiliza metáforas para descrever sua primeira relação sexual que foram bem compreendidas e aceitas pelos estudantes. A leitura, realizada pela aluna J, gerou um momento de descontração e comentários de reconhecimentos com as cenas descritas.

Esse clima de intimidade com o texto provou mais uma vez para os estudantes que a literatura não é algo que está desconectado de suas realidades, como também que a ela pode proporcionar momentos de profundo prazer e fruição e, ao mesmo tempo, nos fazer refletir e ampliar nossas visões de mundo, através de uma experiência de leitura. O autor Silva (2006)

afirma que a literatura desprende o leitor das dificuldades e imposições da vida real, de modo a renovar-lhes a percepção e mundo e permitir que a este seja dada não só a oportunidade de ouvir, mas de falar de assuntos vistos sob o ponto de vista da subjetividade.

Para finalizar este primeiro bloco de questionamentos sobre a descoberta da sexualidade e o uso do corpo sexuado, foi realizada a brincadeira da “cápsula do tempo”. Foi levada uma cápsula39

onde foram guardadas respostas que os estudantes escreveram para a seguinte pergunta: “Se você pudesse voltar no tempo, no quesito sexualidade, que conselho você daria a si mesmo na infância ou antes da sua primeira vez?”. Foi entregue um cartão colorido (verde para os meninos e laranja para as meninas) e pedido que, sem a obrigatoriedade de se identifiquem, escrevessem suas respostas e depositassem dentro da cápsula. Foi usado um critério de cor para a distribuição dos cartões com intuito de diferenciar as respostas masculinas e femininas na posterior coleta de dados. As respostas foram socializadas no último encontro desta sequência.

O objetivo dessa atividade foi fazer os estudantes refletirem sobre suas identidades, bem como sobre possíveis pressões sociais que sofreram durante a infância e/ou adolescência na construção da sua sexualidade. A pretensão foi que os estudantes percebessem a transitoriedade das construções identitárias, bem como naturalizações socialmente construídas e que, muitas vezes, se traduzem em modelos a serem seguidos com relação ao nosso corpo e sexualidade e que, geralmente, se diferenciam entre homens e mulheres.

3.3 Segundo bloco: A identidade feminina como campo de descobertas, interdições e conflitos de gênero.

Esse bloco foi dividido em três encontros, cada um composto de 4 aulas de 45 minutos, totalizando 12 aulas. Os objetivos deste bloco de atividades foram dar visibilidade às expressões da sexualidade feminina, enquanto instrumentos de empoderamento e liberdade sexual; discutir sobre configurações culturais machistas, motivando a quebra do silenciamento da mulher frente a relacionamentos abusivos e/ou repressores; desestabilizar argumentos baseados em essencialismos que naturalizam práticas culturais machistas e legitimam a violência; refletir

39 Sugestão: A cápsula foi confeccionada a partir de uma embalagem cilíndrica usada nos salgadinhos Pringles,

fáceis de encontrar em supermercados. A embalagem recebeu uma cobertura com papel adesivo e foi utilizada para a dinâmica.

sobre as pressões sociais que cercam o matrimônio e legitimam relações de dominação masculina e/ou inferiorização feminina; refletir sobre a violência estrutural que se instalou na sociedade, sobretudo no que atinge as mulheres e despertar o sentimento de responsabilização social frente a situações de violência ao outro, especialmente às mulheres.