• Nenhum resultado encontrado

Descoisificação do animal não-humano: a expansão da teoria kantiana

Adepto do antropocentrismo, o filósofo Immanuel Kant caracteriza os animais enquanto meios que servem a um fim 99. O fim é o ser humano, que se distingue pela posse da razão. Desse modo, concebe apenas deveres indiretos com relação aos animais: “Ora, o homem encontra realmente em si mesmo uma faculdade pela qual se distingue de todas as outras coisas, e até de si // mesmo, na medida em que ele é afectado por objetos; essa faculdade é a razão [Vernunft]” 100.

Partindo do pressuposto de que apenas seres humanos são detentores de dignidade, Kant limita-se a estabelecer deveres de compaixão e o trato humanitário para com os animais.

Para Schopenhauer, o imperativo categórico kantiano ergue-se sobre bases egoístas, por induzir à crença de bem-estar geral a partir do seu próprio.

Daqui se segue que não devo prejudicar a ninguém, porque, ao admitir este princípio com lei universal, também eu não serei                                                                                                                          

98

HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. Versão para e-Book: Free-eBooks.net. Disponível em: <http://portugues.free- ebooks.net/ebook/Leviata/pdf>. Acesso em: 19 mar. 2014.

99

“Não obstante dá-se também ao conjunto da natureza, se bem que seja considerado como máquina, o nome de reino da natureza, enquanto se relaciona com os seres racionais como seus fins”. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Tradução de Paulo Quintela. 3 ed. Lisboa: Edições 70, 2011. p.87.  

100

prejudicado, o que é porém a única razão pela qual eu, ainda não estando de posse de um princípio moral, mas apenas buscando-o, posso querê-lo como lei universal. Mas dessa maneira o desejo de bem-estar, isto é, o egoísmo, permanece manifestamente como a fonte deste princípio ético 101.

Talvez seja este um dos motivos porque Kant não concebia a inclusão dos animais na esfera de consideração moral: pelo simples fato de que não se poderia esperar deles tal contrapartida, isto é, não se poderia impor aos animais uma conscientização do dever de promoção do direito alheio para que estes também tivessem observado o seu próprio. Daí a crítica de Schopenhauer quanto à fundamentação ética desse princípio:

Isto seria excelente como base da doutrina do Estado, mas como base da Ética não presta. Pois, para o estabelecimento de um regulativo para a vontade de todos, dado naquele princípio moral, aquele que o procura precisaria, por sua vez, de um regulativo para si mesmo, senão tudo lhe seria indiferente. Porém este regulativo só pode ser o seu próprio egoísmo, pois o proceder de outro só a este influencia e, por isso, só mediante ele e em sua consideração pode alguém ter uma vontade a respeito do agir de outrem e este não lhe ser indiferente 102.

Schopenhauer critica, ainda, a ausência de distinção, por Kant, entre conhecimento intuitivo e razão (consciência de si), o que o faz incorrer no erro de considerar que “a intuição, tomada por si mesma, seja sem entendimento, puramente sensorial, portanto, totalmente passiva e que um objeto seja apreendido somente através de pensar (categoria do entendimento)” 103. Desconsidera, Kant, a intuição como forma de aquisição do conhecimento.

Mas sempre de novo se nos apresenta, na Crítica da Razão Pura, aquele erro capital e fundamental de Kant [...]: a total falta de distinção entre o conhecimento abstrato e discursivo e o intuitivo. [...]

                                                                                                                          101

SCHOPENHAUER, Arthur. Crítica da Filosofia Kantiana. Tradução de Wolfgang Leo Maar e Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. 5 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p.174.

102

Ibidem, p.174.

103 Nesse panorama: “toda intuição empírica já é experiência: é, porém, empírica toda intuição que

parte da sensação: o entendimento, mediante sua função única (conhecimento a priori da lei da causalidade) relaciona esta sensação à sua causa que, por isso mesmo, apresenta-se em espaço e tempo (formas da intuição pura) como objeto de experiência, objeto material, durando no espaço por todo o tempo, mas que, apesar disso, permanence ainda sempre como representação, do mesmo modo que o próprio espaço e tempo”. Ibidem, p.105; 109.

Digo, em contrapartida: os objetos (Objekte) são diretamente objetos (Gegenstände) da intuição, não do pensamento, e todo conhecimento de objetos (Gegenstände) é, originariamente, e em si mesmo, intuição – esta não é, porém, de modo algum, mera sensação, mas nela o entendimento já se mostra ativo. O pensamento, que se introduz unicamente no caso do homem, não no dos animais, é mera abstração a partir da intuição, não dá nenhum conhecimento fundamentalmente novo, não põe objetos que já não existissem antes, mas muda apenas a forma do conhecimento já adquirido pela intuição, ou seja, torna-o abstrato em conceitos, com o que fica perdida a intuitividade, mas, em compensação, torna-se possível a sua combinação, que amplia, incomensuravelmente, sua aplicabilidade 104. (grifo nosso)

Para Kant, o uso prático da razão, que demanda liberdade (autonomia) da vontade, é o que possibilita falar-se em uma dignidade do homem 105, a qual é, por sua vez, considerada um valor incondicional e incomparável, o que para Schopenhauer consiste em um “hipérbole oca”, outra hipótese de “contradictio in adjecto, como um verme corrosivo” 106.

Um valor absoluto incomparável, incondicionado, tal como deve ser a dignidade é, por isso, como muitas coisas na filosofia, uma tarefa posta por palavras para um pensamento que não se pode sequer pensar, tão pouco quanto se pode pensar o maior número ou o maior espaço 107.

A instrumentalização dos animais também pode ser encontrada na “físico- teologia”, que “tinha a intenção de ser uma prova da existência de Deus; mas era de fato uma glorificação do homem”, tendo em vista que supunha a existência dos animais para benefício dos humanos, o que equivalia, nesse ponto, a uma reprodução da filosofia escolástica e se chocava diretamente contra a lógica da “Cadeia do Ser”.

Tout est créé pour l’homme é, ao mesmo tempo, a premissa tácita e

a triunfante conclusão daquela longa série de argumentos                                                                                                                          

104

SCHOPENHAUER, Arthur. Crítica da Filosofia Kantiana. Tradução de Wolfgang Leo Maar e Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. p.132-133.

105

“Festeja Kant (pp. 74 e ss.) o triunfo de sua autonomia da vontade na implantação de uma utopia moral, sob o nome de um ‘reino dos fins’, que é habitada por puros seres racionais ‘in abstracto’ que, todos juntos, continuamente querem, sem querer qualquer coisa que seja (isto é, sem interesses); querem apenas uma coisa: que todos queiram sempre de acordo com uma maxima (quer dizer, autonomia).” (itálico do autor) SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. Tradução de Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.81.

106

Ibidem, p.83.

107

teleológicos que constitui uma tão ampla fração da produção “filosófica” do século XVIII – e é um dos mais curiosos monumentos da imbecilidade humana 108.

 

O combate à instrumentalização animal desencadeou a ideia de que todo animal é um fim em si mesmo, proposta por Goethe no poema Athroismos, em 1819, amplamente defendida pelos autores durante o século XVIII 109.

Oportuno mencionar o comentário apresentado por Schopenhauer 110, acerca da expressão kantiana “fim em si mesmo”. Para o autor é paradoxal e impensável falar em fim em si mesmo, pelo fato de que ser um fim significa ser um objeto de volição, não podendo subsistir a não ser relacionado a algo cujo fim seja sua razão direta de ser. De modo que tal relação exclui automaticamente a ideia de “ser em si mesmo”. Argumenta o autor que, pensar em algo como fim em si mesmo seria o mesmo que admitir a plausibilidade das expressões “amigo em si mesmo”, “inimigo em si mesmo”, “tio em si mesmo”, “norte ou leste em si mesmo”...

Preciso dizer diretamente que “existir como fim em si mesmo” é um não-pensamento, uma “contradictio in adjecto”. Ser fim significa: ser querido. Todo fim só o é em relação a uma vontade, cujo fim é, como já foi dito, o seu motivo direto. Só nesta relação é que o conceito de fim tem um sentido e o perde logo que este lhe é tirado 111.

Verifica-se que o mesmo problema é encontrado na expressão “valor absoluto”: por se tratar de um juízo comparativo, devem haver pelo menos dois objetos (para possibilitar-lhe ser comparado a alguma outra coisa) e relacionar-se a alguém. E assim como tal concepção afronta a lógica, o tratamento dos animais como “coisas” e, consequentemente, meios, afronta a moral, pois impede o homem de praticar qualquer ato de crueldade para com as demais espécies, não em virtude da importância destas, mas apenas porque não seria moralmente adequado para o homem considerado em si 112.

                                                                                                                          108

LOVEJOY, Arthur O. A Grande Cadeia do Ser. Tradução de Aldo Fernando Barbieri. São Paulo: Palíndromo, 2005. p.185-186.

109 Ibidem, p.189. 110

SCHOPENHAUER, Arthur. The two fundamental problems of ethics. New York: Oxford University Press, 2010. p.162.

111 Idem, Sobre o fundamento da moral. Tradução de Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola. 2 ed. São

Paulo: Martins Fontes, 2001. p.76.

112

[...] assim também fere a moral autêntica (p. 65) o fato de que os seres irracionais (portanto os animais) sejam coisas e por isso tenham de ser tratados simplesmente como meios que não são ao mesmo tempo fins 113.

No atual paradigma, a proteção animal ainda atende, regra geral, aos interesses dos homens. Inobstante o tratamento conferido aos animais pelo art. 225 da Constituição Federal, o caput do dispositivo trata do direito ao meio ambiente saudável e equilibrado como um direito fundamental das presentes e futuras gerações, isto é, do ser humano, no Estado Democrático de Direito. A ideia de proteção dos animais com vistas à satisfação de seus próprios interesses e à promoção dos direitos dos sencientes evidenciaria um passo adiante, constituindo a proposta de estudiosos do tema 114.

Sobressaem-se nesse contexto, atualmente, duas correntes: a do bem- estar animal (welfarismo) e a dos direitos animais (abolicionista). Enquanto a primeira reconhece a importância dos animais no contexto ambiental e condena o tratamento cruel e instrumental da natureza, mas defende a possibilidade de utilização dos animais – desde que se faça de “maneira humanitária” –, a segunda “rejeita todo o uso de animais, não importa o quão humanitário...” 115.

O direito, que é feito pelos homens e para os homens, deve ser interpretado, também, sob um viés voltado aos animais sencientes, reconhecendo- se nossas obrigações, positivas e negativas, para com eles, o que representaria um desprendimento do “legado antropocêntrico-especista que nos impede de defender a preservação da vida por seu valor inerente” 116.

                                                                                                                          113

SCHOPENHAUER, Arthur. Sobre o fundamento da moral. Tradução de Maria Lúcia Mello Oliveira Cacciola. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. p.76.

114Tais como Tom Regan, que defende o reconhecimento de direitos animais, e Peter Singer, que

propõe a igual consideração de interesses entre os seres humanos e os demais sencientes.REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Tradução de Regina Rheda. Porto Alegre: Lugano, 2006. p.03. SINGER, Peter. Libertação animal. Tradução de Marly Winckler. Porto Alegre, São Paulo: Lugano, 2004. p.256.

115 REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Tradução de Regina

Rheda. Porto Alegre: Lugano, 2006. p.192.

116

FELIPE, Sônia T. Liberdade e autonomia prática: fundamentação ética da proteção constitucional dos animais. In: MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais

Desenvolver-se-ia, com isso, uma visão do direito direcionada aos animais, isto é, em prol de seus interesses, considerando-se que:

Liberdades constitucionais podem ser reconhecidas a animais não- humanos, guardando-se o princípio da precaução, e distribuindo-as proporcionalmente à capacidade específica do animal para mover-se em ambientes físicos naturais próprios de sua espécie, e prover-se de modo a alcançar seu bem-estar específico.

Igualdade não implica em padronização. Pode-se defender a igualdade constitucional para garantir que as liberdades concedidas por lei não impliquem em quaisquer formas de discriminação.

Enquanto não se alcançar o devido respeito a todos os seres capazes de sentir dor e de sofrer, não se poderá afirmar que uma constituição respeita a condição de vida dos seres vulneráveis. O respeito devido aos animais restabelece o respeito a humanos em condições ameaçadas pela hostilidade do poder e dos interesses alheios 117. (grifo nosso)

Para além disso, o que se busca é a substituição da autonomia da vontade – defendida por Kant como critério exclusivo dos seres humanos, que os diferencia dos demais animais e os torna detentores de dignidade, face à prerrogativa do uso da razão em lugar do instinto – pela autonomia prática 118.

O critério da autonomia prática é proposto por Steven M. Wise 119 para o estabelecimento de um limite entre os seres aos quais devem ser reconhecidos direitos e aqueles que não reúnem requisitos mínimos para tanto. A adoção de seu entendimento implicaria uma ampliação da teoria kantiana, vez que admitiria a inclusão de outras formas de vida animais, além da humana, no rol dos sujeitos de direito, promovendo-os a fim e não mais simples meios.

Dentre os elementos necessários ao reconhecimento da autonomia prática proposta por Wise, pressupõe-se que o ser: tenha desejos; tente, intencionalmente, realizar tais desejos; possua um senso de auto-suficiência, que o permita compreender, ainda que limitadamente, a vontade de obter algo, e que saiba distinguir essa vontade como sua própria. Também são importantes, nessa

                                                                                                                          117

FELIPE, Sônia T. Liberdade e autonomia prática: Fundamentação ética da proteção constitucional dos animais. In: MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais

para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p.82-83. 118 Ibidem, p.74.

119

WISE, Steven M. Drawing the line: science and the case for animal rights. Cambridge: Perseus Books, 2003. p.34-44.  

composição, a consciência (não necessariamente autoconsciência) e a senciência 120.

Nesse contexto é que o pensamento de Kant acerca dos animais resta superado pelos filósofos utilitaristas, os quais, ainda no século XVIII, reformularam o questionamento que ensejaria a possibilidade de atribuição de direitos aos animais: aos invés de focarem a questão na presença/ausência de razão enquanto critério diferenciador entre pessoas e animais, substituem-na pela capacidade de sentirem dor e de sofrimento. Elegem, portanto, não apenas os humanos e nem todos os animais, mas os seres denominados “sencientes” como detentores de direitos. Jeremy Bentham já sinalizava a preocupação com o sofrimento animal, refletindo:

Deve chegar o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos que nunca poderiam ter-lhe sido recusados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é razão para que um ser humano possa ser inevitavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. Deve chegar um dia em que seja reconhecido que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a faculdade da linguagem? Mas um cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente mais racionais, bem como mais comunicativos, do que um bebê de um dia, de uma semana, ou até de um mês de idade. Mas, suponha-se que as coisas não fossem dessa forma, o que isso poderia avaliar? A questão não é ‘Eles são capazes de raciocinar?’, nem ‘Eles são capazes de falar?’, mas: ‘Eles são capazes de sofrer?’ 121

E mesmo antes de Jeremy Bentham, a consideração moral de seres sujeitos às sensações de dor e sofrimento já era apoiada por Humphry Primatt, em 1776, como uma questão ética. Eram evidenciados, em sua obra ”A Dissertation on the Duty of Mercy and the Sin of Cruelty against Brute Animals” (Dissertação sobre o dever de compaixão e o pecado da crueldade contra os animais brutos), os deveres dos homens para com esses seres, sem que se lhes fossem atribuídos direitos propriamente ditos, mas a necessidade de uma igualdade moral entre tais espécies. Na mencionada obra, o filósofo elaborou teses até hoje utilizadas como

                                                                                                                          120

WISE, Steven M. Drawing the line: science and the case for animal rights. Cambridge: Perseus Books, 2003. p.32.

121

BENTHAM, Jeremy. An Introduction to the Principles of Morals and Legislation. Oxford: Clarendon Press, 1879. p.311 (nota de rodapé).

embasamento pelos adeptos do movimento de abolicionismo animal ao redor do mundo 122.

Nesse passo, o filósofo Peter Singer condena o especismo 123, sugerindo uma mudança mental que permita a inclusão, em nossa esfera de consideração moral, de todos os seres sencientes, a partir do princípio da igual consideração de interesses. Ressalva-se, contudo, que “o princípio básico da igualdade não requer tratamento igual ou idêntico, mas sim, igual consideração. A igual consideração por seres diferentes pode levar a tratamentos e direitos distintos” 124.

É inegável que existem diferenças entre humanos e não-humanos. Ativistas dos direitos dos animais estão cientes que estas diferenças podem gerar diferentes direitos para cada indivíduo. Para usar um exemplo de Singer, nenhum animalista defende o direito de voto para os animais, assim como nenhuma mulher defende direito de fazer um aborto para os homens 125.

A análise sob o ângulo utilitarista é reforçada pela discussão sob a ótica da ficção da potencialidade, afinal se a posse de razão justificasse o reconhecimento de direitos, sequer a totalidade dos seres humanos preencheria tal exigência. O que dizer das pessoas completamente incapazes, desprovidas de discernimento, que por qualquer motivo têm prejudicada a razão, a ação racional? Deveria a elas, cuja razão – critério que define a moralidade – se encontra comprometida, ser negada a dignidade?

Recém-nascidos, fetos e embriões não possuem autonomia prática. Mas, a ficção da potencialidade permite fundamentar os direitos legais que lhes são atribuídos. Por essa razão, a de que se pode atribuir direitos com base em ficções, assim o entende Wise, os juízes que negam “personalidade” a todo e qualquer animal não-

                                                                                                                          122

FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt.

Revista Brasileira de Direito Animal. Salvador: Instituto de Abolicionismo Animal, ano 1, vol. 1, p.

207-229, jun./dez. 2006.

123

“Especismo – e a palavra não é muito atraente, mas não me ocorre uma melhor – é o preconceito ou a atitude tendenciosa de alguém a favor dos membros de sua própria espécie e contra os de outras”. SINGER, Peter. Libertação animal. Tradução de Marly Winckler. Porto Alegre, São Paulo: Lugano, 2004. p.08.

124 Ibidem, p.04. 125

SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Animais em juízo: direito, personalidade jurídica e

humano capaz de escolhas, mas a atribuem a humanos incapazes da mesma, agem arbitrariamente 126.

Outra ponderação dos filósofos morais tradicionais diz respeito à presença da linguagem e de consciência como fatores de classificação de um ser como sujeito de direito. Relacionava-se a linguagem à consciência.

Contudo, a ausência de linguagem não implica ausência de consciência (como capacidade de entendimento), pois esta última é prévia e, inclusive, necessária ao desenvolvimento da linguagem, e não o contrário. “Ter consciência do mundo não depende de ter habilidade para usar alguma linguagem” 127. Por isso é que Schopenhauer classifica a linguagem como a “roupagem externa do pensamento” 128.

Acerca da consciência, em que pese algumas doutrinas ainda insistam em não reconhecê-la aos animais 129, neurocientistas assinaram, em 07 de julho de 2012, durante uma Conferência (Francis Crick Memorial Conference on

Consciousness in Human and non-Human Animals), no Churchill College, da

Universidade de Cambridge, uma Declaração denominada “Declaração de Cambridge sobre a Consciência” (The Cambridge Declaration of Consciousness) 130. Conforme o documento, “os humanos não são os únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência” 131. Os pesquisadores ressaltam, entretanto, que a consciência encontrada nos animais difere da humana, em níveis de complexidade. Tampouco há unanimidade no que vem a ser o conceito de

                                                                                                                          126

FELIPE, Sônia T. Liberdade e autonomia prática: Fundamentação ética da proteção constitucional dos animais. In: MOLINARO, Carlos Alberto; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago (Org.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais

para além dos humanos: uma discussão necessária. Belo Horizonte: Fórum, 2008. p.74.   127

REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Tradução de Regina Rheda. Porto Alegre: Lugano, 2006. p.82.

128 “Torna-se aqui manifesto que não se tem que buscar as formas do pensamento tão direta e

imediatamente nas palavras [...] A gramática só esclarece a roupagem das formas do pensar”. SCHOPENHAUER, Arthur. Crítica da Filosofia Kantiana. Tradução de Wolfgang Leo Maar e Maria Lúcia Mello e Oliveira Cacciola. 5 ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. p.136.

129

D’AGOSTINO, Francesco. Bioética – segundo o enfoque da Filosofia do Direito. Porto Alegre: Unisinos, 2006. p.260.

130

Vide íntegra da Declaração no Anexo A. DECLARAÇÃO de Cambridge sobre a Consciência em

Animais Humanos e Não Humanos. Instituto Humanitas Unisinos. 31 de julho de 2012. Disponível

em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/511936-declaracao-de-cambridge-sobre-a-consciencia-em- animais-humanos-e-nao-humanos>. Acesso em: 09 mar. 2014.

131

consciência, mas os estudiosos já podem afirmar que a “maioria dos animais tem sistemas de memória e mecanismos de atenção, e a interação entre esses dois processos cresce em complexidade, de moscas a humanos” 132.