• Nenhum resultado encontrado

1.4 Direitos fundamentais e dignidade

1.4.1 Direitos fundamentais e os animais

Para José Afonso da Silva os direitos fundamentais compõem “no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que o [ordenamento jurídico] concretiza em garantia de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas” 154

.

O estudo da teoria dos direitos fundamentais deve ser realizado segundo as dimensões analítica, normativa e empírica, em conformidade com o modelo

                                                                                                                          153

FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer

em defesa dos animais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003. p.142, 144.   154

SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 27 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p.163-164.  

“tridimensional” (também chamado “Dreier-Alexy”), como ensina Willis Santiago Guerra Filho 155. De acordo com o autor, na dimensão analítica será trabalhado o conceito de direitos fundamentais, de modo a distingui-lo de matérias correlatas, individualizando-o no ordenamento jurídico, conforme um diagnóstico de noções como sua abrangência e eficácia “e das situações jurídicas e titularidades subjetivas decorrentes de norma desse tipo” 156. A dimensão normativa permite um estudo crítico do material positivo apresentado pelo legislador, além da interpretação conferida pelos operadores jurídicos, sobretudo os legisladores, membros do poder judiciário e doutrinadores, garantindo sentido às normas de direitos fundamentais, caracterizadas por seu alto grau de abstração. “Também a crítica da ideologia subjacente às construções legislativas, doutrinárias e judiciais deverá preocupar-nos quando da realização de estudos a esse nível” 157. Na dimensão empírica situa-se a análise do emprego fático do termo, que não deverá se limitar a uma determinada ordem jurídica vigente em determinado momento e local, bem como as “soluções dadas por ordens jurídicas e doutrinas de outras épocas e países, aos problemas colocados em face do direito positivo estudado, desde que se mostre com ele compatível” 158. Assim, é na dimensão empírica que se dá o estudo da história e do direito comparado, por exemplo, e é partir dessa perspectiva que se pode falar em uma geração de direitos (humanos), direitos esses que são gerados, gestados (daí o emprego de "geração") histórica e internacionalmente, sem que estejam já positivados em todos os países ou mesmo sob a forma de tratados. A positivação desses direitos implica no seu reconhecimento conceitual sob a forma de direitos fundamentais, ampliando algumas de suas dimensões e reconfigurando as demais.

                                                                                                                         

155 GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 4 ed. São

Paulo: RCS Editora, 2005. p.36.

156

Ibidem, p.37-38.

157

Em síntese: “A primeira dimensão em que devem se realizar os estudos jurídicos é dita “analítica”, sendo aquela onde se burila o aparato conceitual a ser empregado na investigação, num trabalho de distinção entre as diversas figuras e institutos jurídicos situados em nosso campo de estudo. Uma segunda dimensão é denominada “empírica”, por ser aquela em que se toma por objeto de estudo determinadas manifestações concretas do Direito, tal como aparecem não apenas em leis e normas do gênero, mas também – e, principalmente – na jurisprudência. Finalmente, a terceira dimensão é a “normativa”, enquanto aquela em que a teoria assume o papel prático e deontológico que lhe está reservado, no campo do direito, tornando-se o que com maior propriedade se chamaria doutrina, por ser uma manifestação de poder, apoiada em um saber, com o compromisso de complementar e ampliar, de modo compatível com suas matrizes ideológicas, a ordem jurídica estudada”. Ibidem, p.39-41.

158

Inicialmente, surgem, com as revoluções americana e francesa, os direitos de primeira geração, que representam a tutela das liberdades individuais: os direitos civis e políticos. Com isso, limita-se o poder Estatal sobre o indivíduo (status negativo). São abrangidas liberdades como “a de consciência, de culto, a inviolabilidade de domicílio, a liberdade de reunião. [...] O paradigma de titular desses direitos é o homem individualmente considerado” 159.

Posteriormente, vislumbra-se a necessidade de atuação positiva do Estado em prol da coletividade, sob a forma de um fazer (facere). Desenvolvem-se, com isso, os direitos de segunda geração, os denominados “direitos sociais, culturais e econômicos, por meio dos quais se intenta estabelecer uma liberdade real e igual para todos, mediante a ação corretiva dos Poderes Públicos” 160. Assim, dado seu viés de justiça social, são denominados “direitos sociais”.

A terceira geração de direitos envolve os direitos difusos e coletivos (direitos dos povos) e o seu titular é o “gênero humano” 161. Incluem-se nesse rol “o direito à paz, ao desenvolvimento, à qualidade do meio ambiente, à conservação do patrimônio histórico e cultural” 162. (grifo nosso)

Há doutrinadores que já enxergam a existência de direitos de quarta e quinta geração, sendo os primeiros, segundo Norberto Bobbio, “referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo” 163. Questiona a doutrina quais seriam “os limites dessa possível (e cada vez mais certa no futuro) manipulação?” 164 Com uma visão diferenciada, o jurista Paulo Bonavides reconhece como direitos de quarta geração aqueles relativos à democracia: “Tendo por conteúdo a liberdade e a igualdade, segundo uma concepção integral de justiça, o direito à democracia, apanágio de toda a humanidade, é, portanto, direito da quarta

                                                                                                                          159

MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.155.

160

Ibidem, p.155-156.  

161

Ibidem, p.46.

162 Ibidem, p.156.  

163BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. p.5-6.   164

geração” 165. Ao tratar da paz (que, para o autor representa os direitos de quinta geração), arremata: “ontem um conceito filosófico, hoje um conceito jurídico. E tanto mais jurídico quanto maior a evidência principiológica de sua acolhida nas Constituições”. Tomando emprestado seu discurso acerca da juridicização da paz, e estendendo-o para o âmbito dos direitos animais, é possível verificar que a base é a mesma: nota-se que, gradativamente, as constituições de diversos países externam a preocupação com esses direitos.

Há, por outro lado, quem defenda os direitos de quinta geração como o cuidado, amor e compaixão com todas as formas de vida 166. É o caso de Majid Tehranian 167, o qual sinaliza direitos, cujo desenvolvimento e articulação ainda não se concretizou, relativos não mais a direitos propriamente ditos (por mais contraditório que isso possa parecer), mas:

ao cuidado, à compaixão e ao amor do homem por todas as formas de vida. Emergindo das mais profundas tradições espirituais da civilização no mundo, essa geração de direitos reconhece que a segurança humana não pode ser finalmente alcançada em sua totalidade a não ser que, e até que nós vejamos o indivíduo como parte integrante do cosmos 168.

De acordo com o autor, os direitos de primeira geração, enquanto direitos individuais surgidos em pleno liberalismo, ao invés de inserirem o homem na sociedade, posicionaram-no contra ela. Os dois últimos séculos foram responsáveis por “prejudicar a noção de sacralidade, o que nos leva, com frequência, a esquecer que o homem não se sente completamente seguro até que seja amado e cuidado, embora enraizado nas suas próprias tradições culturais” 169.

Em que pese o direito à qualidade do meio ambiente tenha sido erigido ao patamar de direito fundamental (disposto no art. 225, CF), há de se ressaltar que o seu titular é a espécie humana, não se atribuindo (pelo menos diretamente), na sua

                                                                                                                          165

BONAVIDES, Paulo. As cinco gerações de direitos fundamentais. Palestra apresentada no X Seminário de Direito Militar, organizado pelo Superior Tribunal Militar, em 28 nov. 2011. Disponível em: <https://www.youtube.com /watch?v=zWnoaRP0jao>. Acesso em: 19 mar. 2013.  

166

Ibidem. Acesso em 19 mar. 2013.  

167

TEHRANIAN, Majid. Worlds Apart. Human Security and Global Governance. Londres: I.B.Tauris & Co, 1999. p.180.

168

Ibidem, p.180. (tradução livre)

169

definição, o tão estimado valor intrínseco a não-humanos. Sabe-se que todos os direitos fundamentais até hoje concebidos têm como destinatário final o homem, seja ele individual ou coletivamente considerado, ou até mesmo enquanto pertencente ao gênero humano. Apesar de os direitos de terceira geração, por meio do direito à higidez do meio ambiente, representarem um avanço e um combate inicial ao antropocentrismo puro e simples, ainda visam, como fim a ser perseguido, à proteção humana.

Vale ressaltar que o uso da expressão "dimensões de direitos fundamentais" é preferível ao emprego de "gerações", não apenas pela ideia de que a geração posterior substituiria a anterior mas, sobretudo, porque os direitos gestados em determinada geração devem ser interpretados tendo como pressuposto os direitos da geração sucessiva em um determinado ordenamento jurídico, assumindo, com isso, uma nova dimensão.

Nas palavras de Willis Santiago Guerra Filho:

Que ao invés de “gerações” é melhor se falar em “dimensões de direitos fundamentais”, nesse contexto, não se justifica apenas pelo preciosismo de que as gerações anteriores não desaparecem com o surgimento das mais novas. Mais importante é que os direitos “gestados” em uma geração, quando aparecem em uma ordem jurídica que já traz direitos da geração sucessiva, assumem uma outra dimensão, pois os direitos de geração mais recente tornam-se um pressuposto para entendê-los de forma mais adequada – e, conseqüentemente, também para melhor realizá-los. Assim, por exemplo, o direito individual de propriedade, num contexto em que se reconhece a segunda dimensão dos direitos fundamentais, só pode ser exercido observando-se sua função social e, com o aparecimento da terceira dimensão, observando-se igualmente sua função ambiental 170.

No que tange aos direitos fundamentais, a primeira dimensão é a individual; a segunda, coletiva e social; e a terceira, difusa e a mais universal, abrangendo todo o gênero humano.

No entendimento de Antônio Herman Benjamin:

                                                                                                                          170

GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo Constitucional e Direitos Fundamentais. 4 ed. São Paulo: RCS Editora, 2005. p.46-47.

O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é direito de terceira geração, alicerçado na “fraternidade” ou na “solidariedade”. Nessa categoria, tem-se ‘direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existência concreta 171.

Disso verifica-se que essas três dimensões têm por destinatário o homem (individual ou coletivamente considerado, ou ainda, enquanto espécie). De modo que eventual reconhecimento de direitos aos animais e a consequente atribuição de direitos ditos "fundamentais" a essa classe, demandaria a existência de uma “quarta dimensão” (que admitisse os animais como destinatários dos direitos fundamentais nela previstos, isto é, uma nova categoria), em decorrência do surgimento de uma nova concepção de “geração de direitos” (direitos não-humanos) ou então a classificação desses direitos (animais) sob outro título (que não "fundamentais").

Norberto Bobbio antevê, em sua obra 172, a possibilidade de surgimento de novos direitos, no futuro, como “o direito de respeitar a vida também dos animais e não só dos homens”. Esse direito, se considerado do ponto de vista animal – isto é, da defesa de seus próprios interesses –, ainda é objeto de discussão entre os estudiosos do Direito. Mas vale recordar que há algumas décadas sequer se cogitava tal pretensão, o que reforça a tese de que os valores da sociedade mudam com o passar do tempo. “O que prova que não existem direitos fundamentais por natureza. O que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas” 173. Assim, o estabelecimento de um paradigma abolicionista constituiria a válvula necessária para uma revolução na forma de se conceber o Direito, permitindo a inovação de diversas teorias, bem como a criação de outras e o desenvolvimento de normas jurídicas, como é o caso da positivação de direitos “fundamentais” voltados para os sencientes, que passariam a ser considerados sujeitos de direito.

                                                                                                                          171

BENJAMIN, Antonio Herman. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.123.  

172

 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Nova ed. – 7ª reimpressão. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p.18.  

173

Seguindo essa linha de raciocínio, do mesmo modo que as pessoas devem observar o valor intrínseco umas das outras, dada sua condição no ordenamento jurídico, deveriam respeitar também os valores próprios de outros seres, o que origina deveres de natureza ecológica do ser humano para com as demais espécies e formas de vida, que ostentarão, caso tais seres apresentem interesses capazes de qualificá-los como sencientes, os direitos reflexos.

Cabe observar, outrossim, que a vinculação da teoria dos direitos fundamentais relativos à proteção do meio ambiente com vistas à proteção do gênero humano (e à satisfação da dignidade humana), não descarta o reconhecimento de valores intrínsecos aos animais (bem como sua consideração como fins em si mesmos), mas tão somente enxerga que na sociedade de risco é emergencial a proteção da natureza e do meio ambiente como um todo em virtude da escassez dos recursos naturais, indispensáveis para a manutenção da vida (também) humana no planeta Terra. Afinal, os direitos de natureza ambiental destinados aos seres humanos não repelem a existência desses mesmos direitos, destinados aos animais.

Os direitos fundamentais dos seres humanos, dada sua interpretação enquanto meios à concretização da dignidade humana, são oponíveis ao Estado e também aos particulares, e dessa última relação se extrai o princípio da solidariedade como componente da dignidade humana. Assim, faz-se necessário, atualmente, o reconhecimento de direitos de solidariedade sob um novo viés, no que diz respeito às demais formas de vida 174.

1.4.2 A possibilidade de reconhecimento de uma dignidade multidimensional e