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A proteção dos animais como dever do Estado e dos particulares

3.2 A Constituição de 1988

3.2.1 A proteção dos animais como dever do Estado e dos particulares

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“É difícil conceber que o constituinte, ao proteger a vida de espécies naturais em face da sua ameaça de extinção, estivesse a promover unicamente a proteção de algum valor instrumental de espécies naturais, mas, ao contrário, deixa transparecer uma tutela da vida em geral nitidamente desvinculada do ser humano.” FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do

ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.49.

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BENJAMIN, Antonio Herman. Constitucionalização brasileira e ecologização do meio ambiente. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito Constitucional

Ambiental Brasileiro. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.126. 425

“[...] a titularidade do direito em questão, pela sua complexidade, demanda uma análise mais profunda do que a simples avaliação do sentido da expressão ‘todos’, pois é na caracterização do bem ambiental – marcado pela fórmula do equilíbrio ecológico – que será extraído do caput do art. 225 uma clara opção biocêntrica do legislador constitucional”. Ibidem. p.127.

Na sociedade de risco faz-se necessária a adoção de medidas destinadas a assegurar a proteção ambiental contra a atuação do Estado e, também, de particulares (indivíduos e coletividade); afinal, tanto um quanto outro, são potenciais causadores de danos à biodiversidade, provocando a extinção de espécies como decorrência de práticas diversas. Atenta a isso, a Constituição de 1988 (que inaugurou, no ordenamento pátrio, a elevação da matéria ambiental ao patamar jurídico máximo), impôs “um dever geral de não degradar (= núcleo obrigacional), além de deveres derivados e secundários, de caráter específico, listados no § 1º do art. 225” 426. A autoaplicabilidade do art. 225 da Carta Magna permite sua imediata oposição erga omnes, em face daquele que agir em desconformidade com seus preceitos, seja o próprio Estado ou a coletividade.

A Constituição, enquanto sistema, deve ser interpretada em seu conjunto, não se exaurindo no artigo 225 427 as disposições pró-ambiente. Assim, partindo-se do art. 193, que inaugura o Título VIII – relativo à ordem social –, em que o art. 225 se insere, é possível encontrar expressamente sua finalidade: o bem-estar e a justiça social. Já se conclui, daí, ser a matéria ambiental e, especificamente, a proteção dos animais uma questão de justiça social. Ao tratar, em seu caput, do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o artigo 225 cuida de prever, no § 3º, o cabimento de sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparação dos danos causados, àqueles que praticarem condutas lesivas ao meio ambiente, visando à preservação das espécies e da biodiversidade como um todo. No que diz respeito ao art. 170, VI, que trata dos princípios que regem a ordem econômica, consta do inciso VI a defesa do meio ambiente e, no art. 186, II, ao dispor sobre as funções sociais da propriedade rural, incluiu a preservação do meio ambiente.

Ao Estado, precipuamente, cabe o papel de efetivação dos dispositivos constitucionais, principalmente aqueles que demandem a elaboração de políticas

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BENJAMIN, Antonio Herman. Constitucionalização brasileira e ecologização do meio ambiente. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito Constitucional

Ambiental Brasileiro. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.132.   427

“Na verdade, saltou-se do estágio da miserabilidade ecológico-constitucional, própria das Constituições liberais anteriores, para um outro que, de modo adequado, pode ser apelidado de opulência ecológico-constitucional. Um feito e tanto, que muito deve àqueles que, no Brasil e lá fora, impulsionados pela missão de ‘celebração da vida’, para usar as palavras de Tribe, insurgiram-se contra a ordem jurídica antinatureza e, pelo menos formalmente, venceram”. Ibidem, p.106.  

públicas. Assim sendo, com supedâneo no § 1º do artigo 225, deve o Poder Público, com o apoio da sociedade, empenhar-se no desenvolvimento de campanhas acerca da preservação de espécies (inciso VI), promover a educação ambiental nas escolas (inciso VI), fomentar a criação de canal destinado à denúncia de práticas cruéis contra animais (por exemplo, por meio de disque-denúncia ou internet) (inciso VII), incentivar uma fiscalização eficaz contra a exploração e o contrabando de animais (incisos I, III e VII), proteger as espécies em extinção (incisos I e VII), incrementar a ideia de desenvolvimento sustentável (inciso V 428) etc...

Importante reforçar, desse modo, que a constitucionalização do meio ambiente, por si só, permite a utilização de instrumentos, ainda pouco explorados, capazes de garantir a autoaplicabilidade do dispositivo:

A tutela ambiental deve ser viabilizada por instrumental próprio de implementação, igualmente constitucionalizado, como a ação civil pública, a ação popular, as sanções administrativas e penais e a responsabilidade civil pelo dano ambiental, o que nega aos direitos e às obrigações abstratamente assegurados a má sorte de ficar ao sabor do acaso e da boa vontade do legislador ordinário 429.

Tais recursos devem ser utilizados com vistas à mitigação da mentalidade retrógrada que insiste em coisificar e subjugar os animais, a partir da falsa e já ultrapassada crença de que as espécies servem à satisfação dos interesses humanos e devem ser assim aplicadas, indistintamente, relegando-os à exploração inconsciente do “ser mais perfeito da cadeia”.

Logo, em que pese o ordenamento jurídico ainda não reconheça “direitos” propriamente ditos aos animais, confere, em contrapartida, ao Estado e à sociedade, o dever de protegê-los. Assim, conforme esclarece a doutrina, em que pese parte dos beneficiários das proteções explícita e implicitamente insculpidas no art. 225, CF (como é o caso das futuras gerações), não disponha de capacidade jurídica para

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Cumpre ressaltar que o mencionado inciso V positiva a “ética da responsabilidade” no ordenamento constitucional pátrio ao impor ao Estado a obrigação de “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente.” FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção

do ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico constitucional do estado socioambiental de direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.59-60.  

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BENJAMIN, Antonio Herman. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.105.  

invocá-las a seu favor, há incidência necessária de tais normas, amparadas pela irrenunciabilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade, de modo que “a falta de zelo dos beneficiários na sua fiscalização e defesa não afeta sua validade e eficácia, pois são verdadeiramente direitos atemporais” 430.

Para Celso Antonio Pacheco Fiorillo, a manipulação de material genético é possível se tiver por finalidade “a busca da sadia qualidade de vida, visando alcançar um meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Menciona o autor, nesse sentido, a criação da Lei nº 8.974/95, que estabeleceu “normas para o uso de técnicas de engenharia genética e liberação do meio ambiente de organismos geneticamente modificados (OGM)” 431. Assevera, assim que:

A Constituição Federal, ao determinar a preservação da diversidade e integridade do patrimônio genético, não só admite a possibilidade de reprodução de seres vivos, mas também aceita esse tipo de técnica como forma de se tutelar o meio ambiente. Isso porque, preservando um número cada vez maior desses patrimônios genéticos (entenda-se também a proteção do DNA do ser, já que é neste que se encontra o gene, responsável por seu genótipo e fenótipo), o planeta estará mais precavido contra a possível extinção das espécies, decorrente da crescente degradação ambiental 432.

Fato é que a discussão do tema em questão é movida por diversos interesses, tendo, o econômico, significativa participação. Há quem sustente que, “estrategicamente, poder-se-ia perder mercado de consumo de países estrangeiros se o Brasil permanecesse reticente no tocante ao desenvolvimento dessa tecnologia” 433. Os interessados no desenvolvimento dessa tecnologia esquecem-se, porém, de mencionar que a utilização irresponsável da engenharia genética poderá representar risco ao meio ambiente, desaparecimento de espécies (que serão

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BENJAMIN, Antonio Herman. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (Org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p.119.

431 FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 5 ed. São Paulo:

Saraiva, 2004. p.195-196.

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E mais: “O alcance da engenharia genética em animais transcende o fator de aproveitamento econômico destes. Exemplo disso pode ser extraído do caso das ovelhas. Com feito, a criação de ovelhas transgênicas com o intuito de que viessem a produzir insulina (de origem humana) nas suas glândulas mamárias, para que o leite fosse rico dessa substância, essencial para os diabéticos, é um exemplo que demonstra benefícios outros que não o meramente econômico”. Há de se atentar, entretanto, para o tratamento que será dispensado ao animal após o atendimento da necessidade para a qual sua criação se deu, bem como se o procedimento acarretará sofrimento ao animal, o que é vedado pela Constituição. Ibidem, p.195-201.

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substituídas pelos OGM que garantirem melhor adaptação ao meio) e provocar o desequilíbrio dos ecossistemas, além de impactos imprevisíveis. Por isso o inciso V do § 1º do art. 225, CF, incumbe o Poder Público de “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”.

A Constituição Federal protege o patrimônio genético nacional contra a biopirataria, que consiste na apropriação indevida de recursos naturais da fauna e flora brasileiras, que são transportados para diversos países, causando significativos prejuízos econômicos e a extinção de espécies animais e vegetais. A biopirataria viola a Convenção sobre Diversidade Biológica, que, em seu preâmbulo, pontua “que os Estados têm direitos soberanos sobre os seus próprios recursos biológicos” 434

, não devendo “ser vistos como patrimônio comum da humanidade” 435.

Finalmente, no que atine à teratogenia – “possibilidade de o homem, misturando animais de raças diferentes, criar monstros” – analisando-se pelo prisma estritamente jurídico, não se observa expressa vedação constitucional de manipulação desses organismos; há de se ressalvar, todavia, a necessidade de controle, pelo Poder Público, da produção, comercialização e emprego de técnicas, métodos e substâncias capazes de provocar risco à vida, à qualidade de vida e ao meio ambiente, conforme inciso V do §1º do art. 225, CF. Para Celso Antonio Pacheco Fiorillo, tal previsão respalda a atividade de criação de organismos geneticamente modificados. Afirma o autor:

Deve-se atentar que o risco existe tanto que foi objeto de previsão constitucional, não se impondo que aludidas atividades fossem vedadas. Ademais, não poderia ser de outra forma, porquanto o nosso Texto Constitucional também assegura no art. 218 o desenvolvimento tecnológico, o que demonstra a necessidade da convergência deste com a preservação do meio ambiente. Vale frisar que o art. 193 da Constituição Federal, ao cuidar da ordem social, estabelece como objetivo o bem-estar e a justiça social, de forma que a tecnologia (na qual se insere a engenharia genética) e o meio

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BRASIL. Presidência da República Federativa do Brasil. Disponível legislação eletrônica Convenção sobre Diversidade Biológica, em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto /D2519.htm>. Acesso em 29 jun. 2013.

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FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 5 ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p.209.

ambiente são matérias que compõem essa ordem social e com esse propósito devem coexistir 436.

A nosso ver, a obrigação de “controle” imposta ao Poder Público pode (e deve) acarretar a proibição do desenvolvimento de determinada técnica teratogênica desde que esta implique em tratamento cruel ou sofrimento a animais ou risco à função ecológica da fauna e da flora. Isso porque a retromencionada previsão do inc. V, não deve ser interpretada isoladamente, mas em consonância com os demais dispositivos relativos à proteção do meio ambiente. Outra hipótese seria a de tal técnica por em risco determinada espécie animal, caso em que violaria o inc. II (também do §1º do art. 225, CF), que incumbe ao Poder Público “preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético” 437.