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4 DESCRIÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS

4.1 O acento gráfico nos dados de escrita espontânea: oficina de produção textual Passeio ao Zoológico

4.1.1 Descrição geral dos dados

Para fins de descrição e análise, os dados extraídos dos textos foram inicialmente classificados em acertos, omissões, trocas, grafias indevidas e híbridos, tal como exemplificado no capítulo relativo aos procedimentos metodológicos. O panorama dos índices encontrados pode ser visualizado na tabela 03. Os percentuais englobam apenas os contextos-alvo de acentuação, sem os dados de grafia indevida:

Tabela 03 – Distribuição dos dados referentes ao acento gráfico encontrados nos textos espontâneos ano acertos omissões trocas híbridos subtotal grafias

indevidas total 3° 23 22,3% 79 76,7% -- -- 01 1,0% 103 05 108 5° 66 40,5% 91 55,8% 05 3,1% 01 0,6% 163 06 169 total 89 33,5% 170 63,9% 05 1,9% 02 0,7% 266 11 277 Fonte: Elaboração própria

Os números apresentados na tabela 03 demonstram que o acento gráfico é omitido com muita frequência nos textos espontâneos infantis, de ambos os anos. O número de omissões representa 63,9% do total de 266 contextos-alvo de acentuação gráfica encontrados nos textos. Esse índice é ainda maior do que aquele encontrado por Ney (2012), cujo estudo também analisou a grafia do acento em textos espontâneos das séries iniciais31. Na ocasião, o percentual de omissões do acento somava 48% dos dados, considerando um corpus composto por pouco mais de 3.000 contextos-alvo.

Observa-se, também, que são escassas as trocas no terceiro ano, e no quinto, todas as cinco ocorrências de troca do acento foram produzidas pela mesma criança. Os dados considerados híbridos também são escassos: uma ocorrência da grafia ‘jácaré’ para ‘jacaré’, encontrada em um texto do terceiro ano, e uma ocorrência de ‘sábiás’ para ‘sabiás’, produzido por um sujeito do quinto ano. Entre os dados encontrados, 11 deles configuram-se como grafia indevida do acento, dos quais 5 foram identificados em textos do terceiro ano e 6 são provenientes do quinto ano.

31 As séries iniciais referidas em Ney (2012) correspondem às quatro primeiras séries do Ensino Fundamental com oito anos de duração, atualmente já extinto no Brasil.

Considerando o baixo número de ocorrências de trocas, grafias indevidas e dados híbridos, estes dados foram submetidos somente à análise qualitativa. Já os percentuais das grafias classificadas como acertos e omissões referentes ao uso do acento na escrita espontânea estão ilustrados na figura 05:

Figura 05 – Gráficos de percentuais de acertos e omissões do acento gráfico nos dados de escrita espontânea do 3° e do 5° ano

Fonte: Elaboração própria

Observando-se os índices da figura 05 é possível verificar que no terceiro ano o número de acertos é relativamente baixo (22,3%) e que a maioria das palavras grafadas tiveram o diacrítico omitido (76,7%). Nos dados extraídos dos textos do quinto ano, a distribuição entre acertos e omissões é mais equilibrada, e o percentual de acertos (40,5%) representa quase o dobro do índice de acertos do terceiro ano. Esses dados vão ao encontro da análise relativa à grafia do acento realizada anteriormente na pesquisa de Ney (2012). Ao analisar estatisticamente o efeito da variável série na utilização do acento gráfico, Ney (op. cit.) verificou que os índices de acertos aumentam gradativamente ao longo das quatro séries dos anos iniciais, sendo que a quarta série foi selecionada pela rodada estatística como sendo a etapa escolar mais favorecedora ao emprego adequado do acento gráfico nas produções escritas infantis. Esse resultado sugere que as crianças da quarta série já haviam se apropriado do uso do acento gráfico de um modo mais consistente, o que pode ser verificado também nos dados aqui analisados, pois a diferença entre a distribuição de acertos e omissões em cada ano é bastante expressiva.

Tais análises podem sugerir que o avanço na escolarização promove, seja por meio do ensino explícito das regras ortográficas de acentuação, seja por meio da intensificação de práticas letradas, um processo de apropriação do sistema de

22,3% 40,5% 76,7% 55,8% 3° ano 5° ano acertos omissões

acentuação gráfica pelas crianças, o qual passa a constituir o léxico ortográfico dos aprendizes ao longo da aprendizagem da escrita.

As grafias classificadas como trocas contemplam tanto a substituição do tipo de acento e a alteração da sílaba acentuada de forma concomitante na palavra quanto a grafia do acento na sílaba inadequada. Nos dados aqui analisados não se observou casos de trocas do tipo de acento grafados na sílaba tônica da palavra. As trocas somam apenas cinco casos e, como já referido, foram todos produzidos pela mesma criança, estudante do quinto ano. Os exemplos de trocas podem ser visualizados no quadro 08:

grafia produzida forma ortográfica

caractêristicas características

arêa área

vidéo, vidêo vídeo

sábia sabiá

Quadro 08 – Exemplos de grafias em que ocorreram trocas referente ao acento gráfico

Fonte: Elaboração própria

A partir destes exemplos pode-se inferir que a criança, ao cometer esse tipo de troca, parece já saber que essas palavras recebem acento gráfico, entretanto, por desconhecer sua função na escrita como um marcador de tonicidade, o utiliza de modo inadequado, pois pode não estar encontrando apoio no seu conhecimento linguístico para estabelecer uma relação entre os aspectos fonológicos e os recursos gráficos disponíveis no sistema ortográfico. Verifica-se, contudo, que em ‘características’ e ‘vídeo’, o acento gráfico na vogal ‘i’ opera exclusivamente para marcação de tonicidade, isto é, o acento não acumula a função indicativa de timbre vocálico, inclusive pelo fato de as vogais altas nunca sofrerem alternância tímbrica. Em ‘área’ e ‘sabiá’, a qualidade da vogal acentuada ‘a’ pode sofrer alteração para o timbre nasal, mas isso só ocorre quando seguida de uma consoante nasal, contexto em que se aplica o acento circunflexo (câmera, âncora, lâmpada).

Essas considerações sobre a relação entre acento gráfico, tonicidade e timbre são importantes porque podem ajudar a interpretar grafias como aquelas apresentadas no quadro 08: nota-se que o acento foi grafado preferencialmente na vogal média. Esse dado, juntamente com as demais análises realizadas (NEY, 2012)

sugere que a hipótese inicial das crianças sobre a função do acento é vinculada à indicação do timbre vocálico, sobretudo das vogais médias e médias baixas.

As grafias indevidas somam 11 ocorrências dentre os dados de utilização do acento encontrados nos textos. Embora não constituam contextos-alvo de acentuação previstos pela ortografia, estes dados são importantes e devem ser descritos e analisados, uma vez que podem apontar indícios sobre as hipóteses dos aprendizes sobre o acento gráfico. O quadro 09 exemplifica os casos de grafia indevida do acento encontrados nos textos espontâneos:

grafia produzida forma ortográfica 3° ano rá rã papágaio papagaio éla ela nó sa nossa oscoégo os coelhos 5° ano nós (2x) nos avés aves

áraras, arára arara(s)

gîrafa girafa

Quadro 09 – Exemplos de ocorrências de grafias indevidas do acento gráfico Fonte: Elaboração própria

Tal como apresentado em Ney (2012), os dados de grafia indevida do acento podem suscitar mais de uma interpretação. As hipóteses possíveis para cada grafia podem ser variadas, sendo tanto de ordem gráfica quanto de caráter fonológico. Em Ney (op. cit.) foram encontrados 222 casos de grafia indevida em um universo de quase mil textos espontâneos. No estudo são apresentadas três hipóteses que poderiam justificar os critérios utilizados pelas crianças ao grafarem acentos indevidos:

i) O acento [agudo] é utilizado para marcar a abertura do timbre vocálico - como em ‘éla’ para ‘ela’

ii) A grafia do acento é motivada por formas parecidas ou pelo fato de derivar de palavras cuja forma primitiva é acentuada – como em ‘saúdavel’ para ‘saudável’

iii) O acento é grafado para marcar a sílaba tônica da palavra – como em ‘brúcha’ para ‘bruxa’

Para as ocorrências aqui analisadas, as possibilidades de interpretações estão agrupadas da seguinte forma:

i) a grafia do acento é motivada pela influência do léxico ortográfico

Os acentos grafados em ‘rá’, ‘nós’, ‘nó sa’ e ‘avés’ poderiam ser justificados por meio desta hipótese:

• Em ‘rá’, a existência de um elemento gráfico sobre a vogal no monossílabo ‘rã’ é conhecida pela criança, porém ainda não haveria definição sobre as diferenças entre os diacríticos: til, acento agudo e acento circunflexo. Postula-se a ideia de que tais diacríticos estariam armazenados na memória visual da criança, sem uma definição específica acerca da função de cada um e sua consequente utilização adequada. Dois fatos se somam ao reconhecimento visual: a baixa frequência de monossílabos grafados com til sobre a vogal ‘a’ – apenas sete registros para o PB32 versus monossílabos acentuados bastante frequentes como ‘chá’, ‘lá’, ‘pá’, ‘má’, e a frequente e equivocada confusão conceitual apresentada em materiais didáticos, os quais apresentam o til e o acento gráfico como elementos que desempenham a mesma função na ortografia.

• A acentuação gráfica de ‘nós’ para ‘nos’ poderia estar vinculada à existência de ambas as formas disponíveis na ortografia para se escrever cada pronome, o tônico e o átono. Não se pode descartar a hipótese de uma possível supergeneralização influenciada pelos monossílabos acentuados: a ideia de que se é um monossílabo, deve ser acentuado graficamente pode ser um critério para a utilização indevida do acento, neste caso.

• Em ‘nó sa’, além da grafia indevida do acento, observa-se a existência de hipersegmentação não convencional da palavra ‘nossa’. Assim, a primeira sílaba, ao ser isolada, poderia ser interpretada como uma grafia similar a uma forma já existente na nossa ortografia, a do monossílabo ‘nó’, embora a grafia indevida neste caso também possa ser justificada pela abertura do timbre vocálico, hipótese apresentada a seguir.

32 rã, lã, jã, iã, gã, dã e Pã. Busca realizada no site www.palavras.net, o qual efetua pesquisas a partir de filtros diversos em um total de 180.289 palavras do português brasileiro. Acesso em junho/2018, versão 3.5.

• A grafia de ‘avés’ para ‘aves’ poderia ser compreendida pela influência da memória visual ao se considerar a preferência das crianças por grafar o acento em vogais médias. Inicialmente essa hipótese se justificaria pelo timbre, logo, as crianças tendem a selecionar as vogais médias como sendo um contexto favorável à grafia do acento, dado o recorrente acesso visual a vogais médias acentuadas.

ii) O acento é grafado para marcar a abertura do timbre vocálico

• Em ‘éla’ e ‘nó sa’, o acento agudo pode ter sido grafado sobre as vogais médias baixas /ɛ/ e /ɔ/ como um indicador do timbre aberto destas vogais, tal como constatado em Ney (2012), em que 60% dos dados de acento indevido foram grafados nas vogais médias baixas.

iii) O acento indevido coincide com a sílaba tônica da palavra

Dentre as ocorrências de grafia indevida do acento, verificou-se que quatro dados podem ser interpretados sob esta hipótese: ‘éla’, ‘nó sa’, ‘oscoégo’ e ‘arára’. Ainda que este critério deva ser considerado, cabe salientar que destes quatro casos, três apresentam o acento gráfico em vogais médias, as quais parecem ser as preferidas para a grafia do acento pelas crianças (NEY, 2012).

iv) A grafia do acento indevido é motivada por incertezas referentes ao formato prosódico da palavra

As ocorrências de ‘áraras’, ‘arára’33 e ‘papágaio’ sugerem que a sequência de sílabas cujo núcleo é preenchido pela vogal baixa /a/ podem constituir um obstáculo para a percepção da tonicidade das sílabas. Tal hipótese encontra subsídio nos resultados encontrados no teste de sensibilidade ao acento prosódico realizado com as crianças com o auxílio do software TP: a análise estatística indicou diferenças significativas no tempo de resposta quando os pares de pseudopalavras eram contrastantes e formados pela vogal baixa 34 . Nesse sentido, a hipótese de interpretação para tais grafias teria por base uma potencial complexidade originada

33 Embora este acento indevido coincida com o formato prosódico da palavra, este dado foi incluído nesta hipótese porque foi produzido pela mesma criança que escreveu ‘áraras’. Assim, tal alternância de grafia pode sugerir sua incerteza a respeito do formato prosódico da palavra.

34 Os resultados do referido teste e suas respectivas análises estatísticas estão descritos na seção 4.2 deste capítulo.

pela qualidade da vogal, a qual incitaria a acentuação indevida com o intuito de se distinguir alguma das sílabas em relação às demais.

O acento circunflexo grafado na palavra ‘girafa’ é um exemplo de casos pouco frequentes nos dados de aquisição da escrita. Das 3383 ocorrências que envolviam o acento gráfico analisadas em Ney (2012), há apenas um registro de grafia do acento circunflexo sobre a vogal ‘u’, fato que revela o modo como a informação gráfica pode afetar a constituição do léxico ortográfico, já que crianças expostas à ortografia do português dificilmente produzem formas gráficas inexistentes no sistema, tal como em ‘gîrafa’.

Tal como referido, há apenas dois casos classificados como dados híbridos, os quais apresentam a grafia de mais de um acento na palavra. Foram considerados híbridos por terem a sílaba tônica devidamente acentuada, mas, ao mesmo tempo, outro acento grafado de forma inadequada: ‘jácaré’ e ‘sábiás’. Ainda que escassos, tais dados podem ser interpretados como indícios acerca da dificuldade que o diacrítico representa aos aprendizes durante o processo de aquisição da escrita. As grafias indevidas do acento nas sílabas ‘já’ e ‘sá’ podem ser interpretadas como resultado de uma possível influência da memória gráfica, a qual armazena uma tendência em marcar a vogal baixa com o diacrítico. Outra interpretação possível para estas grafias sugere que as grafias em ‘já’ e ‘sá’ podem ser baseadas em uma motivação rítmica, considerando-se a incidência do acento secundário (COLLISCHONN, 1994).

Nas subseções a seguir, os dados de escrita espontânea estão descritos e analisados considerando-se seu formato prosódico e a qualidade das vogais acentuadas.