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O desejo de saber e o saber sobre o desejo

CAPÍTULO 3: A INTERFACE EDUCAÇÃO E PSICANÁLISE

3.1. O desejo de saber e o saber sobre o desejo

Pensando no processo de aprendizagem, é preciso levar em consideração, desde o início, o desejo de saber. Na criança, isso acontece quando ela percebe que “o ‘saber’ adquiriu o brilho do objeto do desejo para os pais” (CORDIÉ, 1996, p. 23). Além disso, existe uma expectativa de que ela também o tome como objeto de desejo, afinal, uma das célebres colocações de Lacan (1966 [1998, p. 696-701]; 1973 [1998, p. 223]) destaca o fato de que o desejo do sujeito, invariavelmente, é determinado pelo desejo do Outro. No momento de entrada na escola, a criança nota que sua aprendizagem é valorizada por seus pais. Quando pensamos em aprendizagem, referimo-nos à construção de um saber que, no viés da psicanálise, é entendido como algo subjetivo, elaborado pelo sujeito e (re)significado de acordo com suas experiências singulares.

O que a criança quer saber – o que o Outro quer de mim? – diz respeito ao brilho fálico, que se encontra alhures e que a mãe (Outro primordial) deseja para além dela. Na situação relacional, torna-se importante a relação de cada um com o objeto de seu desejo, além do imaginário sobre a sua posição como objeto de desejo do Outro (MANNONI, 1999, p. 186). Diante da falta do/no Outro, da castração do Outro, a criança pode se confrontar com a própria falta, constituindo-se como sujeito de desejo. Nesse momento, iniciam-se as investigações das crianças, em busca de um saber sobre o desejo – do Outro – , e sobre sua posição enquanto sujeito desejante.

O processo de aprendizagem, nas classes de alfabetização, ganha uma sistematização prévia, exigindo um posicionamento de submissão às regras definidas pela instituição escolar. Durante esse processo, a criança se depara com uma demanda dos pais, dos professores e da sociedade. Essa demanda atribui uma importância ao sucesso e às boas notas que ela deverá obter na escola, para a satisfação daquelas pessoas que são

significativas para ela e para a sua própria satisfação em atender ao que esperam dela. Como a criança não separa o julgamento de valor e o amor dedicado a ela, a angústia gerada pela competitividade, como escreve Cordié (1996, p. 24), parece ser mais nociva nos primeiros anos da aprendizagem escolar.

O desejo de saber, no texto Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, é chamado, por Freud (1905), de pulsão de saber. O pai da psicanálise afirma que os interesses práticos da criança – a origem dos bebês – irão impulsioná-la ao início da atividade investigatória. Contudo, essa curiosidade, esse desejo de saber, pode ser inibido em função de conflitos inconscientes e, a partir dessa interdição à pulsão de saber, o desejo pode ser abandonado e a criança passa a fazer seus investimentos libidinais para “nada saber”. Assim como na anorexia, em que há uma demanda do Outro para que a criança coma, e ela, em função dessa demanda esmagadora, rejeita o alimento, o processo de aprendizagem pode ser interrompido, quando a criança percebe uma exigência excessiva, uma ordem latente para que aprenda. O desejo de saber é inibido (CORDIÉ, 1996, p. 126) e pode ser interditado, quando a ação de aprender representa uma espécie de ameaça ao equilíbrio psíquico do sujeito.

Essas motivações inconscientes podem fazer com que uma criança não tenha desejo de ler e de escrever e se posicione de forma a resistir à aprendizagem. Porém, esse tipo de motivação é desconsiderado pelas teorias de aprendizagem, em função de estas não tomarem o sujeito como faltoso e cindido pela linguagem. Essa resistência pode estar vinculada a algum ponto de angústia da criança, relacionado à sua realidade psíquica. Podemos entender tal resistência à aprendizagem como um alerta diante de “um perigo desconhecido”, tratado por Freud (1926) como um perigo neurótico, de ordem pulsional. No entanto, essa condição é ignorada pela escola, apagando o sujeito e calando sua voz dissonante. Há, no âmbito pedagógico, uma suposição de que a criança vai gostar de ler, naturalmente, quando motivada pelo professor e que, caso isso não aconteça, é preciso investigar para descobrir qual é o “defeito”, o problema que a impede de prosseguir em seu processo de aprendizagem da leitura e da escrita.

Ainda sobre a inibição diante desse tipo de aprendizagem, Bettelheim (1984, p. 64- 83) afirma que os chamados “erros de leitura” podem ser significativos para a criança, por dizerem algo sobre ela. Esses “erros” podem ser tanto mensagens – de motivação inconsciente –, endereçadas ao adulto para quem a criança está lendo, quanto representantes de conflitos provocados pelo conteúdo da leitura, ou podem, ainda, ser atribuídos a um

“desejo de ler diferentemente”, o que não deve ser entendido como incapacidade ou inabilidade da criança. Essas ações, consideradas improdutivas pelos professores, muitas vezes, trazem indícios da posição subjetiva da criança, o que não pode ser reconstruído por meio dos aparatos técnicos e metodológicos do processo de ensino-aprendizagem.

Apesar de os pedagogos considerarem a importância do desejo de aprender dos alunos, eles acreditam que a metodologia, quando bem aplicada, pode suscitar esse desejo, ignorando a existência das fontes libidinais24 do desejo de saber (MILLOT, 1987, p. 146). Essa economia psíquica, diretamente responsável pelo funcionamento inconsciente – tido por Rassial (2002, p. 2) como o “vetor” de toda e qualquer aprendizagem –, permite-nos afirmar que os métodos utilizados pelos professores para a transmissão de conhecimentos são irrelevantes diante do desejo de aprender da criança.

Dentro dessa perspectiva psicanalítica e, novamente, de acordo com Millot (1987, p. 149), a educação não se dá através da aplicação “correta” de uma teoria de aprendizagem, mas “com o que se é”. Se não comandamos o inconsciente, não podemos controlar os efeitos causados sobre outra pessoa. Esses efeitos não podem ser previamente calculados por teorias pedagógicas, pois o que está em jogo na relação de ensino-aprendizagem, entre o método e os resultados, é o inconsciente do professor e do aluno. Apesar disso, a ciência da educação, como toda ciência, fundamenta-se no pressuposto de que os efeitos da relação professor-aluno podem ser dominados, o que foraclui o sujeito, como nos ensina Lacan (1966 [1998, p. 869-892]).

O que queremos destacar, aqui, é que a relação professor-aluno, uma relação de ordem transferencial, calcada no desejo de dois sujeitos singulares, dá-se na particularidade desse encontro, em que o laço não se faz pelo que o professor crê comunicar ao seu aluno, mas pelo que é transmitido do seu próprio inconsciente pela via da palavra, o que atravessa essa relação de forma mais determinante do que qualquer uma de suas intenções conscientes (MILLOT, 1987, p. 150). Por isso, podemos pensar que aqueles que são considerados bons professores são os que passam, pela via da transmissão, o gosto por aquilo que ensinam (CORDIÉ, 1996, p. 42). Esses professores, quando atuam, transmitem algo de sua “paixão”, contagiando o aluno com seu próprio “amor ao saber” e fazendo dele

24 Nas palavras de Freud, libido “é um termo empregado na teoria [das pulsões] para descrever a manifestação

dinâmica da sexualidade; a libido era a manifestação da força do amor, no mesmo sentido que a fome o era do instinto autopreservativo” (Dois verbetes de enciclopédia: A teoria da libido, 1923, vol.XVIII).

um sujeito desejante do saber sobre si e sobre o mundo. Contudo, esse encontro entre professor e aluno é sempre imprevisto e cerceado pelas expectativas de todos os envolvidos no desenvolvimento do processo de ensino-aprendizagem.

Os professores, assim como as crianças, também estão submetidos “a um imperativo de sucesso” (CORDIÉ, 1996, p. 24-39) e, diante da singularidade de cada aluno, podem se sentir impotentes, sentados no “banco dos réus”, culpados, juntamente com seus alunos, pelos impasses no/do processo de ensino-aprendizagem. Esse quadro nos faz problematizar a rejeição do professor diante do aluno que se diferencia do grupo, possivelmente, como um mecanismo de defesa, na tentativa de evitar que qualquer tipo de insucesso seja atribuído a ele e a alguma deficiência de seu trabalho. Todavia, sabemos que a diferença, no contexto escolar, não tem uma causa única e que essa posição sempre deflagra um processo de exclusão e de rejeição. Na criança que traz um rótulo “colado à pele”, pode haver um sofrimento psíquico agravado por uma espécie de “ferida narcísica”, de uma depreciação que vem do outro e de si mesmo, em um jogo de olhares de caráter punitivo.

Sendo assim, podemos abordar os problemas vivenciados por alunos e professores como consequências dessa “ferida narcísica”. Sabemos que alguns alunos são marcados por excessivas (e ilusórias) tentativas “de colmatar a irrupção de qualquer falta”, já outros são “bloqueados pela violência da palavra negada” e muitos, ainda, são “inibidos intelectualmente pelo não-reconhecimento de seus desejos ou esmagados pelas imperiosas demandas ditadas de fora” (SOUZA, 2008, p. 221). Quanto aos professores, estes aparecem na posição de desorientados e desestimulados em sua prática, descomprometidos com sua atuação profissional e, muitas vezes, adoecidos, como temos lido continuamente nas reportagens que versam sobre o cotidiano escolar.

Com essas considerações, voltamos ao ponto central de nossa discussão, afirmando que o encontro com o professor tem uma grande influência nas futuras experiências da criança, dentro e fora do contexto escolar (BETTELHEIM, 1984, p. 16). É essa relação entre professor e aluno, tomada, aqui, como peculiar, que trazemos ao longo deste capítulo.