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O exame: a armadilha da visibilidade

CAPÍTULO 2: A EDUCAÇÃO NA “ÓTICA” FOUCAULTIANA

2.1. A sala de aula como um (micro)sistema disciplinar

2.1.1. O exame: a armadilha da visibilidade

A escola faz uso de um conjunto de práticas disciplinares: da organização dos conteúdos em “disciplinas” seriadas à disposição das carteiras na sala de aula, dos variados

documentos de registro do rendimento do aluno e do trabalho do professor às relações hierárquicas de poder. Todas elas visam ao enquadramento dos indivíduos às regras de conduta estabelecidas a priori e ao gerenciamento (invisível) da população escolar. Em relação ao aluno, uma das práticas mais utilizadas pela escola é a avaliação. Em meio ao objetivo de verificar aprendizagens, aloja-se, no exame, o poder de fabricar e objetificar o aluno e sua diferença, avaliando-o e o classificando em função de uma média que padroniza aquele grupo.

Pensamos no exame, em um viés foucaultiano, como uma estratégia de poder-saber, como um instrumento de controle, de exercício de poder que permite observar, avaliar, detectar, para melhor “governar” aqueles que estão na condição de examinados. É uma espécie de “poder polimorfo, polivalente”. Fundamentado no discurso do poder judiciário, o sistema escolar avalia, classifica, pune e recompensa, reforçando a dicotomia “melhor- pior”. A questão, para Foucault (1973 [1999, p.120-121]), gira em torno do motivo pelo qual, “para ensinar alguma coisa a alguém, se deve punir e recompensar”.

O exame está programado para localizar o desvio, ou melhor, o que é desviante, que se distancia da norma, associando a hierarquia que vigia e a sanção que normaliza, de acordo com Pignatelli (1994, p. 129). Essa prática que, como na concepção behaviorista de aprendizagem, prioriza a recompensa e a punição enquanto estratégias de motivação do aluno, silencia as singularidades e destaca a “necessidade” de resgatar o diferente, de restaurar-lhe a normalidade para que esse aluno possa ser incluído dentro da média que caracteriza aquele grupo.

Por meio do discurso da pedagogia, em especial, quando trata do exame – dispositivo ótico e enunciativo, rede discursiva que controla os indivíduos, como podemos ler em Larrosa (1994, p. 67) –, a escola se torna capaz de constituir modos de subjetivação, tanto do professor quanto do aluno, através das avaliações e posteriores representações estabelecidas pelo e sobre o avaliado. É pela/na linguagem que o sujeito é nomeado e, quando o discurso pedagógico o nomeia, está “fabricando” esse sujeito em função das verdades estabelecidas a priori sobre ele.

Ao circunscrever noções como a de infância e a de aprendizagem, a pedagogia as produz e as nomeia, assim como produz, ao mesmo tempo, o que é ser criança, o que é ser professor e o que é ser aluno, atribuindo-lhes um lugar discursivo. Esse tipo de poder é chamado, por Foucault (1973 [1999, p. 121-122]), de “epistemológico”, não só por provocar a produção de um saber sobre os indivíduos submetidos ao olhar vigilante do

panóptico, mas também por engendrar o seu controle. Esse saber sobre os indivíduos advém da técnica do exame: da observação, da classificação, do registro e da análise de seus comportamentos, o que permite a comparação entre esses indivíduos.

O panoptismo tem uma caracterização tripla, para Foucault (1973 [1999, p. 103]), que envolve a vigilância, o controle e a correção. Essa é sua dimensão fundamental, a qual determina as relações de poder que cerceiam o laço social. Uma das especificidades da técnica do exame é carregar, em si, a obrigação do “jogo do olhar”, fazendo da visibilidade dos vigiados a condição para sua própria vigilância: uma multiplicidade de vigilâncias que se entrecruzam pela via do olhar que tudo vê, tentando não ser visto (FOUCAULT, 1975 [1986, p. 154]). Esse efeito de permanente visibilidade – baseado no panóptico de Bentham e expandido a outras formas de vigilância – assegura a eficácia do poder disciplinar, que pode ser aplicado sempre que existir uma tarefa e/ou comportamento imposto a um grupo de indivíduos, a quem se pretende avaliar e classificar em função de um padrão de normalidade.

Por estar em toda parte, o poder disciplinar, base do dispositivo do exame, controla também aqueles que são encarregados do controle: ninguém escapa ao olhar que avalia, classifica e sanciona. No cotidiano escolar, podemos “ver” essas práticas nas provas aplicadas aos alunos, nos diários de classe dos professores, nas atas das reuniões internas e/ou de pais, no controle de chegada e saída dos funcionários e dos alunos, na vigilância dos inspetores nos corredores e intervalos de aula. Na maioria delas, a escrita se faz presente: um modo de registro que viabiliza o controle e a construção da “verdade” sobre o que pode ser visto e anotado.

Esses instrumentos escolares, marcados pelo uso de uma escrita “disciplinar”, trazem, em seu bojo, a teoria do desenvolvimento infantil (os estudos piagetianos) que, nas palavras de Larrosa (1994, p. 62), tangencia uma “sequência temporal, normativamente construída, do que a criança, com seu comportamento, torna visível”, estabelecendo, simultaneamente, o sujeito e o objeto da visão, assim como o tempo e o espaço da pedagogia, todos eles homogêneos e uniformes.

O trabalho de Piaget, apoiado nos parâmetros da razão científica sobre estágios “naturais” de desenvolvimento, possibilita, através de suas práticas discursivas, o acompanhamento monitorado do desenvolvimento de cada criança, o que colabora para a naturalização da pedagogia enquanto saber sobre sua educação (WALKERDINE, 1998, p. 177). As categorias das fichas de observação ou de registro, como também são chamadas,

tangenciam o comportamento dos alunos. O comportamento é entendido, segundo a autora (1998, p. 152), como resultado das atividades e experiências oferecidas às crianças, sempre em função de seu estágio de desenvolvimento, o que o torna esvaziado de seu conteúdo singular e normalizado de acordo com os critérios escolares de avaliação.

Como um documento que pode ser usado eventualmente, inclusive para resguardar a escola e seus profissionais de futuras cobranças, o exame pode ser considerado um arquivo mais ou menos minucioso, de acordo com a circunstância em que é utilizado, atando o indivíduo a uma “rede de anotações escritas” (FOUCAULT, 1975 [1986, p. 168-69]). Essa rede permite a criação de parâmetros comparativos que estabelecem categorias e normas e, então, o “aparelho da escrita” constrói o indivíduo como um “objeto descritível” e analisável, em relação a um sistema de medidas globais que fixa a estimativa do que é um comportamento desviante.

Sendo um aparelho de constantes exames e, consequentemente, de comparações, a escola fixa padrões no mesmo momento em que estabelece representações que ganham caráter de verdade, verdade sobre o indivíduo. O exame se refere a uma regularidade, em que o comportamento é avaliado quantitativamente: notas boas ou ruins, alunos bons ou ruins, reforçando a ideia dicotômica de sucesso ou fracasso.

Nas palavras de Foucault (1975 [1986]), o exame serve para

distribuir os alunos segundo suas aptidões e seu comportamento, portanto segundo o uso que se poderá fazer deles quando saírem da escola; exercer sobre eles uma pressão constante, para que se submetam todos ao mesmo modelo, para que sejam obrigados todos juntos “à subordinação, à docilidade, à atenção nos estudos e nos exercícios, e à exata prática dos deveres e de todas as partes da disciplina”. Para que, todos, se pareçam (FOUCAULT, 1975 [1986, p. 163]).

É significativo ressaltar que o exame pode ter vários nomes, segundo o contexto em que está inserido: consulta, avaliação, entrevista, dinâmica de grupo, perícia, laudo, contemplando os discursos clínico, pedagógico, organizacional, econômico e jurídico. Por ser exercido de maneira invisível, contraditoriamente, impõe visibilidade ao examinado; aliás, é o fato de sempre poder ser visto que mantém o indivíduo disciplinado. Essa técnica produz e é produzida em relações de poder-saber, já que, segundo Foucault (1975 [1986, p. 165]), permite estabelecer e fazer funcionar, dentro de um mesmo mecanismo, as relações

de poder que possibilitam a construção de um saber, fazendo com que ambos se constituam mutuamente.

O indivíduo, diante de uma das técnicas de exame, passa a ser caracterizado como um caso, que pode ser medido, descrito, analisado e comparado com outros, além de ser, a partir daí, treinado, classificado, incluído ou excluído, normalizado e normatizado, segundo as estatísticas. Dessa forma, o exame pode detectar e classificar as diferenças individuais através de seu ritual, legitimado cientificamente, fazendo do examinado, ao mesmo tempo, efeito e objeto de poder e de saber.

O panoptismo é uma forma de poder baseada na vigilância dos indivíduos, por meio dos dispositivos do exame e das tecnologias de si (FOUCAULT, 1973 [1999, p. 86-88]). Esse tipo de vigilância tem o poder de constituir um saber normalizado sobre aqueles a quem vigia, ou seja, consiste em outro modo de saber que se constitui em um saber de vigilância, de exame. Essa relação de saber-poder vai permitir o aparecimento do que chamamos ciências humanas, discutido mais amplamente na seção 2.3 deste capítulo. Antes disso, atentaremos para as questões em torno do discurso no contexto educacional.