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Transferência: uma relação peculiar entre professor e aluno

CAPÍTULO 3: A INTERFACE EDUCAÇÃO E PSICANÁLISE

3.2. O conceito de transferência: da psicanálise à educação

3.2.1. Transferência: uma relação peculiar entre professor e aluno

O início da escolarização traz consigo o aprendizado de uma língua, considerado, nesta pesquisa, como equivalente ao aprendizado de uma língua estrangeira, afinal, uma aprendizagem é sempre uma empreitada diante do desconhecido (KRISTEVA, 1994, p. 198). O encontro com essa “língua estrangeira” se dá, nas classes de alfabetização, por meio da relação estabelecida entre professor e aluno. A aprendizagem da “língua da escola”

pode provocar um mal-estar na criança, quando esta se posiciona diante daqueles caracteres impostos de fora, com os quais terá que ter familiaridade e aos quais deverá atribuir sentido. Sendo assim, a aquisição da linguagem oral, que chamamos de aprendizagem da língua dita materna, é, desde o início, aprender uma língua estrangeira, já que é sempre a língua do outro, o Outro primordial – a mãe ou aquele que ocupa a sua função.

Consideramos, então, a língua materna enquanto língua que é do outro e de si mesmo e, portanto, simultaneamente, lugar do estranhamento, do interdito, do repouso e do gozo (CORACINI, 2007, p. 131-132). Chamada de língua materna, essa língua, assim como a mãe, conforta e expõe a falta que é constitutiva do sujeito e impossível de ser tamponada. Sendo assim, de acordo com Coracini (2007, p. 137), “como falar de língua estrangeira se essa língua também constitui o sujeito? E como falar de língua materna, própria, se também esta provoca, no sujeito, experiências de estranhamento”?

As concepções de aprendizagem, fundamentadas, principalmente, nas teorias psicológicas cognitivistas, entendem a língua como instrumento de comunicação, como língua objetificada, controlada e controlável, desconsiderando, desse modo, a historicidade do sujeito e do discurso. No entanto, segundo Coracini (2007, p. 119-126), a língua falada na escola não é a língua falada pela criança, mas “uma outra língua na mesma língua”, lugar de estranhamento e de muitos impasses no campo da sistematização da aprendizagem. Pensamos, aqui, no ingresso à escola como uma das formas de inscrição na linguagem e, para tanto, a concepção de língua na qual nos fundamentamos aponta para as fronteiras movediças entre o familiar e o estranho da dita língua materna, o que nos leva a considerar, com Freud, que a educação é um dos campos sociais cuja prática é caracterizada pelo impossível. O impossível ao qual nos referimos é entendido enquanto limite alcançado pela ação educativa, enquanto resistência de pais, professores e alunos diante da posição de assujeitamento aos valores da educação, enquanto parte circunscrita do indizível nomeado por Lacan como registro do Real. O impossível pode, ainda, trazer indícios da constituição subjetiva, sempre faltosa, tangenciada pela passagem da criança pela escola.

Esse encontro com a “língua da escola”, que afeta25 cada criança de forma diferente, impõe-nos a questão da singularidade. Entendemos que não há como falar em educação, na relação professor-aluno, sem levar em conta essa noção. Na concepção de Coracini (2005,

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De acordo com a psicanálise lacaniana, “Afeto é portanto [sic] o que afeta o sujeito por uma via significante, é claro (como ocorre aliás [sic] com tudo que o afeta), mas sem a mediação das significações” (ELIA, 2004, p.32).

p. 24), a singularidade é uma “(re)organização – sempre particular, sempre diferente” – dos elementos que constituem o sujeito, considerando que seu dizer e seu fazer “são sempre repetição [...] e sempre diferença”. Acreditamos que não há possibilidade de pensar no processo de ensino-aprendizagem sem mencionar que essa relação professor-aluno é da ordem da transferência, relação que inclui dois sujeitos singulares e desejantes.

Sabemos que a demanda do sujeito é sempre demanda de amor e, no divã, o sujeito do inconsciente demanda amor pelo saber, amor pelo saber sobre si mesmo que o analisando supõe ao analista. Pensamos que podemos ousar transpor essa situação de análise – guardadas todas as diferenças entre o setting analítico e a sala de aula, entre o analista e o professor, entre o processo de análise e o de aprendizagem – para o âmbito da educação. Entre aluno e professor, há (ou deveria haver) uma relação peculiar da ordem da transferência; uma demanda de ambos, que é sempre demanda de amor; há a suposição de um saber que não se limita aos conteúdos transmitidos, mas que aponta para o que é transmitido e compartilhado para além deles.

Uma relação permeada pelas palavras – ditas e veladas – não pode prescindir do inconsciente, o que nos leva a indagar: como pensar a educação sem considerar o inconsciente? Como dizer que a relação professor-aluno-saber pode ser controlada e racional, desconsiderando-se os conflitos constitutivos do sujeito? Essa relação professor- aluno é uma relação transferencial, na medida em que se caracteriza como uma manifestação inconsciente, na qual ocorre a atribuição de “um sentido especial àquela figura determinada pelo desejo”, como destaca Kupfer (1988 [1992, p. 91]). Nessa relação, há a construção de um saber e não somente a obtenção de informações, que faria do processo de ensino-aprendizagem algo objetivo. A aquisição de um saber, de acordo com a mesma autora (KUPFER, 2000 [2001, p. 119]), exige uma implicação do sujeito – “uma presença de sujeito”, visto como desejante –, porque sempre se dá pela via da transmissão.

Essas premissas, no entanto, estão muito distantes do cotidiano do professor em sala de aula. O que se mostra preponderante, ainda hoje, nas abordagens que ancoram o processo de ensino-aprendizagem, são as teorias psicológicas de desenvolvimento cognitivo que, nas palavras de Mannoni (1999, p. 197), só consideram a história do sujeito na medida em que representam benefício ou impedimento ao processo de “maturação”. Não há como negar a ocorrência do desenvolvimento de habilidades na escola (SOUZA, 2008, p. 220), mas conceber a singularidade do sujeito enquanto comportamentos adquiridos na

mediação/interação com as atividades escolares é uma visão redutora do encontro entre os sujeitos que povoam uma sala de aula.

Sabemos, porém, que, em nossa realidade educacional, as salas sobrecarregadas colaboram para a transformação do professor em “ensinante” (MANNONI, 1999, p. 200- 201), aquele que só faz “distribuir os conhecimentos do programa” aos que conseguem acompanhá-lo nessas condições, fato que contribui para a segregação e o desajuste escolar. Todos aqueles que estão em interlocução com a educação conseguem perceber que o “fio” que sustenta a instituição escolar está se rompendo e precisa ser suturado em pouco tempo, mesmo sabendo que o que há de “impossível no cerne do discurso do gozo é que não há gozo último que possa nos aliviar definitivamente de nossa angústia” (LAURENT, 2006, p. 27).

O desamparo define as formas de subjetivação na contemporaneidade, tão desordenadas e desorganizadas em função da falta de referenciais éticos, políticos e sociais. A segregação dos “excluídos” e a luta de classes reafirmam a inconsistência dos laços sociais e da lei que nos amarra à cultura. Do desamparo ao desalento, segundo Birman (2001, p. 26), resta à educação “reinventar suas práticas”.

Ainda que as diretrizes pedagógicas insistam em demarcar seu campo pela via do racional, para Souza (2008, p. 220), “o que nutre a relação é o que não é antevisto pelo método, ou seja, o que subjaz ao encontro do aluno com o professor”, o que chamamos de transferência: uma manifestação inconsciente que baliza as relações vinculares. Filiados à psicanálise, acreditamos, juntamente com o autor (SOUZA, 2008, p.220), que o encontro entre os sujeitos é marcado pelo vínculo que “faz furo nas normas gerais que o estruturam, na imediatez do encontro”, vínculo este que não pode ser planejado e organizado a priori, antes da aproximação entre sujeitos cindidos e regidos pelo inconsciente.

Ao convocarmos o conceito psicanalítico de inconsciente, que atravessa a constituição dos sujeitos e de suas relações, reafirmamos a ocorrência da transferência, que traz em seu bojo, de acordo com Elia (2004, p. 32), o amor. Entendemos o amor, aqui, como “o conjunto de todas as manifestações do afeto, como dimensão da experiência humana que, ancorada na palavra [...] ultrapassa contudo [sic] o plano do que é representável pelas palavras”. Faz-se importante destacar que afeto, para a psicanálise, é diferente de sentimento, uma vez que é aquilo que afeta o sujeito pela via do significante, como já destacamos, em nota, anteriormente.

Podemos afirmar que algo do não-calculável marca as relações sociais e o laço professor-aluno está entre elas, perpassado por um investimento libidinal do aluno endereçado ao professor. Esse investimento possibilita a identificação do aluno com um traço, em especial, desse professor, traço este que não pode ser reconhecido, mas que mantém a relação transferencial e a suposição de saber a esse professor. Considerando a ordem da transferência, podemos pensar em uma relação “entre sujeito e sujeito” (VOLTOLINI, 2007, p. 208), na qual estes têm voz, história e responsabilidade para com sua história, já que estão implicados nela, no que ela tem de falta e de desejo.

A proposta da psicanálise, enquanto ética, é possibilitar ao sujeito o confronto com aquilo que o diferencia em sua radicalidade, com o que lhe é próprio e que o faz assujeitado de um modo único, como pontua Voltolini (2009b). Filiamo-nos ao viés psicanalítico em função de seu respeito às diferenças, às singularidades. Longe de manter polarizações como normal/anormal, bom aluno/mau aluno, a psicanálise vem questionar as certezas e as garantias em que o logocentrismo e, consequentemente, as teorias de aprendizagem se apóiam, na tentativa de (re)instalar um espaço para as interrogações e para a “causação do desejo de saber” (VOLTOLINI, 2009b) em professores e alunos.

Talvez, as principais contribuições da psicanálise no campo da educação concirnam à tentativa de desconstrução das certezas logocêntricas, bem como à subversão dos discursos, já que o viés psicanalítico aponta para o “furo”, isto é, para a impossibilidade. Além disso, a psicanálise potencializa a reflexão, no que se refere à implicação de cada sujeito com a sua história e à interrogação diante da diferença, diante da singularidade. Considerando essa questão, Mannoni (1977) idealiza uma escola diferenciada para receber todos aqueles que foram segregados na escola regular. É esta vivência peculiar, na interface psicanálise-educação, que trazemos à baila neste momento.

3.2.2. A Escola de Bonneuil: uma experiência diferenciada com os desajustados