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Governa(a)mentalidade: as (micro)relações de poder-saber

CAPÍTULO 2: A EDUCAÇÃO NA “ÓTICA” FOUCAULTIANA

2.4. Governa(a)mentalidade: as (micro)relações de poder-saber

A noção foucaultiana de governamentalidade vem circunscrever os modos de subjetivação como efeitos das relações de poder-saber, mutuamente implicadas nas (micro

e macro) relações humanas. Sendo um conjunto de processos de moldagem dos indivíduos, a arte de governar a população afeta suas condutas e seus dizeres, na tentativa de normalizar a sociedade.

Esses procedimentos para “bem governar” se fundamentam na afirmação (ilusória) de que somos indivíduos que partilham da liberdade de escolha em função de nossa autonomia de pensamento (MARSHALL, 1994, p. 29). Contudo, na base dessa proposta libertária está o discurso midiático que, na contemporaneidade, visa à implantação da ideia de que podemos ter aquilo que quisermos, ao alcance de uma opção pessoal, disfarçando o fato de que as escolhas já estão feitas e respondem aos interesses de poucos. A construção dessa imagem de homem livre e pensante permite que sejamos governados, tornando-se uma condição para o assujeitamento, o agenciamento dos indivíduos, emaranhados na teia das relações de poder-saber.

A análise de dispositivos de segurança em um dado momento histórico-social fez com que Foucault chegasse ao termo “governamentalidade”. Em sua aula de 1º. de fevereiro de 1978, no Collège de France, Foucault (1979 [1982, p. 277]) fala da arte de governar e de seus desdobramentos: o governo de si mesmo, o governo das almas e das condutas, o governo das crianças – ponto nodal da pedagogia – e o governo dos Estados. Seja qual for a instância de governo – moral, religiosa, pedagógica e política –, ela deve trazer uma forma de vigilância e de controle tanto em relação aos habitantes de um determinado território, quanto às suas riquezas ou, ainda, aos comportamentos individuais e coletivos da população. Esse tipo de vigilância e de controle deve ser semelhante àqueles exercidos pelo pai diante de sua família.

A família se desloca, a partir do século XVIII, da posição de modelo para a de instrumento privilegiado para o governo da população. Nesse momento, a população é tida, por um lado, como portadora de necessidades e sonhos, mas, por outro lado, como objeto do governo, ou seja, como indivíduos agenciados e manipulados a fazer e a pensar aquilo que se deseja que façam e pensem, para sua própria segurança (FOUCAULT, 1979 [1982, p. 289])22. Os interesses individuais e gerais se tornam, ao mesmo tempo, o foco e o instrumento essenciais para o governo da população.

A arte de governar se define como uma continuidade que se estabelece entre os discursos da moral, da economia e da política. Homens e coisas são governáveis e esse

governo deve se referir às relações entre a população e seus objetos de produção, o que inclui as relações humanas. O desenvolvimento da “ciência do governo” foi permitido a partir da percepção dos problemas relativos à população e ao modo ideal de sua gestão, tornando-a fim e instrumento da arte de bem governar. A população ocupa, simultaneamente, o lugar consciente de sujeito de necessidades e a posição inconsciente de objeto do governo (FOUCAULT, 1979 [1982, p. 289-291]).

As noções de governamentalidade e de autogovernamentalidade são discutidas e relacionadas aos modos de subjetivação, por Andrade (2008, p. 25), em sua tese de doutorado. A primeira noção se define por um conjunto de aparatos de controle da população que, ao serem colocados em prática, contribuem para a construção de um saber sobre ela, que engendra um poder quanto ao modo de funcionamento da coletividade e à conduta de cada indivíduo. Já a noção de autogovernamentalidade é entendida como um agrupamento estratégico de dispositivos que instrumentalizam o sujeito, moldando e normatizando sua ação e seu dizer. Essas técnicas são utilizadas, em paralelo, agenciando o indivíduo, em particular, e a população, enquanto coletividade.

As referidas técnicas incluem, ainda, as tecnologias de si, produzindo o controle do sujeito e a docilidade dos corpos, sem que um poder de dominação seja exercido de forma direta e levando em consideração a “utilidade dos indivíduos” (FOUCAULT, 1984 [2004b, p. 309]). Essa forma de poder é chamada, na perspectiva foucaultiana, de bio-poder, construída por meio do conjunto de conhecimentos, principalmente os tidos como científicos, sobre a população. O bio-poder sobre a vida da coletividade, garantido pela produção de saber sobre ela, perpetua as relações de controle e de administração da população. Os estudos sobre os mecanismos que perpassam os corpos, os gestos e os comportamentos do indivíduo, por meio das ciências humanas, também colaboram para a governamentalidade.

Dentro dessa concepção, podemos ler, em Larrosa (1994, p. 54), que as práticas pedagógicas são mediadoras tanto das relações do indivíduo consigo mesmo, quanto dos modos de subjetivação. Desse modo, o “sujeito pedagógico” contribui para a produção de uma verdade sobre si mesmo dentro de uma prática disciplinar de normalização do indivíduo e de controle social. As ciências humanas e a sociedade disciplinar exercem papel importante na implantação e na legitimação da governamentalidade, ao colocarem em funcionamento as (micro)relações de poder-saber e as suas formas de dominação política. Nas palavras de Foucault (1979 [1982]), governamentalidade é

o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e por instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança (FOUCAULT, 1979 [1982, p. 291-292]).

Pensando nas instituições e em suas formas complexas de poder, bem como “sobre o papel dos agenciamentos sobre a educação”, de acordo com Andrade (2008, p. 28), podemos afirmar que os dispositivos e tecnologias engendram tanto manuais de direcionamento do processo de ensino-aprendizagem, quanto comportamentos que caracterizam o bom aluno e o bom professor e, mesmo, a definição do “aprendizado eficiente ou conveniente ao sistema como um todo”.

Sendo assim, o processo ensino-aprendizagem é considerado autônomo, consciente e controlável – o que já apontamos anteriormente como ilusão do sujeito que se quer indiviso – e essa visão sobre a educação, legitimada pela ciência, impõe-se de maneira hegemônica entre professores e especialistas, tornando-se inquestionável. Da disciplina como mecanismo de controle do processo de ensino-aprendizagem às “novas” tecnologias como aparatos de controle do laço social, professor e aluno estão, cada vez mais, enredados pelas relações de poder-saber e monitorados pelo olhar do Outro.