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CAPÍTULO 1: PENSAMOS DUAS VEZES ANTES DE AGIR

1.2. Um conceito, uma Teoria da Mente

1.2.2. Desejos e Obrigações: Teoria da mente e intenções

À noite, na hora de deitar, uma criança quer sair da cama para ir brincar um pouco mais, mas o pai manda-a ficar na cama e dormir.

Nas suas experiências diárias, as crianças são muitas vezes confrontadas com situações em que realmente querem fazer algo, mas esse desejo entra em conflito com o que se deve fazer, ou seja, com uma regra ou obrigação.

Da mesma forma, uma criança pode querer correr rápido para apanhar a bola que foi para a estrada, mas sabe que a mãe lhe ensinou uma regra de segurança, que ele não deveria correr para a estrada atrás da bola, pois deve-se atravessar a estrada com cuidado e olhar para ambos os lados da estrada. Estas experiências de querer algo versus situações de obrigações, onde não se deve fazer o que se quer fazer, é indiscutivelmente frequente na vida das crianças, mas também no dia-a-dia dos adultos.

De facto, a investigação mostra que os pais, comummente, desde os primeiros anos de vida da criança, iniciam um processo de socialização sustentado em regras e normas, como regras de segurança (não correr na rua), questões de propriedade (não mexer nas coisas que pertencem a outros), como também regras sobre as rotinas (Dunn, Bretherton & Munn, 1987; Kopp, 1982; Smetana, Kochanska & Chuang, 2000).

Durante os anos pré-escolares e escolares, as crianças desenvolvem rapidamente tanto o seu o raciocínio psicológico como a sua compreensão das regras e obrigações (Wellman, 2002; Wellman & Lagattuta, 2000; Harris & Nunez, 1996; Killen & Smetana, 1999; Turiel, 2002). O desafio para as crianças é, então, descobrir como coordenar estas perspectivas psicológicas e deônticas, e identificar como o cumprimento dos seus desejos e as suas obrigações podem, simultaneamente, afectar o seu raciocínio e emoções. Na verdade, o interesse científico tem descuidado esta relação entre o raciocínio das crianças e sua compreensão das regras e obrigações (Nunez & Harris, 1998; Peterson & Siegal, 2002;. Yuill, Perner, Pearson, Peerbhoy & Emde, 1996).

Como temos lido, uma peça fundamental da cognição e do mundo social diz respeito às concepções de senso comum das pessoas sobre a agência da mente e intencionalidade (Flavell, 1999; Wellman, 1990). Este trabalho explora os sentidos como as crianças usam os conceitos de estados mentais (como as crença, desejos e intenções) para predizer e explicar o comportamento humano. O conhecimento

normativo foi dirigido principalmente por investigadores interessados na psicologia moral (Damon, 1996; Kohlberg, 1981; Turiel, 1998).

O que levou a pessoa a realizar um comportamento? O que é um comportamento esperado?

Os conceitos normativos são muitas vezes as razões que nos levam a agir, tal como os nossos desejos, para responder a questões avaliativas ou conceptuais. Ou seja, as razões para a explicação de um comportamento muitas vezes envolvem regras, obrigações e normas. Todavia, as avaliações do comportamento muitas vezes dependem de crenças, desejos e intenções. Especialmente importante é saber se estes são realmente dois domínios separados do conhecimento. Especificamente, os julgamentos normativos de alguma forma dependem do conhecimento psicológico? Temos algumas dúvidas sobre se a resposta é “sim”.

Sem dúvida, as normas e regras são razões importantes para as previsões e explicações de um comportamento. Ao assistir a um jogo de futebol, por exemplo, seria importante conhecer as regras do jogo para explicar o comportamento dos intervenientes em campo. Porque é que um jogador pode agarrar a bola com a mão e os outros não? Porque essa é a regra. Uma interpretação comum é que esta explicação é um atalho para um processo psicológico, ou seja, isto implica que os jogadores conheçam a regra e tenham a intenção de segui-la (Ryle, 1949). Wellman e Miller (2008) descreveram e relevaram este tipo de papel para as normas na explicação psicológica. As regras são uma influência, como que uma fonte para os estados mentais, ou seja, a existência de uma regra fornece uma razão para o comportamento assumindo-se como razões importantes como fonte de intenções (Searle, 2001; Perner & Roessler, 2012).

O notável é que as crianças mais novas têm intuições muito diferentes sobre as maneiras como os factos podem influenciar o comportamento do que as crianças mais velhas e adultos. Antes dos quatro anos de idade, as crianças de todo o mundo (Wellman & Miller, 2008) parecem sentir que é a realidade física verdadeira que determina o comportamento de uma pessoa, em vez das crenças sobre a realidade (Wimmer & Perner, 1983). Este é o erro da falsa crença. As crianças pequenas pensam que uma pessoa irá procurar o objecto escondido no local actual, em vez do local indicado pela informação disponível. A forte interpretação deste resultado é que os factos físicos são assimilados como causadores directos de um comportamento, sem uma mediação de estados mentais. Quase da mesma forma, como um micróbio

pode causar-lhe uma constipação, estando ou não consciente da sua presença, como um chocolate pode levar à procurar num armário, mesmo estando ou não consciente da sua presença (Kalish, 1998).

Este erro da falsa crença não se limita à realidade física, mas vale também para propriedades normativas pertencentes ao meio ambiente. As crianças pequenas preveem que as pessoas vão seguir as regras, mesmo quando são ignorantes acerca delas (Flavell, Flavell, Green & Moses, 1990; Kalish, 1998; Kalish, Weissman & Bernstein, 2000).

Em estudos recentes (Kalish & Cornelius, 2005), apresentaram às crianças uma tarefa chamada de “a mudança da regra”, muito semelhante à tarefa tradicional de falsa crença sobre a mudança de localização. Nesta tarefa, um aluno está ausente da escola precisamente no dia em que uma regra convencional é alterada (por exemplo, sobre onde se deve pendurar os casacos). Assim como nas tarefas de mudança de objecto, as crianças mais novas, muitas vezes preveem que o aluno “ignorante”, aquele que desconhece a alteração da regra, vai seguir a nova regra, não a anterior. Uma possível interpretação é que estes resultados mostram que as crianças mais novas pensam que os factos normativos (regras, obrigações) podem ter um impacto directo sobre o comportamento, não mediada por estados mentais.

Uma interpretação mais conservadora dos resultados sobre as falsas crenças é que as crianças têm diferentes intuições sobre as origens das crenças, desejos e intenções que produzem um comportamento. As crianças concordam que as acções das pessoas (pendurar casacos ou procurar o chocolate) são consequência dos seus estados mentais, no entanto discordam sobre quais os estados mentais que as pessoas têm. As crianças mais pequenas veem os pensamentos como decorrentes de influências externas à mente, e minimizam os processos internos. A discussão concentra-se na origem da crença, sobre a visão de que a intuição da criança é que as crenças nascem directamente a partir dos factos (Chandler & Lalonde, 1996; Wellman, 1992). Nós diríamos que muitas dessas intuições estão ancoradas à fonte das razões (Kalish, 2002; Kalish & Shiverick, 2004). As crianças pequenas tendem a ver as pessoas como motivadas por normas, regras e obrigações, ou seja, as pessoas querem fazer o que é suposto fazer.

No entanto, Wellman & Miller (2008) apontam para o facto que adultos americanos muitas vezes explicam o comportamento como uma consequência motivada por características intrínsecas ou preferências das pessoas. Existe uma longa

tradição de investigação argumentando que as preferências apenas se tornam uma parte significativa das explicações comportamentais por volta dos oito anos (Rublo & Dweck, 1995). Por outro lado, na literatura as crianças são frequentemente descritas como ancoradas a atribuições externas, devendo pensar esta orientação externa como um conjunto de intuições sobre as razões (por exemplo, obrigações), e como referimos, as normas e obrigações são uma das fontes externas primárias das razões. Neste sentido, particularmente aquando da ausência de razões internas fortes, as crianças poderão tender a esperar que as pessoas se comportem a partir de regras e obrigações. Por exemplo, crianças de idade pré-escolar tendem a ignorar informações sobre as preferências (gostos e desgostos) de uma pessoa e concentrar-se em obter informações sobre normas para predizer o comportamento futuro (Kalish & Shiverick, 2004). Então e quando as obrigações e preferências entram em conflito?

Assim como, geralmente as crianças esperam que as pessoas acreditem no que é verdade, podem esperar também que as pessoas devam fazer o que é certo.

Wellman e Miller (2008) apresentaram dados transculturais, sugerindo que esta não é uma trajetória universal de desenvolvimento. Muitos adultos acreditam que o que alguém quer fazer, e o que a pessoa é obrigada a fazer, geralmente coincidem. Na verdade, existem inúmeras situações em que é esperado que as pessoas façam o que deveriam fazer. Porque o guarda-redes apanha a bola com a mão? Porque a empregada traz a refeição e o cliente de paga? Porque o condutor pára no semáforo encarnado? Nestes casos, o pressuposto é que as pessoas tiveram uma razão para seguir as regras. Mas será que as crianças predizem essas acções consistentemente em diferentes culturas?

Wellman e Miller (2008) descrevem o exemplo da mulher que fica em casa para cuidar do seu marido doente. Enquanto os adultos na Índia concordam que a mulher quer ficar em casa para cuidar do seu marido, os adultos americanos estão menos inclinados a afirmar que a mulher fica em casa motivada pelo seu dever. Perguntamos então, com sentido pertinente: Como é que as crianças de diferentes meios socioeconómicos inferem o dever e o querer fazer?

Aqui, defendemos uma interpretação mais ampla da teoria da mente englobando concepções não apenas dos actores como seres individuais, com as suas crenças e desejos, mas também concepções de influências sociais sobre a acção e pensamento, em particular, as obrigações e os desejos. Em contraste, a discussão contemporânea sobre a teoria da mente tende a retratar as pessoas como agentes

autónomos, actores intencionais cujas acções são determinadas exclusivamente por escolhas individuais, desejos e crenças.

Influências deônticas argumentam que alguém pode, deve, ou não pode, não deve fazer, e por isso inclui concepções de obrigações e permissões que se relacionam com a natureza das expectativas normativas, e englobam o papel dos relacionamentos e contextos sociais.

Particularmente incompreensível, supomos, é a insistência na tradicional construção de crença-desejo para retratar um comportamento como uma mera escolha livre, com pouca atenção dada à medida em que o comportamento está situado num contexto psico-social e pode ser realizado em resposta a regras sociais, obrigações, deveres e responsabilidades que devem, inevitavelmente, também ser consideradas. Da mesma forma, as pessoas tendem a ser conceptualizadas exclusivamente como, agentes autónomos individuais, ignorando que são igualmente agentes sociais, cuja identidade psicológica é baseada na sociedade.

Na verdade, nenhum dos 176 estudos incluídos na meta-análise da teoria da mente conduzida por Wellman, Cross, e Watson (2001) foi além da consideração de crenças e desejos dos actores individuais para incluir um foco também sobre as obrigações.