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CAPÍTULO 3: DEVER FAZER OU QUERER FAZER: EIS A QUESTÃO!

3.1. Falsas crenças e Intenções

O raciocínio sobre as intenções das pessoas exige uma “teoria da mente”, ou seja, uma compreensão de que os estados mentais dos outros, tais como as crenças, desejos e conhecimento podem ser diferentes dos seus (Premack & Woodruff, 1978). Como já é conhecido, por volta dos quatro ou cinco anos de idade, as crianças compreendem que os outros podem ter falsas crenças sobre o mundo físico (e.g., Wellman, Cross, & Watson, 2001). A compreensão de que os outros podem ter falsas crenças é um marco importante, o qual assinala a capacidade das crianças de distinguir entre o mundo mental e físico (e.g., Miller, 2009). Este marco foi largamente testado não apenas para as falsas crenças do próprio, como também para as falsas crenças dos outros. Como também em várias situações, como a transferência inesperada de objectos, os conteúdos inesperados (por exemplo, uma caixa de lápis que contém doces), ou identidades inesperadas (por exemplo, uma esponja que parece uma pedra), também para representações não-mentais (por exemplo, a localização de um objecto numa fotografia, uma vez que o objecto tinha sido retirado desde que a fotografia foi tirada), como para as mudanças que ocorrem por acaso ou como um engano deliberado, e ainda em contextos em que a criança conhece o verdadeiro estado das coisas e aqueles em que a criança não conhece (e.g., Wimmer & Perner, 1983; Siegal & Beattie, 1991; Wellman et al., 2001; Wellman & Liu, 2004; Bloom & German, 2000).

Algumas crianças com défices cognitivos, como as crianças com perturbações do espectro do autismo, parecem compreender tardiamente que os outros podem ter falsas crenças e tendem a fazer mais inferências incorrectas sobre as tarefas de falsas crenças (e.g., Baron-Cohen, Leslie & Frith, 1985).

Embora a mudança conceptual na compreensão de falsas crenças que acontece aos quatro, cinco anos seja aceite como um marco (e.g., Wellman et al., 2001; Miller, 2009), o desenvolvimento de uma teoria da mente continua desde a infância até à adolescência. No entanto, precursores importantes emergem na infância (e.g., Wellman, Lopez-Duran, LaBounty & Hamilton, 2008), e por volta dos doze meses, as crianças começam a inferir a agência intencional humana (e.g., Saxe, Tenenbaum & Carey, 2005); por volta dos dezoito meses, distinguem os seus desejos dos desejos dos outros, por exemplo, distinguem brócolos versus bolachas (e.g., Repacholi & Gopnik, 1997, Meltzoff 1995; Woodward, Sommerville & Guajardo 2001); aos três anos, as crianças relatam as suas próprias intenções, ainda que de forma imprecisa (e.g.,

Gopnik & Slaughter, 1991). Entre os três e cinco anos começam a compreender não apenas os desejos, mas também o papel das crenças (e.g., Astington, 1993; Joseph & Tager-Flusberg, 1999); e distinguem os desejos e resultados pretendidos (e.g., Feinfield, Lee, Flavell, Green & Flavell, 1999; Schult, 2002; Liao, Li & Deak, 2011).

Da mesma forma, as crianças após os cinco anos de idade continuam a dar passos importantes no raciocínio sobre as falsas crenças. Um passo crucial é o raciocínio sobre as falsas crenças de ordem mais elevada, ou seja, as crenças de uma pessoa sobre as crenças de outra pessoa (e.g., Miller 2009). Aos seis, sete anos de idade, as crianças começam a mostrar precisão em responder à questão “Onde é que o João acha que a Maria vai buscar o gelado?” (Perner & Wimmer, 1985). Da mesma forma, aos cinco anos de idade, as crianças cometem erros sobre as falsas crenças quando a entidade que muda a localização do objecto é uma pessoa, especialmente quando a mudança de local é provocada pela própria decisão da pessoa, em vez de por outra instrução (e.g., Symons, McLoughlin, Moore & Morine 1997; Rai & Mitchell, 2004).

São necessários mais alguns anos para as crianças compreenderem as emoções que podem resultar de diferentes desejos e crenças, e que as emoções podem informar sobre as crenças e interpretações (e.g., Lagattuta, 2005; Smith & LaFreniere, 2010). Até mesmo adolescentes e adultos podem experienciar dificuldades em tarefas de teoria da mente mais avançadas, tais como interpretar as instruções para mover objectos numa prateleira a partir da perspectiva de um diretor, o qual não pode ver todos os objectos existentes na prateleira (e.g., Dumontheil, Apperly & Blakemore, 2010; Keysar, Lin, e Barr, 2003), ou nas tarefa das histórias estranhas e tarefas faux pas que exigem o uso da sua compreensão de crenças e intenções para explicar o comportamento incomum da personagem (e.g., Miller, 2009; Devine & Hughes 2013).

As pessoas parecem ser influenciadas pelos seus próprios conhecimentos ao tentar apreciar as crenças dos outros (e.g., Apperly, Riggs, Simpson, Chiavarino & Samson, 2006; Birch & Bloom, 2004), talvez porque a avaliação do conhecimento de outra pessoa é cognitivamente dispendioso (e.g., Epley, Morewedge & Keysar, 2004). Além disso, a teoria das habilidades mentais podem ainda deteriorar-se em adultos mais velhos (e.g., Moran 2013).

Embora os variados estudos no campo da teoria da mente e dos muitos caminhos explorados pelos investigadores como lemos até aqui, permanecemos com

uma dúvida. Como as crianças pensam as intenções dos outros quando raciocinam com base na sua teoria da mente? Consideramos que o raciocínio sobre as crenças de segunda ordem, isto é, inferir crenças de uma pessoa sobre as crenças de outra, possa ser sentido e constituído como um marco importante de desenvolvimento tão significativo como o raciocínio sobre as crenças de primeira ordem, isto é, inferir crenças de uma pessoa sobre o mundo físico. No entanto, como lemos, as tarefas de segunda ordem têm recebido menos atenção, nomeadamente quando implicam estados mentais em vez de estados físicos (e.g., Miller, 2009). Por isso, o nosso primeiro objectivo é estudar, em crianças, o raciocínio adjacente às falsas crenças sobre as intenções de outras pessoas numa nova tarefa de falsas crenças de segunda ordem, uma tarefa de mudança de intenções.

3.1.2. Pensamento Contrafactual sobre intenções

Pensamentos contrafactuais, como “se a mãe do Maxi não tivesse mudado o chocolate, onde estaria?”, têm sido propostos como um ingrediente-chave no desenvolvimento do raciocínio sobre as falsas crenças dos outros, como “onde é que o Maxi pensa que o chocolate está?” (e.g., Riggs, Peterson, Robinson & Mitchell, 1998). Vários trabalhos mostram que a compreensão de falsas crenças está correlacionada com o pensamento contrafactual, mesmo quando a idade, inteligência verbal, e outros factores linguísticos estão controlados (Peterson & Riggs, 1999; Riggs, Peterson, Robinson & Mitchell, 1998; Robinson & Beck, 2000; Guajardo, Parker & Turley-Ames, 2009; Müller, Miller, Michalczyk & Karapinka; 2007, Perner, Sprung & Steinkogler, 2004). Outros trabalhos sublinham a relação entre estes raciocínios apontando para o facto que os dois tipos de inferências activam áreas cerebrais semelhantes (e.g., Van Hoeck, Begtas, Steen, Kestemont, Vandekerckhove & Overwalle 2013) e as crianças com perturbações do especto do autismo exibem dificuldades tanto nas tarefas de falsas crenças como nas tarefas de raciocínio contrafactual (e.g., Grant, Riggs & Boucher, 2000; Peterson & Bowler, 2000; Scott, Baron-Cohen & Leslie, 1999).

Os adultos criam frequentemente pensamentos contrafactuais na sua vida quotidiana (e.g., Byrne 2005; Kahneman e Tversky, 1982; Epstude & Roese 2011), e tem sido mostrado que os seus pensamentos contrafactuais afectam outros tipos de pensamento, incluindo a compreensão causal e a resolução criativa de problemas

(e.g., Markman, Lindberg, Kray & Galinsky, 2007; McEleney & Byrne, 2006). Mas será que afectam o seu pensamento sobre intenções?

O desenvolvimento do raciocínio contrafactual nas crianças surge cedo, por volta dos dois, três anos de idade (e.g., Harris 2000), e continua a desenvolver-se ao longo da infância até à adolescência (e.g., Beck, Robinson, Carroll & Apperly 2006; Guttentag & Ferrell 2004; Rafetseder , Schwitalla & Perner 2013).

As crianças podem desenvolver a capacidade de uma “leitura mental” por meio da implementação de estratégias de raciocínio que dependem de pensamentos contrafactuais (e.g., Peterson & Riggs, 1999), incluindo a capacidade de adicionar ou excluir eventos a partir de uma representação da realidade (e.g., Guajardo & Turley- Ames, 2004). Pensamentos contrafactuais como “se a mãe do Maxi não tivesse mudado o chocolate, o chocolate ainda estaria na gaveta”, exigem prever duas possibilidades, a conjectura de “a mãe do Maxi não moveu o chocolate e ainda está na gaveta, e o facto pressuposto “a mãe do Maxi moveu o chocolate e não está na gaveta” (e.g., Byrne & Tasso, 1999; Ferguson & Sanford, 2008; Santamaria, Espino & Byrne, 2005). As crianças compreendem assim que o Maxi vai pensar que o chocolate ainda está na gaveta, porque podem pensar que, se a mãe do Maxi não moveu o chocolate, o chocolate ainda estaria na gaveta. Neste sentido, o pensamento contrafactual pode ser a base do raciocínio de falsas crenças, permitindo avanços na representação sobre a compreensão de que as proposições se referem ao mundo real (e.g., Perner, 2000), ou ao possibilitar avanços de processamento, como a modificação do próprio conhecimento de uma situação para simular uma alternativa que acomoda a perspectiva de outra pessoa (e.g., Peterson & Riggs, 1999; Astington, 1993; Carlson & Moses, 2001).

Apesar de, desde os três anos, as crianças possam raciocinar sobre situações contrafactuais simples, como causais simples e inferências espaciais (e.g., Harris, 2000; German & Nichols, 2003; Perner, Sprung & Steinkogler de 2004; Rafetseder & Perner, 2010; Perner & Rafetseder, 2014), estas crianças ainda não obtêm um bom desempenho nas tarefas de falsas crenças. Estas suas dificuldades podem surgir a partir de uma terceira fonte que afecta tanto as falsas crenças como o raciocínio contrafactual, falamos de dificuldades nas funções executivas (e.g., German & Nichols, 2003; Guajardo, Parker & Turley-Ames, 2009; Müller, Miller, Michalczyk & Karapinka, 2007; Beck, Riggs & Gorniak 2009). As competências relevantes nas funções executivas incluem capacidades relacionadas com a memória de trabalho,

uma vez que têm que manter em mente duas representações em simultâneo (e.g., Robinson & Beck, 2000; Carlson & Moses, 2001; Muller et al., 2007), com o controlo inibitório, por exemplo, suprimir a atenção referente a uma representação, deixar de lado o que se sabe sobre a realidade (e.g., Leslie, 1987; Robinson & Beck, 2000), e com a flexibilidade de representação, por exemplo, considerar diferentes perspectivas sobre a mesma situação (e.g., Andrews, Halford, Bunch, Bowden & Jones 2003; Muller et al., 2007; Drayton, Turley-Ames & Guajardo 2011).

Em estudos anteriores, o raciocínio sobre as falsas crenças exigiu que os participantes considerassem os estados mentais de outra pessoa, por exemplo, “onde é que o Maxi pensa que o chocolate está?”, ao passo que o raciocínio contrafactual exigiu-lhes que considerassem apenas os estados físicos, por exemplo, “se a mãe do Maxi não tivesse mudado o chocolate, onde estaria?”, assim a questão contrafactual remove qualquer componente mentalista de crença (e.g., Peterson & Riggs, 1999). A nossa questão é: e quando ambas as questões envolvem estados mentais?

Sabemos que a precisão nas tarefas de falsas crenças de primeira ordem está correlacionada com a precisão nas tarefas de raciocínio contrafactual, mesmo que a tarefa não esteja relacionada com contrafactuais sobre qualquer estado físico ou estados mentais, mas sim com as emoções (e.g., Guajardo et al., 2009). Adicionalmente, alguns estudos propõem que a variação não explicada nas correlações entre contrafactuais e falsas crenças deve-se ao facto de as tarefas de falsas crenças fazerem referência a estados mentais e as tarefas contrafactuais referirem-se a estados físicos (Guajardo & Turley-Ames, 2004).

O primeiro passo para tentar perceber melhor esta relação é o uso da nova tarefa de mudança de intenções, a qual permite uma comparação entre o raciocínio de falsas crenças sobre estados mentais, por exemplo, “qual é que o João acredita ser a razão para a Ana estar a escrever no papel?”, com o raciocínio contrafactual sobre estados mentais, como por exemplo: “se o pai da Ana não tivesse mandado a Ana fazer os trabalhos de casa, qual teria sido a razão para a Ana estar a escrever no papel?”, numa única tarefa sobre o mesmo conteúdo. Esperamos que as crianças mais novas façam mais inferências correctas para o pensamento contrafactual do que para o raciocínio de falsas crenças, mesmo quando ambos são sobre estados mentais, isto se o raciocínio contrafactual é um precursor para o raciocínio de falsas crenças. Esperamos também que as diferenças entre falsas crenças e raciocínio contrafactual sejam eliminadas quando estes são inferidos por crianças mais velhas.