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CAPÍTULO 6: AS RAZÕES PARA AS ACÇÕES NO AUTISMO

6.1. Uma perspectiva cognitivista

6.1.2. Raciocínio contrafactual

Muitas vezes as pessoas pensam sobre o que poderia ter sucedido se algum acontecimento passado tivesse sido diferente. Apesar de termos consciência de que tais eventos alternativos de facto não aconteceram, esse raciocínio é um factor importante do nosso funcionamento diário (Epstude & Roese 2008). Este representa uma das marcas definidoras do desenvolvimento de capacidades de raciocínio mais complexas (Byrne, 2007). No presente estudo, investigamos também os processos que estão na base do raciocínio contrafactual, em particular o papel das intenções, em crianças com uma perturbação conhecida por ter comprometimentos nas habilidades sociais e afectivas, o autismo.

O raciocínio contrafactual é benéfico. Permite-nos aprender com os próprios erros (ou dos outros) e prepara-nos para evitar maus resultados, criando várias opções de como agir com situações semelhantes no futuro. Este tipo de raciocínio contribui para uma série de processos cognitivos, como a criatividade, resolução de problemas,

tomada de decisão e funcionamento social (Epstude & Roese 2008).

Embora as crianças com autismo sejam capazes de compreender as instruções e transformações de faz-de-conta determinadas por um adulto (Kavanaugh & Harris, 1994), o seu modo de brincadeira é tipicamente atrasado e confinado a rotinas estereotipadas (Baron-Cohen, 1989; Leslie, 1988). As crianças com autismo também estão atrasadas na aquisição da linguagem e alguns não desenvolvem uma linguagem expressiva. Mesmo entre aquelas que adquirem a linguagem expressiva, existem dificuldades específicas com a pragmática da conversa. Crianças e adultos, de facto, com autismo tendem a colocar uma interpretação literal sobre um enunciado, ignorando a intenção por trás dele (Frith, 1989; Happé, 1993; Howlin, 1997). Note-se que os indivíduos com autismo que participam em trabalhos experimentais, como a amostra discutida nesta experiência, normalmente têm linguagem relativamente bem desenvolvida, bem como as suas competências cognitivas e podem não ser representativos da população como um todo.

Até o momento, alguns estudos, curiosamente, documentam a existência de uma capacidade das crianças com autismo para raciocinar contrafactualmente. Estes estudos revelam que as crianças com diagnóstico de autismo, em particular aquelas com coeficiente de inteligência normal (de alto funcionamento ou com síndrome de Asperger), são conhecidas pela suas capacidades analíticas e lógicas não comprometidas, nomeadamente no que diz respeito ao raciocínio condicional sobre informações explícitas.

Um dos primeiros estudos que ilustrou esta capacidade foi o de Scott, Baron- Cohen, e Leslie (1999), no qual compararam o pensamento contrafactual das crianças de quatro anos em desenvolvimento normal com as crianças com diagnóstico de autismo e com crianças com dificuldades de aprendizagem moderadas, entre as quais, os dois últimos grupos apresentavam uma idade mental verbal de quatro a seis anos). As crianças foram testadas com e sem instruções para usar imagens. Todos os grupos realizaram moderadamente bem a tarefa na condição com imagens. No entanto, inesperadamente, as crianças com autismo deram respostas mais lógicas do que as outras crianças na condição de ausência de imagens. Assim, as crianças com autismo mostraram-se competentes no raciocínio lógico, mesmo na ausência de instrução incentivando ao uso de imagens, o que sugere que as instruções que utilizaram imagens interrompeu de algum modo o raciocínio lógico deste grupo.

estudaram um grupo de crianças com autismo e encontraram que estas crianças de facto são hábeis em raciocinar sobre realidades contrafactuais. Quando lhes pediram para gerar um resultado com base numa frase contrafactual explicitamente apresentada (por exemplo, eu tenho uma história onde todas as vacas fazem “Quack”. Freda é uma vaca. Na minha história, a Freda faz “Quack”?), os resultados mostraram que as crianças com atraso de desenvolvimento, como com autismo, foram igualmente capazes, assim como as crianças com desenvolvimento normal, de gerar a consequência correcta, ou seja, “sim, a Freda fzz “Quack” (Leevers & Harris, 2000; Peterson & Bowler, 2000; Scott et al., 1999). No entanto, nestas tarefas, a resposta correcta poderia ser inferida das premissas. Em contraste, quando são apresentadas histórias e depois questões abertas, para as quais a resposta correcta não pode ser deduzida a partir das premissas, as crianças com atraso de desenvolvimento e autismo são menos capazes de gerar novas resoluções alternativas (Grant et al., 2004).

Mais recentemente, no estudo realizado por Begeer, Terwogt, Lunenburg e Stegge (2009), estes autores concentraram-se no desenvolvimento de raciocínio contrafactual aditivo e subtractivo espontâneo em crianças com autismo de alto funcionamento e com síndrome de Asperger, comparando-os com um grupo de controlo com crianças em desenvolvimento normal, com idades compreendidas entre os seis e doze anos. As crianças receberam quatro histórias, nas quais poderiam gerar contrafactuais com base numa determinada sequência (por exemplo, “tu deixaste pegadas de lama na cozinha. Como é que isto poderia ter sido evitado?”). As crianças com autismo de alto funcionamento ou com síndrome de Asperger utilizaram cada vez mais os contrafactuais subtrativos à medida que têm mais idade, contudo, as crianças do grupo de controlo mostraram um aumento de contrafactuais aditivos, o que pode estar ligado à sua adaptação crescente e competências flexíveis. As crianças com autismo de alto funcionamento e síndrome de Asperger provavelmente desenvolvem estratégias diferentes para o seu raciocínio contrafactual (Begeer,Terwogt, Lunenburg & Stegge, 2009). Por outro lado, os contrafactuais aditivos, apelam para a imaginação e aumentam a criatividade e flexibilidade no que diz respeito a situações futuras, uma vez que se focam em pensar em algo que não de facto não aconteceu, desde modo assumem-se como tendo uma função preparativa mais pronunciada do que os contrafactuais subtrativos porque estão directamente relacionados com a geração de novas opções de respostas adaptativas que, talvez, não sejam consideradas no passado (Epstude & Roese 2008). Em princípio, os

pensamentos contrafactuais aditivos permitem um espaço de procura aberta e um número ilimitado de respostas. A desvalorização deste domínio encaixaria com a definição e dificuldades bem documentados sobre a imaginação, flexibilidade comportamental e geração espontânea de novas ideias apresentadas pelas crianças com autismo. Na verdade, as questões contrafactuais abertas apresentam menos respostas correctas em crianças entre os nove e treze anos com diagnóstico de autismo ou atraso de desenvolvimento quando comparadas com crianças em desenvolvimento normal, (Bigham, 2008; Bishop & Norbury, 2005; Grant et al., 2004).

Por outro lado, outros autores dirigiram a sua atenção para a compreensão das emoções com base no raciocínio contrafactual. Neste sentido, num estudo bastante interessante e revelador, Begeer, Rosnay, Lunenburg, Stegge e Terwogt (2014) compararam um grupo de crianças com autismo de alto funcionamento do espectro do autismo e em crianças com desenvolvimento típico, com idade entre os seis e doze anos. As crianças viram oito histórias sobre dois protagonistas que experimentaram o mesmo resultado positivo ou negativo, quer devido à sua própria acção ou por omissão. Em relação ao grupo de controlo, as crianças com autismo de alto funcionamento deram respostas mais pobres para explicar as emoções com base no raciocínio contrafactual descendente (ou seja, contentamento e alívio). Todavia, não houve diferenças entre os grupos no raciocínio contrafactual ascendente (ou seja, decepção e arrependimento). Paralelamente, no grupo de controlo, o raciocínio de segunda ordem de falsas crenças estava relacionado com a compreensão contrafactual das emoções de segunda ordem (ou seja, alívio), enquanto que nas crianças do grupo de autismo de alto funcionamento esta relação mostrou-se fraca (Begeer, Rosnay, Lunenburg, Stegge & Terwogt; 2014).

Estudos com crianças em desenvolvimento normal têm mostrado fortes associações entre as tarefas de falsas crenças e tarefas de raciocínio contrafactual, mesmo quando a idade mental verbal é controlada. Peterson e Bowler (2000) replicaram estes resultados com crianças com autismo e crianças com graves dificuldades de aprendizagem, com idade entre os três e os dezoito anos. Embora os resultados tenham revelado correlações significativas entre as duas tarefas para os diferentes grupos, análises de contingências entre as duas tarefas e comparação da sua respectiva dificuldade para cada grupo sugeriu que a capacidade de raciocínio subtrativo foi um elemento necessário, mas não suficiente para o sucesso na tarefa de falsa crença. Estes resultados mostraram ainda que a tarefa de falsa crença foi mais

difícil para o grupo de participantes com autismo, o que, consequentemente mostra que uma das exigências feitas pela tarefas associadas à compreensão de falsas crenças pode ser especificada em termos de raciocínio subtrativo.

É tentador concluir, portanto, que as crianças com autismo são capazes de pensar contrafactualmente, desde que não tenham que especular ou imaginar sobre os possíveis resultados das alternativas que não estejam envolvidas num determinado cenário. Assim, quando são dadas questões abertas a crianças entre os seis e doze anos de idade, as crianças sem défice cognitivo, ou seja, de alto funcionamento do espectro do autismo, mostram que a sua capacidade para gerar contrafactuais é semelhante à capacidade das crianças com desenvolvimento típico (Begeer et al., 2014). No entanto, com base na literatura existente, não se sabe se as crianças com autismo de alto funcionamento estão sintonizados com as consequências afectivas de comparar realidades factuais e contrafactuais. Na verdade, é plausível que elas não experimentem dificuldades de raciocínio a partir de premissas contrafactuais per se, por isso, parece-nos importante estabelecer como estas crianças usam estas capacidades para compreender as intenções dos outros.